segunda-feira, 30 de julho de 2012

Maquiavel em clave teológica (IV)



(continuação deste texto)


Sidney Silveira


Ao apontar o necessário conjunto de conhecimentos prévios ao estabelecimento de uma teoria política que não oprima o homem, vimos que uma das principais lacunas da ciência política posterior ao medievo está no fato de carecer de uma antropologia realista.


Com tal afirmação, é nosso propósito apenas consignar um fato. Ademais, a anterioridade do problema antropológico em relação ao político é análoga à precedência da metafísica em relação à gnosiologia, evidência esta que nenhum pensador antigo ou medieval jamais ignorou. Platão, por exemplo, escreve a República — na qual o Estado não é outra coisa senão a alma humana em ponto grande — antes de propor a sua teoria das Leis; Aristóteles primeiramente estabelece os fundamentos do bem agir humano, na Ética a Nicômaco, para somente então anunciar a sua Política; Santo Tomás estuda a Ética e a Política de Aristóteles apenas depois do formidável escrutínio que realiza nos comentários ao De Anima, à Física e à Metafísica.


Vale dizer que, mesmo em alguns autores modernos, observamos a obediência a esta ordem de problemas, como aponta o tomista Maxence Hecquard no denso Les fondaments philosophiques de la démocratie moderne.[1] Kant, por exemplo, apesar de esboçar uma gnosiologia sem possuir real base metafísica, escreve a Crítica da Razão Pura (1781) antes da Doutrina do Direito (1797), onde estão configurados os pressupostos de sua teoria do Estado civil; Hegel redige a Fenomenologia do Espírito (1807) antes da Filosofia do Direito (1821), na qual concebe o Estado como um todo em si e para si, onde as vontades individuais estão ordenadas à vontade universal, estatal.


Seria ocioso enumerar mais exemplos, pois neste ponto importa-nos apenas registrar algo que, noutros tempos, seria mera obviedade:


Ø Todo teórico da política, dada a natureza das questões em que está imerso, precisa fazer referência, direta ou indireta, consciente ou inconsciente, à natureza humana, pois não há como propor fórmulas, leis ou regras para o convívio entre os homens sem conceber, de alguma maneira, o que é o homem.


A perda da sólida base antropológica que, na escolástica, teve o seu ápice em Tomás de Aquino provém da mudança de vetor estimulada pela difusão de algumas idéias-chave de Duns Scot, que não apenas estabeleceu uma estrita separação entre teologia e metafísica, mas também foi o primeiro a propor, com aparente rigor filosófico, a tese da vontade como causa sui e como faculdade superior à inteligência. Assim, no cenário lentamente desenhado a partir do século XIV, a teologia começa aos poucos a perder densidade filosófica; a metafísica vai esvaziando-se e abrindo flanco para diversos tipos de idealismo gnosiológico, de fundo nominalista; a antropologia passa a produzir psicologias voluntaristas e perde o norte teleológico que, até então, lhe dava perspectiva.


Estas foram algumas circunstâncias sem as quais o humanismo político jamais poderia deitar raízes no Ocidente. Em síntese, antes que as sociedades começassem a se descristianizar, foi necessário quebrar-se o núcleo doutrinário que alimentava a mentalidade religiosa predominante na Idade Média, não obstante os atritos que sempre houve entre os poderes espiritual e temporal — análogos, no plano político, à luta titânica do homem ferido pelo pecado original para manter-se em estado de graça.


Uma luta repleta de altos e baixos, retrocessos e recomeços, e que não cessará até o Juízo Final.






Cosmovisão católica x política no mundo pós-cristão


No ambiente mental contemporâneo, moldado por dois séculos de mistificação liberal, com todas as suas funestas conseqüências, as energias foram galvanizadas para fins diametralmente contrários ao bem comum político, cuja noção tornou-se anacrônica. Na trágica entropia global, de que as sociedades pós-modernas já desde algum tempo não têm como encontrar saída — a menos que negassem in totum os princípios que as conformam —, Maquiavel ocupa lugar de honra, como pedra angular de um mundo sem honra.


Mas não adiantemos o passo, pois há questões prévias a elucidar antes de mostrar como o maquiavelismo se tornou a satânica sombra a pairar sobre todas as bandeiras políticas desde os albores do Renascimento, encontrando terreno particularmente fértil para germinar nas democracias liberais — plutocráticas e demagógicas —, mais até do que nos regimes totalitários, embora também a estes o seu imoralismo se amoldasse perfeitamente. Em verdade, a conaturalidade entre maquiavelismo e democratismo se explica pelo fato de que a democracia moderna tende à demagogia como a seu fim próximo, ou seja: sua materia prima é a mentira política, por meio da qual, exatamente como n’OPríncipe de Maquiavel, homens sem escrúpulo procuram fazer de tudo para manter-se no poder a qualquer custo.




1. Reflexos da esperança judaico-cristã na política


Comecemos este ponto destacando que, em seus primórdios, o povo judeu foi — a um só tempo — o povo da promessa e da esperança.


Israel nasceu de uma promessa, ou, noutras palavras: foi a promessa divina o que constituiu os judeus como povo e fez deles uma espécie de encarnação da esperança, tanto na terra prometida, Canaã, quanto no Messias anunciado pelos profetas. Em síntese, os judeus assumiram a sua identidade e se tornaram unidade religiosa, social e política ao lhes ter sido assinalada por Deus uma finalidade específica, na qual punham a mais fervorosa esperança. É a isto que São Paulo faz alusão ao escrever que somente pela esperança de Israel está preso por correntes (At. XXVIII, 20).


Como não poderia deixar de ser, a esperança dos judeus anteriores a Cristo possuía todas as quatro características da esperança enquanto paixão humana [2] apontadas por Santo Tomás na Suma Teológica:


Ø que seja de um bem (pois ninguém espera o mal);


Ø que este bem seja possível (pois ninguém espera o impossível);


Ø que seja futuro (pois ninguém espera o presente); e


Ø que seja relativamente árduo (pois ninguém espera o que já está à mão).[3]


E mais, tinha ela fins infra-terrenos: a vinda do Messias (que, na concepção de escribas e fariseus, autoridades espirituais no tempo de Jesus, teria missão apenas temporal) e a terra prometida, acima mencionadas. Ocorre que, com o advento de Cristo, a esperança nas promessas de Deus passa por verdadeira purificação espiritual, pois, malgrado mantenha todas as características de uma paixão humana, se transforma em virtude teologal, ou seja, ganha um suplemento de força espiritual, gratis dada, infundida por Deus após Pentecostes. Além disso, o seu objeto passa a ser supra-terreno: a Pátria Celeste, reino da perfeita bem-aventurança, em relação à qual não há pátria ou nação no mundo que se compare.


Por sua vez, a esperança dos judeus que renegaram ao Messias e, segundo a teologia católica tradicional, a de todos os que sucederam àquela geração — e continuam a não aceitar o Messias —, não alcança essa virtù proveniente do Alto, e pior: corrompe-se até mesmo como paixão humana, degenerando em obstinação e cegueira espiritual, cujo terrível símbolo é a maldição que eles próprios chamaram para si no exato momento em que jogavam o poder político (representado por Pilatos) contra o poder celeste (configurado em Cristo): “Que o Seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos” (Mt. XXVII, 24-25). Em resumo, para a doutrina bimilenar da Igreja, expressada em séculos sem fim de Encíclicas, Bulas, Decretais, Concílios, etc. [4] — Magistério sobre o qual não é nosso propósito estender-nos, neste ponto do artigo —, os judeus não convertidos posteriores a Cristo são infiéis. A propósito, frisa Santo Tomás que a infidelidade dos pagãos que não receberam o Evangelho é menos grave que a dos judeus, e esta, por sua vez, é menos grave que a dos hereges.[5]


Após Cristo, o fato é que muda totalmente o vetor da esperança nas promessas divinas, e isto traz enormes conseqüências para a maneira de conceber a política — pois, pela primeira vez na história, é proposto aos indivíduos e às sociedades, com meridiana clareza, um fim absolutamente universal, por meio da graça de que a lei evangélica é portadora.[6] É certo que, para alcançar tal fim, os homens precisam aceitar a Cristo e recorrer aos remédios espirituais preceituados no Evangelho e acessíveis pelos sacramentos instituídos para ser ministrados na Igreja por Ele fundada. E mais: com o intuito de que tais remédios estivessem à disposição de todos até a consumação dos séculos, quis Nosso Senhor que o precioso depósito da fé fosse devidamente guardado pela Igreja, dotando-a de um indefectível carisma magisterial para ensinar as verdades reveladas (eumtes ergo docete omnes gentes, Mt. XVIII, 19).


Em resumo, o cristão não espera por Canaã, a terra prometida, mas pela Pátria Celeste — e isto pregando a Cristo crucificado, o que é “escândalo para os judeus e loucura para os gentios” (Cor. I, 1, 23). Isto implica o seguinte: na perspectiva cristã, a política se dignifica ou se degrada na exata medida em que reflete os bens evangélicos ou a eles se opõe; neste último caso, resta aos cristãos a perseguição, o degredo, a humilhação pública e — nos casos em que apraz a Deus — o martírio. “Bem-aventurados sereis quando vos injuriarem e vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por causa de mim” (Mt. V, 11). Assim, os cristãos, enquanto tais, jamais poderão fazer pactos com um poder político que seja alheio ou contrário à ordem da graça.


Como se pode deduzir, nesta concepção a política deixa de ser algo com um fim em si, como a concebiam Platão e Aristóteles, cada qual a seu modo, e passa a assumir caráter instrumental de meio para a consecução de bens universais de ordem superior. Passa-se então a buscar politicamente fins transpolíticos, o que não implica separação entre os poderes material ou espiritual, mas ordem daqueles a estes — isto tanto na Canaã judaica de tempos anteriores a Cristo, em que as leis humanas deveriam ter estreita conexão com os 10 Mandamentos, como nas cidades cristãs, peregrinas em direção à Pátria Celeste, fazendo-se a ressalva de que, com o advento da lei do Evangelho, apenas os preceitos da lei mosaica atinentes à lei natural se conservam.


É verdade, como diz o Pe. Álvaro Calderón na obra-prima A Candeia Debaixo do Alqueire, que no seio da própria Cristandade surgiu, ainda no século XIV, a idéia de que se deve dar aos Césares a natureza, e à Igreja a graça. Esta foi a proposta de Dante no De Monarchia — que, com a difusão dos escritos de Vitoria e Suárez, alguns séculos depois, viria a se tornar doutrina “comum” entre pensadores católicos precursores do liberalismo teológico alcunhado por São Pio X de modernismo.


Seja como for, note-se que o caminhar das idéias políticas no Ocidente, ao longo da vagarosa decadência do cristianismo iniciada no final da Idade Média, está inextricavelmente associado a premissas de caráter teológico. Algumas delas defendidas por cristãos que se voltaram diretamente contra o Magistério da Igreja.




2. O humanismo político e Maquiavel — precursores da contemporaneidade


(continua)


__________________________
1- Maxence Hecquard. Les fondaments philosophiques de la démocratie moderne. Paris: 2007. François-Xavier de Guilbert, p. 64.

2- Ou seja: da paixão enquanto movimento do apetite sensitivo pela imaginação de um bem ou de um mal.


3- IIª-IIª, q. 17, art. 1, resp.


4- Para não correr o risco de nos estender por demais, citando inúmeros Concílios (Ecumênicos ou não), fazemos a seguir referência a uma parte do Magistério ordinário da Igreja que, desde a Idade Média, menciona explicitamente a infidelidade dos judeus, ou a dá por pressuposta. Todos estes documentos são encontráveis no Bularium Romanum:


Honório III: Sicut judaeis non debet esse licentia 7 de novembro de 1217; Ad nostram noveritis audientiam, 29 de abril, 1221;


Gregório IX: Sufficere debuerat perfidiae judaeorum perfídia, 5 de março de 1233;


Inocêncio IV: Impia judaeorum perfídia, 9 de maio de 1244;


Clemente IV: Turbato corde 26 de julho de 1267;


Gregório X: Turbato corde, 1º de março de 1274;


Nicolau III: Vineam Sorec, 4 de agosto de 1278;


Nicolau IV: Turbato corde, 5 de setembro de 1288;


João XXII: Ex Parte Vestra, 12 de agosto de 1317; Cum sit absurdum, 19 de junho de 1320;


Urbano V: Sicuti judaeis non debet, 7 de junho de 1365;


Martim V: Sedes apostólica, 3 de junho de 1425;


Eugênio IV: Dudum ad nostram audientiam, 4 de agosto de 1442;


Calixto III: Si ad reprimendos, 28 de maio de 1456;


Paulo III: Cupientes judaeos 21 de março de 1542; Illius, qui pro dominici, 19 de fevereiro de 1543;


Júlio III: Pastoris aeterni vices, 31 de agosto de 1554;


Paulo IV: Cum nimis absurdum e Dudum postquam, 23 de março de 1556;


Pio IV: Cum inter ceteras, 26 de janeiro de 1562; Dudum e felicis recordationis, 27 de fevereiro de 1562;


São Pio V: Romanus Pontifex 19 de abril de 1566; Sacrosanctae catholicae ecclesiae, 29 de novembro de 1566; Cum nos nuper, 19 de janeiro de 1567; Hebraeorum gens, 26 de fevereiro de 1569;


Gregório XIII: Vices Ejus nos, 1º de setembro de 1577; Antiqua judaeorum improbitas, 1º de julho de 1581; Sancta Mater Ecclesiae, 1º de setembro de 1584;


Sixto V: Christiana pietas, 22 de outubro de 1586;


Clemente VIII: Cum saepe accidere, 28 de fevereiro de 1592; Caeca et obdurata, 25 de fevereiro de 1593; Cum Haebraeorum malitia, 28 de fevereiro de 1593;


Paulo V: Apostolicae servitutis, 31 de julho de 1610; Exponi nobis nuper fecistis, 7 de agosto de 1610;


Urbano VIII: Sedes apostólica, 22 de abril de 1625; Injuncti nobis 20 de agosto de 1626; Cum sicut acceptimus, 18 de outubro de 1635; Cum allias piae, 17 de março de 1636;


Alexandre VII: Verbi aeterni, 1º de dezembro de 1657; Ad ea per quae,15 de novembro de 1658; Ad apostolicae dignitatis, 23 de maio de 1662; Illius, qui illuminat, 6 de março de 1663;


Alexandre VIII: Animarum saluti, 30 de março de 1690; Inocêncio XII: Ad radicitus submovendum, 31 de agosto de 1692;


Clemente XI: Propagandae per universum, 11 de março de 1704; Essendoci stato rappresentato, 21 de janeiro de 1705; Salvatoris nostri vices, 2 de janeiro de 1712;


Inocêncio XIII: Ex injuncto nobis, 18 de janeiro de 1724;


Bento XIII: Nuper, pro parte dilectorum, 8 de janeiro de 1726; Emanavit nuper, 14 de fevereiro de 1727; Alias emanarunt, 21 de março de 1729;


Bento XIV: Postremomens, 28 de fevereiro de 1747; Apostolici Ministerii munus, 16 de setembro de 1747; Singulari Nobis consoldtioni, 9 de fevereiro de 1749; Elapso proxime Anno, 20 de fevereiro de 1751; A quo primum, 14 de junho de 1751; Probe te meminisse, 15 de dezembro de 1751; Beatus Andreas, 22 de fevereiro de 1755.


5- Suma Teológica, IIª-IIª, q. 10, art. 6, resp.


6- Cfme. Suma Teológica, Iª-IIª, q. 106, art. 3.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

terça-feira, 24 de julho de 2012

Brincadeira bem feita


Sidney Silveira

De uma brincadeira surgiu a idéia da caricatura acima, que teve como "modelo" a palestra de lançamento do livro O Êxtase da Intimidade - Ontologia do Amor Humano em Tomás de Aquino, do filósofo espanhol Juan Cruz Cruz, ano passado — obra que, entre várias belas passagens, possui a seguinte: o amor é o êxodo da alma do amante na direção da pessoa amada. E outra, esta da lavra de mestre Tomás: amor ponit amantem extra seipsum.

A propósito, ainda temos exemplares do livro à venda.

A caricatura é assinada por André Lemos.

A ciência política segundo Tomás de Aquino

A Cidade e a Lei, segundo Sto. Tomás

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Parêntese para o humor

Sidney Silveira

Aprecio a caricatura porque, muitas vezes, ela nos leva mais rapidamente à clara percepção da ridiculez do mundo, ou seja: restitui-nos o senso de realidade. O texto abaixo (momento lúdico no Contra Impugnantes) mostra de que barro são feitos alguns ídolos contemporâneos... O site de onde foi retirado o texto está indicado ao final.



Imagem de um cientista após sete horas tentando decifrar

os cinco primeiros versos de Tempo Rei.



Gilberto Gil completa 70 metáforas incompreensíveis


ESPERANTO – Em cerimônia impenetrável em que todos se confundiram já no “Bom dia”, o intelectual, literato e grande mestre do português indecifrável Candido Mendes entregou a Ordem do Mistério Enigmático, no grau Charada Abstrusa, a Gilberto Gil, “em homenagem estreme e impermista a suas setenta metáforas pulcras”.



Enquanto a platéia folheava freneticamente os três volumes do Dicionário da Língua Portuguesa Caldas Aulete, Candido Mendes seguiu afirmando que, mesmo com toda sua experiência em criar obstáculos à compreensão do idioma, se sentia um humilde aprendiz diante da obra gilbertiana. “Por mais que obrasse, jamais atinei com a razão pela qual no instante que tange o berimbau é volta ao mundo, camará”, disse, sem esconder a admiração. Perguntado sobre quanto tempo levaria para traduzir a obra de Gil para o português, respondeu: “De jangada leva uma eternidade. De saveiro leva uma encarnação. De avião, o tempo de uma saudade”.


Pelo menos cinco psicanalistas lacanianos e dois especialistas em Gilles Deleuze tomaram o microfone para atestar que a elucidação dos ditos do compositor baiano tem sido o maior desafio profissional de suas carreiras. “E olha que tivemos de atravessar o Seminário sobre a Lógica do Fantasma”, disse um lacaniano. “E o conceito de rizoma em Diferença e Repetição”, aduziu um deleuziano, sendo prontamente ovacionado pelo feito. “Nada disso nos preparou para decifrar por que enquanto o tempo não trouxer abacate amanhecerá tomate e anoitecerá mamão”, concluiu um heideggeriano, que se mostrou nitidamente assustado com o verso. “Durmo todas as noites com receio de acordar num mundo só de tomates".



Gilberto Gil aceitou a comenda, mas declarou que se sentia desmerecedor da honraria. “Afinal, é com pesar e admiração que digo a vocês que não fui capaz de compor o verso 'Quando se tem o álibi de ter nascido ávido e convivido inválido mesmo sem ter havido'. Passado o instante de perplexidade, os jurados concordaram com Gil e chamaram Djavan ao palco. No final do dia, executivos do Google anunciaram o lançamento do Gilberto Gil Tradutor, uma ferramenta que verte os versos do vate baiano para doze idiomas – inclusive o português.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Maquiavel em clave teológica (III)



(continuação deste texto)


Sidney Silveira




3. Necessidade de conhecimentos prévios à ciência política


Antes de prosseguir com o estudo teológico acerca do lugar que, na história da política, cabe a Maquiavel e ao maquiavelismo, abramos um parêntese para fazer algumas considerações a respeito do necessário conjunto de conhecimentos prévios a qualquer tentativa de desenvolver uma teoria política.

O risco de apontar o óbvio justifica-se, dada a quase absoluta ausência de tais conhecimentos em grande parte das teorias políticas desde o Renascimento, as quais no decorrer dos séculos acabaram por resultar nas democracias liberais, filhas da Revolução Francesa e fomentadoras da entropia — moral, política, cultural, etc. — em que jaz o mundo contemporâneo.





Lógica


De acordo com os ensinamentos de Aristóteles e Santo Tomás, tanto melhor é uma definição quanto mais acertadamente responde à seguinte pergunta: quid est? Sucede que, embora várias definições de uma coisa possam ser verdadeiras, sempre haverá a que mais se aproxima de sua essência — em virtude da potência do intelecto para assimilar imaterialmente a forma dos entes e descobrir a unidade na multiplicidade. Assim, definir o homem como animal racional é mais preciso do que defini-lo como bípede implume ou como vertebrado vivente. Tais definições se referem ao ente real (ens reale) ou natural (ens naturalis), mas o problema se complica deveras quando se trata do ente de razão (ens rationis), objeto da análise e da síntese lógicas, ou seja, dos raciocínios.

Dito isso, não nos parece ocioso frisar que a política não é uma coisa real existente extra anima (como gato, pedra, homem, etc.), mas um ente concebido pelo intelecto com fundamento distante na coisa. Ou seja, ela não é algo a que se chegue pela simplex aprehensio, primeira operação do intelecto humano pela qual se tem contato direto com o ente real — assimilado como incomplexo e indiviso. Não, à compreensão da ordem política se chega por meio de juízos e raciocínios (segunda e terceira operações do intelecto), e isto a partir de algumas evidências. Portanto, enquanto conceito mental ela pertence ao universo das chamadas segundas intenções,[1] que são objeto da lógica. Assim, para saber com segurança o que é a política, é preciso usar o método analítico (resolutio) que conduz a coisas mediatas às imediatas,[2]ou seja:



a) que leva as proposições aos princípios de que necessariamente decorrem;

b) que faz os juízos remontar às suas premissas; e

c) que reconduz as premissas aos primeiros princípios universais, que servem de base para todo e qualquer raciocínio, como expõe o tomista brasileiro Sergio de Souza Salles em excelente artigo.


Em resumo, a política pertence propriamente à ordem da intentio secunda, e tanto melhor será possível conhecê-la quanto mais se tenha o domínio dos instrumentos subsidiários da lógica — arte serviçal na acepção da palavra, porém absolutamente necessária ao labor filosófico. Quantos cientistas políticos, embora tivessem bons insigths, puseram tudo a perder simplesmente porque eram péssimos lógicos! Quantas lacunas se observam em teorias políticas não porque o filósofo esteja imbuído de algum tipo de má-fé, mas apenas porque não sabe pensar, ou seja, não consegue ver as proposições à luz dos seus princípios necessários — o que, dado o modo humano de conhecer, só é possível por meio de raciocínios, e, portanto, pelo reto uso da lógica, a “ama-de-leite de todas as ciências”, na expressão do Pe. Calderón no livro Umbrales de la Filosofía.


Advirta-se que não se está dizendo que a lógica resolverá o problema da política, evidentemente. A propósito, houve homéricos exemplos de fracassos por parte de autores que diziam pautar-se na lógica, como Thomas Hobbes: este buscou formular uma teoria política a partir de argumentos de natureza lógico-dedutiva e acabou por criar um monstro tirânico chamado Leviatã. Acontece que Hobbes era mau lógico, péssimo metafísico e uma nulidade como teólogo, razão pela qual como cientista político só poderia erigir um monumento à desgraça, e não pode haver desgraça maior, em política, do que o esfacelamento da noção de bem comum.

A conclusão hobbesiana de que o Estado existe em função do indivíduo, malgrado seja, na prática, a instância que oprime todos os indivíduos, tem saltos lógicos e premissas arbitrárias (como a pressuposição da violência no estado “natural” primevo). Mas mesmo que a sua teoria fosse perfeita do ponto de vista lógico, isto apenas comprovaria que a lógica não tem, nem pode ter, um fim em si mesma — dado o seu caráter instrumental —, tamanha é a absurdidade de alguns postulados de Hobbes.

O que se está apontando é algo de uma constrangedora simplicidade: sendo a lógica uma disciplina diretiva dos atos da razão, ela é absolutamente necessária a todas as ciências, pois não se pode avançar em nenhuma delas sem o domínio da arte de pensar. Se tal verdade vale para a teologia e para a metafísica, ciências de caráter universal, em razão do seu objeto, mais ainda valerá para a política, para cujo crescimento nos estudos se requer o uso virtuoso da ciência do raciocínio que é a lógica, pois, como se apontou acima, a política não é algo passível de ser apreendido como incomplexo ou indiviso, mas uma realidade conceitual a que se chega por juízos e raciocínios. Tinha muita razão Aristóteles ao considerar a política como ciência arquitetônica, o que implica uma sabedoria abarcadora dum notável conjunto de conhecimentos, entre os quais está o domínio da ars logica.

Assim, a arguta observação de João de Santo Tomás segundo a qual o intelecto opera trazendo as coisas para si [3] — assimilação formal da verdade — pressupõe modos distintos de conhecimento da realidade, e, no caso da política, um longo caminho a ser percorrido pela inteligência até as causas mais universais, o que só se pode fazer pelo uso da lógica. Ou seja: o intelecto abstrai a forma dos entes reais e os traz para si depois de ir a eles por meio das suas três primeiras operações: simples apreensão (que, como dissemos, não alcança a política), juízo e raciocínio. Quando isto não acontece da forma devida, acaba-se caindo naquilo que o tomista Juan José Sanguineti chama de “sistematização do erro”[4] — ou seja, uma espécie anômala de ciência do que não é, fato observável em todas as teorias políticas que não possuem base metafísica nem coerência lógica.

Não nos custa lembrar, neste ponto, que a concepção política de Tomás de Aquino é não apenas lógica, em seu sentido mais elevado, mas também parte da reta compreensão da natureza humana e da certeza de que esta se orienta teleologicamente a Deus. Esta visão abrangente e harmônica lhe garante notável coerência e solidez.

Mas não nos desviemos do ponto.



Antropologia


Toda má teoria política se apóia numa antropologia desvirtuada, reducionista e pretensamente “realista”. Esta é uma verdade universal. De Maquiavel a Hobbes (O Príncipe / Leviatã); de Marsílio de Pádua a Montesquieu (Defensor Pacis / O Espírito das Leis); de Locke a Rousseau (Segundo Tratado sobre o Governo Civil / Contrato Social); de Thomas More a Marx (Utopia / Manifesto Comunista); de Dante a Gramsci (De Monarchia / Maquiavel, a Política e o Estado Moderno); etc.

Observa-se, nas teorias de todos esses construtores da modernidade humanista, e do mundo insano que gerou — em seus variados matizes fechados à ordem da graça —, uma noção equívoca de “liberdade”, oriunda de um constrangedor desconhecimento acerca dos aspectos distintivos da natureza humana, alguns deles evidentes. Mas não apenas isto, como se verá a seguir.

Eis alguns exemplos:



Ø Dante – Supervalorização da liberdade, considerada como o supremo bem outorgado por Deus — com menoscabo da inteligência — e aplicação da aporética tese averroísta da unidade do intelecto possível, para justificar, por meio de uma forçosa analogia, a existência de uma chefatura política universal (totalmente laica, diga-se).


Vale também citar o fato de que o grande poeta do Trecento parece crer piamente em mitologias romanas como a travessia do Tibre por Clélia e o combate entre Enéas e Turno (De Monarchia, II, 4).


Ø Gramsci – O homem é impensável fora da história e das transformações operadas pelo trabalho organizado socialmente. Em síntese, o autor dos Cadernos do Cárcere deixa claro em algumas passagens de seus escritos que o homem é uma criação histórica de algumas mentes brilhantes.


Sem comentários.


Ø Marx “A natureza é o corpo inorgânico do homem”; ela “é uma parte do seu corpo com a qual deve manter-se em intercâmbio para viver” (Manuscritos de 1844).


A partir dessa primária e confusa desontologização da natureza humana — pela qual o homem se identifica apenas com a instância material que faz parte de sua essência —, Marx se sente à vontade para dizer que o homem se torna “humano” pelo trabalho; não fosse o trabalho, seria ele como os outros animais da natureza. Ensina o pai do comunismo que, ao produzir o mundo “humanizado” pelo trabalho, o homem produz-se a si mesmo como “humano”.


Eis a concepção de humanidade implicada no materialismo histórico, algo irreal, torpe, sem sentido, absurdo.



Ø Thomas MorePermeia todas as teses de sua Utopia um otimismo antropológico absolutamente irrealista. Os “utopianos” são tolerantes (inclusive com os erros), pluralistas em religião, libertários e igualitaristas em política, administradores honestos, desapegados das coisas materiais — tudo isso além de “viverem segundo a natureza”, o que para More é sinônimo de “viver segundo a razão”.


Nada como conceber um Estado irreal, utópico, para um homem que não existe!



Ø Rousseau – O mítico estado “natural” de felicidade é perfeitamente traduzido no “bom selvagem” de Rousseau. A origem áurea dessa humanidade “natural” é, segundo Jean-Jacques, irrecuperável, devido aos malefícios causados pela civilização. Aqui, as absurdidades das teses centrais raiam o patológico, e seria ocioso enumerá-las. Seja como for, estamos nos antípodas da tese de Hobbes do combate de todos contra todos no estado “natural”. Isto sem que Rousseau arrole um só argumento, uma evidência ou uma premissa razoável para sustentar a tese. Em termos simples: o homem natural de Rousseau nunca existiu, ou se existiu é mais difícil de achar que o elo perdido de Darwin.


Vale ainda mencionar que o autor do Emílio, como todo bom humanista, se prosterna ante o altar da liberdade (acerca da qual suas idéias são extremamente confusas), que, de acordo com ele, deve ser salvaguardada dos abusos do poder político.



Ø Locke – Para o famoso empirista, a idéia significada pela palavra “homem” não é senão uma coleção imperfeita de qualidades sensíveis e de algumas potências difusas. A identidade do homem é ser participação da vida continuada em partículas de matéria constante, numa incessante sucessão vital unida a cada corpo orgânico.


A propósito, como acontece com Rousseau e Hobbes, também em Locke há o recurso a um estado “natural” do homem, como apoio à elaboração de sua teoria política. Em síntese, não obstante diga que o homem é “criatura”, Locke concebe um problemático estado pré-social vivido pela imensa maioria da humanidade, no qual teria havido perfeita igualdade, concórdia e harmonia entre todos.



Ø Montesquieu – O homem, em seu estado “natural” de tempos imemoriais, tinha a faculdade de conhecer, mas não possuía nenhum conhecimento. E mais: como ente físico, ele estaria regido por leis invariáveis idênticas às que regem os demais corpos.


Segundo o autor d’O Espírito das Leis, como ente inteligente o homem viola sem parar as leis de Deus e muda as que ele próprio estabeleceu. E mais: da mesma maneira como acontece em Locke, Montesquieu afirma que, no estado primordial, havia paz e harmonia entre os homens. As guerras teriam começado quando os homens se agruparam em sociedade e perderam o sentimento de debilidade. Evidências arroladas para esta premissa? Nenhuma.


Seja como for, é a partir daí que Montesquieu diz terem surgido as leis positivas humanas.



Ø Marsílio de Pádua – Uma das teses do Defensor Pacis é de que o indivíduo humano está “predeterminado pela natureza” a certos ofícios específicos, e só é capaz de se preocupar com o bem viver temporal proporcionado pela comunidade civil. Marsílio parece ignorar que a potência intelectiva humana — devido à sua capacidade de assimilar imaterialmente a forma dos entes e remontar aos princípios universais — é Capax Dei, e portanto está teleologicamente vertida à transcendência.


Mas não: fechada numa espécie de imanência coletiva, a sociedade é concebida por Marsílio de Pádua a partir das respectivas funções a que os homens estão, por “natureza”, orientados. Neste cenário, a Igreja está inserida na comunidade civil numa relação análoga àquela que a parte mantém com o todo. Assim, pertencendo a uma autoridade meramente humana, ou seja, concebida na imanência da Pólis, o Papa, os bispos e as demais autoridades eclesiásticas seriam simples executores das determinações da comunidade de fiéis que, por sua vez, obedecem ao poder civil. Daí a concluir-se que a Igreja está subordinada ao Estado é um nada.


Ø Hobbes Homo homini lupus. Thomas Hobbes, como acima foi apontado, afirma que no começo da humanidade havia uma guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes). Portanto, o estado primitivo “natural” do homem seria o de permanente intranqüilidade, pois os mais fortes tentavam impor-se pela força, e os mais fracos, pela astúcia e por hábeis alianças. A concepção política de Hobbes se apóia não apenas nesta quimera, mas também na premissa de que a felicidade não consiste na posse de bens, em que o espírito repousa, mas no contínuo processo de passagem de um desejo a outro — no qual a obtenção de um objeto almejado é tão-somente o caminho para um novo desejo (Leviatã, XI). Em suma: contrariando todas as evidências, afirma Hobbes que a vida em sociedade não é uma tendência natural no homem, pois este só se associa para obter lucros e vantagens — e quanto mais um indivíduo as obtêm, mais as está tirando dos demais.


Dada essa ambição desmedida do homem que é o lobo do homem, surge o Estado absoluto hobbesiano — única entidade capaz de conter tais ímpetos de poder, ao concentrar em si mesmo o poder de todos. Tal Estado absolutista se impõe pelo medo que infunde.


Então, o lobo se transforma em cidadão.


Sobre Maquiavel — objeto desta série de textos — falaremos adiante. Por ora ocorre-nos apenas apontar que o falso realismo acertadamente identificado por Olavo de Carvalho nas idéias de Maquiavel está presente em quase todos os teóricos construtores da política ocidental, desde o fim da Idade Média.


Em boa parte dos casos, pelo simples fato de que lhes falta uma antropologia realista. Assim, não sabendo bem o que é o homem, acabam por conceber um Estado orientado para corromper o homem, tiranizá-lo, oprimi-lo, humilhá-lo, ainda que sob o pretexto de defender a sua liberdade.




Teologia e metafísica


Apresentado o quadro acima, torna-se fácil deduzir o seguinte: desgraçadamente, faltou a todos esses cientistas políticos uma mínima base teológica — e, também, metafísica. Se a tivessem, provavelmente não buscariam amparar suas teorias em pressuposições fantasiosas acerca de um suposto estado primitivo, nem dar as costas a evidências cabais atinentes à natureza humana, ora por eles idealizada, ora reduzida a um espectro do que na verdade é.

O homem plasmado a partir do renascimento é uma mal-disfarçada espécie de causa sui, centro do universo e objeto principal da filosofia a partir da virada dos séculos XV para o XVI. Perdido, pois, o liame inextricável que une o homem ao seu Criador — o qual no período escolástico foi brilhantemente defendido pelos principais filósofos e teólogos —, o estudo da política não poderia senão descambar para um cenário em que cada homem busca avidamente sua própria soberania, e isto se refletirá nas principais concepções de Estado a partir de então.


Tanto no plano individual como no coletivo, passa a haver um forte movimento de autonomia em relação ao plano da Divina Providência, pois o homem começa a acreditar ser dono do próprio destino. Funestamente, a perda da base metafísica e teológica, patente em todos os pensadores acima arrolados, gerará uma desarmonia não apenas entre os Estados e os indivíduos, mas dos indivíduos consigo mesmos, pois, retirando Deus do seu horizonte, descentraram-se.


Vale consignar para leitores desavisados que, sendo este um estudo de cunho teológico, pode perfeitamente aplicar-se a um autor que escreveu sobre política, ou melhor: contemplar criticamente as suas teorias e a influência histórica que tiveram, sob a luz de uma ordem superior. Sim, pois sendo a teologia uma ciência especulativa e prática que tem por objeto a Deus, busca não apenas conhecer alguns aspectos da deidade — tendo por base a Sagrada Escritura e por instrumento a teologia amparada pela metafísica —, mas conhecer todas as demais coisas à luz do conhecimento do Ser de Deus, cujos atributos são universais.
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1- Diz Santiago Ramírez que as intenções segundas não são similitudes das coisas existentes fora da alma, mas similitudes das coisas enquanto já assimiladas formalmente intelecto. Noutras palavras, a intentio prima tem como objeto a realidade extramental, ou seja, qualquer ente real (homem, osso, cão, etc.); e a intentio secunda tem como objeto a realidade mental, ou seja, os conceitos, as definições, as divisões, os predicáveis, etc. “Huiusmodi enim intentiones secundae non sunt similitudines rei extra animam, sed similitudines rerum prout sun in intellectu”. Santiago Ramírez, De Analogia, II, Divisio Conceptus, n. 323.

2- “In resolutione, qua mediata ad imediata reduncuntur”. Tomás de Aquino, Anal., I, 1c, n. 9.


3- João de Santo Tomás, Cursus Theologicus, II, q. 22, n.2


4- Juan José Sanguineti, La Filosofía de la Ciencia según Santo Tomás. EUNSA; Navarra: 1977. p.45