Carlos Nougué
Assim, ao contrário do que diz o nosso sedevacantista de primeiro tipo (ver o artigo III desta série), não é um suposto “instinto da fé” ou sensus fidei dado por Deus mesmo a cada fiel o que o faz professar de modo infalível as verdades divinas. Como vimos, cada fiel só pode fazer uma profissão de fé externa certa com um critério externo também certo, ou seja, sem nenhuma possibilidade de erro: o Magistério infalível da Igreja.
Mas, então, há de perguntar o nosso sedevacantista, de nada vale ou de nada serve a virtude infusa da fé? É claro que vale: a fé, sobretudo uma fé robusta, acompanhada de certos dons do Espírito Santo (o da sabedoria, o do intelecto e o da ciência), é capaz de compreender clara e firmemente muitas verdades. Imagine-se a robustez da fé de que Deus dotou um Santo Agostinho ou um Santo Tomás de Aquino, e entender-se-ão em parte os fulgores de inteligência dos mistérios divinos que lhes saíam da mente como em cascata. Mas o católico, incluindo Santo Agostinho e Santo Tomás, só pode ter certeza daquilo que discerne interiormente pela fé “se o confirmar”, como diz o Padre Calderón (ibid.), “e no grau em que o confirmar o Magistério da Igreja”.
Mas não é verdade de fé que o sensus fidei é infalível? Sim, o é, mas não como entende essa noção o nosso sedevacantista. Antes de tudo, ao contrário do que afirmam tanto os protestantes como os sedevacantistas, o sensus fidei não é um “instinto individual da fé dado por Deus a cada fiel”. “Sensus fidei do povo cristão” é outra maneira de dizer “consensus fidelium in doctrinam fidei”, e refere-se ao fato de que a “universitas fidelium in credendo falli nequit”, ou seja, quando a universalidade ou totalidade “moral” dos fiéis católicos professa uma verdade como sendo de fé, não pode enganar-se. Isto, sim, “é critério infalível da divina Tradição (cf. a Tese XII do Cardeal Franzelin, em Tractatus de divina Traditione, edit. 3ª, Romae 1882). Isto é verdade de fé católica” (idem).
Ao contrário do que, como veremos, diz o modernismo, “o sujeito deste ato ('id quod’ agit) é a Igreja universal, sem distinção entre clérigos e leigos; e o princípio pelo qual se obra (‘id quo’ agitur) é a fé sobrenatural. Mas a propriedade de infalibilidade deste ato não vem exclusiva, nem principal, nem formalmente da fé do povo cristão, e sim do Magistério da Igreja, cujo sujeito não é a Igreja universal, e sim o Papa e os bispos, e cujo princípio não é a fé, e sim o carisma da infalível verdade. Daí que a infalibilidade in credendo da Igreja universal se reduza própria e estritamente à infalibilidade in docendo da Hierarquia eclesiástica” (idem; negrito nosso), desde que, obviamente, como também veremos na hora certa, a Hierarquia não renuncie a esta infalibilidade. Pois bem, como diz ainda o Padre Calderón, embora ainda não se possa dizer que esta tese seja dogma de fé, “ela entretanto é doutrina católica certa”* (idem).
Aprofundemos a questão, para que não reste nenhuma dúvida a seu respeito. De fato, como dizia Santo Tomás (Suma Teológica, IIa-IIae, q. 1, a. 3: “Utrum fidei possit subesse falsum”), a virtude sobrenatural da fé, infundida por Deus mesmo na alma de cada fiel, é infalível em seu ato interno. Sucede porém que este ato não serve como critério infalível da Tradição, porque, nesta vida, ele é essencialmente indiscernível de qualquer disposição natural que se lhe assemelhe. Para o povo fiel saber com toda a certeza em que deve crer, as verdades de fé têm de ser propostas oralmente por um mestre infalível em seu ato externo, ou seja, por esse mestre enquanto instrumento fidelíssimo de Deus. Foram mestres assim “os profetas no Antigo Testamento, e o próprio Filho de Deus feito homem no Novo (Heb., I, 1), o qual prolonga seu magistério por meio do Sacerdócio hierárquico” (idem).
Diz contudo o nosso sedevacantista que “as verdades em que o cristão deve crer, por ultrapassarem nossa capacidade natural de conhecimento, são-nos como que reveladas por Deus”. Ora, se é verdade que esse “como que” é demasiado ambíguo para permitir afirmar com certeza o que quer dizer seu autor, não se pode porém evitar ver na frase algo que tangencia perigosamente um “angelismo” à Descartes ou à Maritain, ou seja, o atribuir aos homens coisas que não convêm senão aos anjos (cf. neste blog a série “O Cogito cartesiano, ou o pensar como causa do ser” e o artigo “Maritainismo resistente”). Naturalmente, de potentia absoluta “Deus poderia ter proposto as verdades de fé [aos homens] por uma locução interior tal, que fosse por si mesma critério evidentíssimo e infalível do caráter revelado de tal verdade, como se deu de fato com os anjos” (idem). Com efeito, Deus formou no intelecto dos anjos, sobrenaturalmente e ao modo de revelação interior, certas espécies mediante as quais eles pudessem crer em diversas verdades divinas. Atente-se, porém, para duas coisas. Primeira, nem a própria natureza angélica é capaz de “conhecer a essência sobrenatural do ato de fé; se cada anjo sabia com toda a certeza aquilo em que objetivamente devia crer, é porque a autoridade imediata de Deus” (idem) procedeu àquela como revelação interior. Segundo, pelo fato de a natureza do homem ser política ou social, e sua inteligência ser discursiva, diacrônica, e não intuitiva, sincrônica, não lhe convinha tal modo de revelação: como dizia Santo Tomás, em virtude de a natureza não ser senão “a razão de certa arte divina, interior às coisas mesmas, pela qual elas próprias se movem para determinado fim”,** ou seja, em virtude de Deus mesmo ter infundido em cada ente, como razão seminal,*** a natureza que lhe é própria, Ele não a violenta.**** Ora, é da natureza própria do homem chegar à verdade mediante “o ensinamento do magistério oral de suas autoridades naturais” (idem), e não é próprio do intelecto humano intuir nenhumas verdades, incluídas, natural e especialmente, as verdades divinas. “Daí que Deus, que tudo faz com ordem, nos tenha feito chegar sua revelação não por locução imediata interior, mas por mediação da palavra de mestres dotados de sua mesma divina autoridade” (idem).
Por isso, se de fato o fiel é levado a assentir ao Magistério da Igreja pela virtude infusa e interna da fé, a certeza da profissão de fé, porém, “depende formalmente dos critérios externos pelos quais pode reconhecer sua proposição por parte da Hierarquia eclesiástica. Se o fiel julga entender tal ou qual verdade na meditação dos mistérios cristãos, não pode estar certo do que crê senão na medida em que lho assegure o Magistério” (idem); e, ao contrário do que afirmam os protestantes e do que como que afirma o nosso sedevacantista, o fiel “não poderia estar certo nem sequer do que dizem os Evangelhos se o Magistério não lhe tivesse confirmado que são inspirados” (idem).
Já podemos, pois, começar a concluir esta parte. Para que se dê a infalibilidade do consensus fidelium in doctrinam fidei, ou seja, do sensus fidei, intervêm, por um lado, a virtude infusa da fé e, por outro, a proposição do Magistério, e é em razão desses dois elementos que a universalidade “moral” dos fiéis é dócil às verdades de fé. Mas é o Magistério da Igreja quem propõe as verdades em que se há de crer como de fé, e o faz com o penhor de sua autoridade infalível. Ou seja, o que se disse de cada fiel vale também para a universalidade dos fiéis: ela “não pode crer senão no que o Magistério lhe propõe e no grau de certeza com que lhe propõe; com esta diferença, porém: a docilidade da fé de um único fiel pode falhar, mas não a da Igreja universal” (idem).
É por esse motivo que a infalibilidade da Igreja in credendo, ou seja, a do conjunto dos fiéis enquanto crentes (sem distinção entre clérigos e leigos), se reduz à infalibilidade da Igreja in docendo, ou seja, à da docência da Hierarquia. (Cf. Franzelin, Tractatus de divina Traditione, op. cit., p. 114, nota 1: “Como o magistério, dotado deste carisma da infalibilidade, por sua ação ministerial, custodia, propõe, explica, protege a doutrina revelada, e conserva todos os fiéis na unidade da fé, por isso a infalibilidade ‘in docendo’ costuma ser dita ativa, e tem como finalidade a indefectibilidade ‘in credendo’, que pela ‘obediência da fé’ é a infalibilidade passiva de todo o corpo da Igreja”. Cf. também H. Mazzella, Praelectiones scholastico-dogmaticae, ed. 6ª, Torino 1937, vol. I, p. 450: “A infalibilidade da Igreja in credendo é efeito da infalibilidade in docendo, que portanto é seu princípio: a infalibilidade ativa dos Pastores reclama necessariamente a infalibilidade passiva dos fiéis”. Apud P. Calderón, ibid.) Em outras palavras, a infalibilidade da Igreja in credendo reduz-se à infalibilidade da Igreja in docendo porque esta é a causa daquela: “a proposição do Magistério, que goza com exclusividade do carisma da infalível verdade, é ao modo de causa eficiente e formal da profissão de fé; enquanto a virtude da fé da Igreja universal não é de per si propriamente infalível em seu ato externo, mas indefectível na santidade de sua docilidade ao Magistério. Há portanto um único princípio ou carisma de infalibilidade com respeito à profissão de fé: o concedido por Nosso Senhor ao sucessor de Pedro, sozinho ou com os bispos” (P. Calderón, ibid.).
Prova-se suficientemente com isso a falsidade de afirmar, como o faz o nosso sedevacantista, que a pregação da Hierarquia “não pode ter senão caráter de persuasão. Mais: ela não tem autoridade com relação aos atos de fé, ainda que confirmada por milagres. O ato de fé primordial (o crer em Deus) é infundido por Deus mesmo na alma de cada fiel, e é por ele que o homem se torna o fiel de Cristo que crerá em todas as Suas verdades”. (Afora a patente falsidade de afirmar que o “crer em Deus” seja um ato de fé necessariamente infundido por Deus, quando se sabe, racional e dogmaticamente [cf. São Paulo e o Concílio Vaticano I], que a razão natural humana é capaz de conhecer a Deus por indução das coisas criadas por Ele.) Mas, insistiria ainda o autor da tese adversária, por que então os teólogos falam da infalibilidade do sensus fidei como algo distinto do Magistério no que tange ao julgamento do pertencente à Tradição? Não bastaria, consoante o que se viu, falar apenas da proposição do Magistério? “Não”, responde ainda o Padre Calderón (ibid.), “porque muitas vezes as causas são invisíveis e só podemos julgar de sua existência através de seus efeitos. Há muitas verdades propostas infalivelmente pelo magistério ordinário universal de modo oral cuja existência só pode ser conhecida pela profissão de fé da Igreja universal. Do que, sim, devemos estar certos é que a universalidade dos fiéis nunca teria feito profissão de fé com respeito a alguma verdade se esta não tivesse sido proposta como tal pelo Magistério da Igreja, porque [a universalidade dos fiéis] não tem outro critério para estar certa do que foi revelado por Deus”. Em outras palavras, o Magistério infalível da Igreja é a regra próxima da fé (regula fidei quoad nos proxima), enquanto as Escrituras e a Tradição são a regra remota da fé (regula fidei quoad nos remota), da qual aquela, por sua própria natureza, não pode afastar-se.
(Continua.)
* Um dogma de fé só pode partir do Magistério eclesiástico justamente pelo fato de seu ministério não ter como critério próprio a fé nem a razão. Com efeito, embora um Papa deva considerar teologicamente – ou seja, humano modo – o que vai definir, o carisma da infalibilidade que o assiste “quando define um dogma não depende de sua fé nem de sua ciência pessoal, pois ele poderia ser herege interiormente e nem por isso deixaria de ser infalível. O critério de verdade do magister eclesiástico é a assistência do Espírito Santo atualizada por sua intenção ministerial, pois para falar em nome de Cristo ele não tem senão de fazê-lo intencionalmente; de maneira que, [...] quanto mais impositiva for a intenção com que propõe sua sentença, mais assistida será pelo Espírito Santo e menos margem de erro terá” (P. Calderón, ibid.). E o que se acaba de dizer é verdade de fé e deve pois ser crido docilmente; mas é negado pelos sedevacantistas.
** Comentário à Física de Aristóteles, livro II, n. 268.
*** Cf. Santo Agostinho, De Trinitate, III, 8-9, e De Genesi ad litteram, VI, 10.
**** Os milagres e a ação da graça sobre a alma humana não são uma violência contra a natureza dos entes, porque, como dizia Santo Tomás, em toda e qualquer criatura há uma potência obedencial com relação ao agente primeiro, ou seja, Deus (cf. Suma Teológica, IIIa, q. 11, a. 1, corpus).
Assim, ao contrário do que diz o nosso sedevacantista de primeiro tipo (ver o artigo III desta série), não é um suposto “instinto da fé” ou sensus fidei dado por Deus mesmo a cada fiel o que o faz professar de modo infalível as verdades divinas. Como vimos, cada fiel só pode fazer uma profissão de fé externa certa com um critério externo também certo, ou seja, sem nenhuma possibilidade de erro: o Magistério infalível da Igreja.
Mas, então, há de perguntar o nosso sedevacantista, de nada vale ou de nada serve a virtude infusa da fé? É claro que vale: a fé, sobretudo uma fé robusta, acompanhada de certos dons do Espírito Santo (o da sabedoria, o do intelecto e o da ciência), é capaz de compreender clara e firmemente muitas verdades. Imagine-se a robustez da fé de que Deus dotou um Santo Agostinho ou um Santo Tomás de Aquino, e entender-se-ão em parte os fulgores de inteligência dos mistérios divinos que lhes saíam da mente como em cascata. Mas o católico, incluindo Santo Agostinho e Santo Tomás, só pode ter certeza daquilo que discerne interiormente pela fé “se o confirmar”, como diz o Padre Calderón (ibid.), “e no grau em que o confirmar o Magistério da Igreja”.
Mas não é verdade de fé que o sensus fidei é infalível? Sim, o é, mas não como entende essa noção o nosso sedevacantista. Antes de tudo, ao contrário do que afirmam tanto os protestantes como os sedevacantistas, o sensus fidei não é um “instinto individual da fé dado por Deus a cada fiel”. “Sensus fidei do povo cristão” é outra maneira de dizer “consensus fidelium in doctrinam fidei”, e refere-se ao fato de que a “universitas fidelium in credendo falli nequit”, ou seja, quando a universalidade ou totalidade “moral” dos fiéis católicos professa uma verdade como sendo de fé, não pode enganar-se. Isto, sim, “é critério infalível da divina Tradição (cf. a Tese XII do Cardeal Franzelin, em Tractatus de divina Traditione, edit. 3ª, Romae 1882). Isto é verdade de fé católica” (idem).
Ao contrário do que, como veremos, diz o modernismo, “o sujeito deste ato ('id quod’ agit) é a Igreja universal, sem distinção entre clérigos e leigos; e o princípio pelo qual se obra (‘id quo’ agitur) é a fé sobrenatural. Mas a propriedade de infalibilidade deste ato não vem exclusiva, nem principal, nem formalmente da fé do povo cristão, e sim do Magistério da Igreja, cujo sujeito não é a Igreja universal, e sim o Papa e os bispos, e cujo princípio não é a fé, e sim o carisma da infalível verdade. Daí que a infalibilidade in credendo da Igreja universal se reduza própria e estritamente à infalibilidade in docendo da Hierarquia eclesiástica” (idem; negrito nosso), desde que, obviamente, como também veremos na hora certa, a Hierarquia não renuncie a esta infalibilidade. Pois bem, como diz ainda o Padre Calderón, embora ainda não se possa dizer que esta tese seja dogma de fé, “ela entretanto é doutrina católica certa”* (idem).
Aprofundemos a questão, para que não reste nenhuma dúvida a seu respeito. De fato, como dizia Santo Tomás (Suma Teológica, IIa-IIae, q. 1, a. 3: “Utrum fidei possit subesse falsum”), a virtude sobrenatural da fé, infundida por Deus mesmo na alma de cada fiel, é infalível em seu ato interno. Sucede porém que este ato não serve como critério infalível da Tradição, porque, nesta vida, ele é essencialmente indiscernível de qualquer disposição natural que se lhe assemelhe. Para o povo fiel saber com toda a certeza em que deve crer, as verdades de fé têm de ser propostas oralmente por um mestre infalível em seu ato externo, ou seja, por esse mestre enquanto instrumento fidelíssimo de Deus. Foram mestres assim “os profetas no Antigo Testamento, e o próprio Filho de Deus feito homem no Novo (Heb., I, 1), o qual prolonga seu magistério por meio do Sacerdócio hierárquico” (idem).
Diz contudo o nosso sedevacantista que “as verdades em que o cristão deve crer, por ultrapassarem nossa capacidade natural de conhecimento, são-nos como que reveladas por Deus”. Ora, se é verdade que esse “como que” é demasiado ambíguo para permitir afirmar com certeza o que quer dizer seu autor, não se pode porém evitar ver na frase algo que tangencia perigosamente um “angelismo” à Descartes ou à Maritain, ou seja, o atribuir aos homens coisas que não convêm senão aos anjos (cf. neste blog a série “O Cogito cartesiano, ou o pensar como causa do ser” e o artigo “Maritainismo resistente”). Naturalmente, de potentia absoluta “Deus poderia ter proposto as verdades de fé [aos homens] por uma locução interior tal, que fosse por si mesma critério evidentíssimo e infalível do caráter revelado de tal verdade, como se deu de fato com os anjos” (idem). Com efeito, Deus formou no intelecto dos anjos, sobrenaturalmente e ao modo de revelação interior, certas espécies mediante as quais eles pudessem crer em diversas verdades divinas. Atente-se, porém, para duas coisas. Primeira, nem a própria natureza angélica é capaz de “conhecer a essência sobrenatural do ato de fé; se cada anjo sabia com toda a certeza aquilo em que objetivamente devia crer, é porque a autoridade imediata de Deus” (idem) procedeu àquela como revelação interior. Segundo, pelo fato de a natureza do homem ser política ou social, e sua inteligência ser discursiva, diacrônica, e não intuitiva, sincrônica, não lhe convinha tal modo de revelação: como dizia Santo Tomás, em virtude de a natureza não ser senão “a razão de certa arte divina, interior às coisas mesmas, pela qual elas próprias se movem para determinado fim”,** ou seja, em virtude de Deus mesmo ter infundido em cada ente, como razão seminal,*** a natureza que lhe é própria, Ele não a violenta.**** Ora, é da natureza própria do homem chegar à verdade mediante “o ensinamento do magistério oral de suas autoridades naturais” (idem), e não é próprio do intelecto humano intuir nenhumas verdades, incluídas, natural e especialmente, as verdades divinas. “Daí que Deus, que tudo faz com ordem, nos tenha feito chegar sua revelação não por locução imediata interior, mas por mediação da palavra de mestres dotados de sua mesma divina autoridade” (idem).
Por isso, se de fato o fiel é levado a assentir ao Magistério da Igreja pela virtude infusa e interna da fé, a certeza da profissão de fé, porém, “depende formalmente dos critérios externos pelos quais pode reconhecer sua proposição por parte da Hierarquia eclesiástica. Se o fiel julga entender tal ou qual verdade na meditação dos mistérios cristãos, não pode estar certo do que crê senão na medida em que lho assegure o Magistério” (idem); e, ao contrário do que afirmam os protestantes e do que como que afirma o nosso sedevacantista, o fiel “não poderia estar certo nem sequer do que dizem os Evangelhos se o Magistério não lhe tivesse confirmado que são inspirados” (idem).
Já podemos, pois, começar a concluir esta parte. Para que se dê a infalibilidade do consensus fidelium in doctrinam fidei, ou seja, do sensus fidei, intervêm, por um lado, a virtude infusa da fé e, por outro, a proposição do Magistério, e é em razão desses dois elementos que a universalidade “moral” dos fiéis é dócil às verdades de fé. Mas é o Magistério da Igreja quem propõe as verdades em que se há de crer como de fé, e o faz com o penhor de sua autoridade infalível. Ou seja, o que se disse de cada fiel vale também para a universalidade dos fiéis: ela “não pode crer senão no que o Magistério lhe propõe e no grau de certeza com que lhe propõe; com esta diferença, porém: a docilidade da fé de um único fiel pode falhar, mas não a da Igreja universal” (idem).
É por esse motivo que a infalibilidade da Igreja in credendo, ou seja, a do conjunto dos fiéis enquanto crentes (sem distinção entre clérigos e leigos), se reduz à infalibilidade da Igreja in docendo, ou seja, à da docência da Hierarquia. (Cf. Franzelin, Tractatus de divina Traditione, op. cit., p. 114, nota 1: “Como o magistério, dotado deste carisma da infalibilidade, por sua ação ministerial, custodia, propõe, explica, protege a doutrina revelada, e conserva todos os fiéis na unidade da fé, por isso a infalibilidade ‘in docendo’ costuma ser dita ativa, e tem como finalidade a indefectibilidade ‘in credendo’, que pela ‘obediência da fé’ é a infalibilidade passiva de todo o corpo da Igreja”. Cf. também H. Mazzella, Praelectiones scholastico-dogmaticae, ed. 6ª, Torino 1937, vol. I, p. 450: “A infalibilidade da Igreja in credendo é efeito da infalibilidade in docendo, que portanto é seu princípio: a infalibilidade ativa dos Pastores reclama necessariamente a infalibilidade passiva dos fiéis”. Apud P. Calderón, ibid.) Em outras palavras, a infalibilidade da Igreja in credendo reduz-se à infalibilidade da Igreja in docendo porque esta é a causa daquela: “a proposição do Magistério, que goza com exclusividade do carisma da infalível verdade, é ao modo de causa eficiente e formal da profissão de fé; enquanto a virtude da fé da Igreja universal não é de per si propriamente infalível em seu ato externo, mas indefectível na santidade de sua docilidade ao Magistério. Há portanto um único princípio ou carisma de infalibilidade com respeito à profissão de fé: o concedido por Nosso Senhor ao sucessor de Pedro, sozinho ou com os bispos” (P. Calderón, ibid.).
Prova-se suficientemente com isso a falsidade de afirmar, como o faz o nosso sedevacantista, que a pregação da Hierarquia “não pode ter senão caráter de persuasão. Mais: ela não tem autoridade com relação aos atos de fé, ainda que confirmada por milagres. O ato de fé primordial (o crer em Deus) é infundido por Deus mesmo na alma de cada fiel, e é por ele que o homem se torna o fiel de Cristo que crerá em todas as Suas verdades”. (Afora a patente falsidade de afirmar que o “crer em Deus” seja um ato de fé necessariamente infundido por Deus, quando se sabe, racional e dogmaticamente [cf. São Paulo e o Concílio Vaticano I], que a razão natural humana é capaz de conhecer a Deus por indução das coisas criadas por Ele.) Mas, insistiria ainda o autor da tese adversária, por que então os teólogos falam da infalibilidade do sensus fidei como algo distinto do Magistério no que tange ao julgamento do pertencente à Tradição? Não bastaria, consoante o que se viu, falar apenas da proposição do Magistério? “Não”, responde ainda o Padre Calderón (ibid.), “porque muitas vezes as causas são invisíveis e só podemos julgar de sua existência através de seus efeitos. Há muitas verdades propostas infalivelmente pelo magistério ordinário universal de modo oral cuja existência só pode ser conhecida pela profissão de fé da Igreja universal. Do que, sim, devemos estar certos é que a universalidade dos fiéis nunca teria feito profissão de fé com respeito a alguma verdade se esta não tivesse sido proposta como tal pelo Magistério da Igreja, porque [a universalidade dos fiéis] não tem outro critério para estar certa do que foi revelado por Deus”. Em outras palavras, o Magistério infalível da Igreja é a regra próxima da fé (regula fidei quoad nos proxima), enquanto as Escrituras e a Tradição são a regra remota da fé (regula fidei quoad nos remota), da qual aquela, por sua própria natureza, não pode afastar-se.
(Continua.)
* Um dogma de fé só pode partir do Magistério eclesiástico justamente pelo fato de seu ministério não ter como critério próprio a fé nem a razão. Com efeito, embora um Papa deva considerar teologicamente – ou seja, humano modo – o que vai definir, o carisma da infalibilidade que o assiste “quando define um dogma não depende de sua fé nem de sua ciência pessoal, pois ele poderia ser herege interiormente e nem por isso deixaria de ser infalível. O critério de verdade do magister eclesiástico é a assistência do Espírito Santo atualizada por sua intenção ministerial, pois para falar em nome de Cristo ele não tem senão de fazê-lo intencionalmente; de maneira que, [...] quanto mais impositiva for a intenção com que propõe sua sentença, mais assistida será pelo Espírito Santo e menos margem de erro terá” (P. Calderón, ibid.). E o que se acaba de dizer é verdade de fé e deve pois ser crido docilmente; mas é negado pelos sedevacantistas.
** Comentário à Física de Aristóteles, livro II, n. 268.
*** Cf. Santo Agostinho, De Trinitate, III, 8-9, e De Genesi ad litteram, VI, 10.
**** Os milagres e a ação da graça sobre a alma humana não são uma violência contra a natureza dos entes, porque, como dizia Santo Tomás, em toda e qualquer criatura há uma potência obedencial com relação ao agente primeiro, ou seja, Deus (cf. Suma Teológica, IIIa, q. 11, a. 1, corpus).