sábado, 20 de dezembro de 2008

Natureza, ordem ao sobrenatural (II)

Sidney Silveira
Num outro texto, dizíamos nós que não há cisão entre natural e sobrenatural, mas ordem de um a outro. E mais: dávamos ali o conceito de “natureza” segundo Aristóteles (na Física, Livro II, 1, 192b, 10ss) e a importantíssima correção metafísica que lhe fez Santo Tomás — num formidável comentário. Pois bem: como li algures umas confusões entre “natureza divina” e “sobrenatural”, acho que vale a pena aprofundar um pouco o tema, tendo como base o Doutor Comum da Igreja. Tais precisões, penso eu, são úteis para todos os que cremos.

Em diferentes pontos de sua obra, o Angélico Doutor nos diz que o termo “sobrenatural” indica, antes de tudo, o que transcende — na ordem do ser e na do agir — toda a natureza criada. E, como ressalta Battista Mondin no seu bom Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d’Aquino, o sobrenatural é “intrinsecamente, originariamente e absolutamente Deus”. Este, por bondade, concede à criatura racional uma participação em Sua vida divina, que está muito além das possibilidades de qualquer natureza. Lembra ainda Mondin que, para Santo Tomás, tal dádiva pode dar-se seja no plano operativo (com as virtudes teologais e os dons do Espírito Santo), seja no plano ontológico (com a Graça santificante).

E se o sobrenatural transcende, ontologicamente, a todas as naturezas, nem por isso deve dizer-se que se contraponha a elas (nunca é demais recordar o famoso axioma que diz: “A Graça aperfeiçoa a natureza”). No seu comentário aos Nomes Divinos, obra do Pseudo Dionísio, Tomás define o sobrenatural como “o que ultrapassa todas as potências da natureza” (XI, lect. 4). Mas há maneiras muito distintas de manifestar-se a sobrenaturalidade, para o grande teólogo.

Assim:

a) A fé é uma luz sobrenatural;
b) A visão beatífica da essência divina é o fim sobrenatural;
c) A Graça é um dom sobrenatural;
d) Os milagres são sinais sobrenaturais;
e) A Teologia é o estudo dos mistérios sobrenaturais (de supernaturalibus mysteriis); etc.

Certas correntes teológicas — péssimas! — dos últimos 50 anos acabaram dando aparente validez ao chamado naturalismo, contrariando frontalmente o Magistério da Igreja. Ora, se a fé não se refere a um plano além das possibilidades da natureza (inclusive a humana), para que então a fé? Bastar-nos-ia a razão natural, que neste caso deixaria de ser preambula fidei para transformar-se ela mesma na consumada “explicação” da fé. Nessa perspectiva, o mistério de Maria semper Virgini, por exemplo, teria um esclarecimento racional acabado. Mas, na prática, como isto é formalmente impossível para a ciência dos homens, teólogos naturalistas escrevem coisas formidáveis na tentativa de “explicar” o inexplicável para a razão natural humana (que deveria ser crido com fé sobrenatural católica, como a Igreja sempre ordenou aos fiéis por meio do seu Magistério). Lêem-se coisas saídas da pena de alguns modernos teólogos naturalistas — em dicionários de Mariologia! — como a seguinte:

“(...) A virgindade de Maria não se apresenta como privilégio [ah, não?] individualista e distintivo [sic], mas como a afirmação prototípica da qualidade esponsal que a humanidade — por graça e redenção — assume em relação ao Esposo que vem, (...) como a forma integralmente receptiva e, portanto, plenamente ativa [?] que a humanidade assume diante da vinda de Deus para a carne humana”.

Alguém entendeu o xarope? Pois é, e o autor do verbete (de que só transcrevo uma ínfima parte, pois ocupa páginas e páginas em letra miúda) vai além e diz que

“(...) justamente por causa da pujança do símbolo [agora ficou claro: a virgindade perpétua era em sua opinião um símbolo] que em Maria-sempre-virgem abrange o espírito e o corpo, o apelo às exigências da aliança com o único Senhor, antes da condição criatural, se torna claro e indispensável”.

Ora, pelotas: lemos isto num dicionário de Mariologia!! E não me venha nenhum liberal agora pedir-me para citá-lo, porque só o li por acaso e ele hoje pertence ao meu particular Index librorum prohibitorum, pois acho que a sua leitura exaustiva não deve ser recomendada a ninguém (a propósito, vocês já perguntaram a um católico liberal o que ele acha de a Igreja — por anos e anos sem fim!! — ter tido um Index de livros proibidos?). Voltando ao verbete, assinalo o seguinte: quanta diferença entre esse texto empolado, resvaladiço e quase incompreensível e Santo Tomás de Aquino! Este não perde tempo em dizer, simplesmente, que a virgindade perpétua de Nossa Senhora é um milagre da onipotência divina (cf. Suma Teológica, III, q. 28, a 2).

Os exemplos de como a perda da noção de “sobrenatural” é daninha para o fiel católico são incontáveis. São exemplos práticos de como cair no racionalismo e enfraquecer a fé. Poderíamos enumerá-los à exaustão.

Não vale a pena.

O que vale é pedirmos, insistentemente, a Deus que nos dê a Graça (dom sobrenatural santificante), não obstante a nossa falta de méritos. Sobretudo nesta época natalina. Amém.