terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Sorteio da obra-prima de Santo Tomás



Sidney Silveira
Eu não poderia deixar de divulgar esta promoção que a editora É está fazendo do livro recém-lançado Questões Disputadas Sobre a Alma, de Tomás de Aquino. Bastar ir à página do Facebook da editora (em https://www.facebook.com/?ref=tn_tnmn#!/photo.php?fbid=486196921419119&set=a.213839598654854.50130.213460985359382&type=1&theater), curtir a postagem, compartilhá-la no próprio Face para participar de um sorteio.

Os vencedores ganharão um exemplar.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Retomada dos vídeos e a "Exortação aos Gregos", de Clemente de Alexandria


Sidney Silveira
Informo aos amigos que estão fazendo o mini-curso Ascese e Filosofia à luz do Tomismo que, partir desta semana, retomarei as gravações dos vídeos. Tive uns problemas pós-cirúrgicos que me obrigaram a parar com as atividades, por um tempo.

Outra novidade: após o recente lançamento das Questões Disputadas sobre a Alma, em edição digna do Aquinate, passei a última sexta-feira revisando, juntamente com a Profª. Rita Codá, o arquivo final do Protréptico de Clemente de Alexandria, que virá à luz com o seu devido título de Exortação aos Gregos, em edição bilíngüe (grego/português). A segunda pérola da Coleção Medievalia, da qual em breve voltarei a falar por aqui. Obra de alto valor literário e importância histórica.

O estilo de Clemente, nesta obra de crítica aos deuses e aos costumes gregos, é ferino. Eis um pequeno trecho do capítulo IV:

"Esses são os arquétipos de vossa sensualidade; essa é a teologia da arrogância; essas são as lições dos vossos deuses, que praticam convosco a concupiscência. (...) Pequenos deuses Pãs, jovens nuas, sátiros embriagados, falos em ereção, que vossas pinturas exibem abertamente, mesmo condenados pela intemperança. (...) Consagrais, portanto, em vossas casas, estelas impudicas (...). Vossos ouvidos se prostituíram, vossos olhos cometeram adultério, e, o mais estranho ainda: vosso olhar cometeu adultério antes dos amplexos libidinosos".   

Lobos raivosos e ovelhas sem aprisco


“Quando o mal triunfa, não se resolvem os problemas políticos por meio da política, (...) mas recorrendo aos princípios civilizacionais sem os quais sequer poderia haver política”.
Sidney Silveira
No denso De legibus, afirma Suárez que qualquer lei cujo objeto fosse uma pessoa privada não teria o caráter de lei. Na opinião do famoso jusnaturalista, isto se deveria não apenas ao seu patente defeito de obrigação (pois a lei deve obrigar ao conjunto dos cidadãos, e não a um só),[1] mas também à impossibilidade de haver verdadeira lei fora do bem comum. O raciocínio suareziano serve, a fortiori, para leis que beneficiem este ou aquele grupo de pressão política, sobretudo se contrário à lei natural, princípio mantenedor da coesão social. Tais leis não obrigam as consciências, ainda que se imponham no plano político, como tantas vezes acontece no mundo regido pela mentalidade liberal-libertária, fomentadora de um babélico pluralismo e de leis que jogam todos contra todos — sem ninguém entender-se de maneira razoável a si mesmo ou aos demais.
Retenhamos agora o seguinte: agir de acordo com a justiça é algo que inexiste fora da lei natural. Mas esta, embora não possa ser extirpada dos corações humanos — visto que os seus princípios são conaturais ao homem: buscar o bem e evitar o mal —, precisa do necessário apoio das leis positivas, que são a sua força no âmbito político. Isto porque o homem, não conseguindo livrar-se totalmente dos princípios universalíssimos da lei natural, pois até quando age mal busca algum bem para si, é porém capaz de se afastar dos corolários que deles decorrem, conforme salienta Santo Tomás.[2] Quando, pois, um filósofo católico diz que tal sociedade se volta contra a lei natural, está referindo-se aos preceitos secundários provenientes dela, e não aos seus princípios universais indefectíveis. Mesmo no caso de alguns pensadores católicos que penderam para o voluntarismo, como o citado Suárez.[3]
Não é necessário ser um Aristóteles para perceber que, se mais pessoas agem de acordo com a justiça, diminuem os conflitos e a sociedade tende a manter a unidade e as conseqüentes identidade e perdurabilidade. Mas isto não se dá por milagre, e sim por intermédio de leis positivas que coíbam o mal e promovam o bem — mas não um bem particular, subjetivo, episódico e anódino, e sim o bem comunitário, objetivo, perene e eficaz. A razão é simples: essencial e primariamente, a lei mira a universal ratio boni, e acidental e secundariamente, os bens individuais. Sucede que, quando é negligenciado até mesmo o direito fundamental à vida, decorrência direta da lei natural, é porque a justiça se ausentou da Pólis. Assim, por exemplo, uma sociedade que aprova a lei do aborto abortou a si mesma e ainda não sabe.
Chegar a tal ponto já implica ausência ou omissão do poder espiritual; ou alguém imagina o aborto aprovado em lei durante a Cristandade? Daí o problema em que se mete o católico liberal ao defender a “sã” laicidade: politicamente, quebra as suas lanças contra leis que contrariem o espírito do Evangelho, porém defende uma Igreja dedicada a questões intra muros, que jamais se meta em política. Mesmo se não leu a Utopia de Thomas More, com ela se identifica por uma espécie afinidade telepática: ambos têm, em comum, a perda da noção de hierarquia das leis, espelho da hierarquia de bens que há na realidade — os quais culminam em Deus. Em suma, o liberal católico, quando bem intencionado, quer recristianizar a política aproximando-a da lei evangélica, mas sem o apoio da Igreja cujo Credo professa.
Com intenções pejorativas, e muitas vezes sem saber o que diz, ele então chama de “teocracia” a pura e simples subordinação das leis humanas à lei divina — no tocante ao fim último dos homens. E, não obstante seja eventualmente homem piedoso e seguidor de alguns preceitos básicos, finge não entender o seguinte princípio magisterial, de simplicidade desconcertante: a Igreja não legisla sobre tráfego aéreo ou regras de futebol, mas toda vez que o bem espiritual (leia-se: salvação das almas) estiver em risco, ela tem autoridade para imiscuir-se nas leis e nos negócios humanos. Autoridade vinda do Alto.[4] Ah, como era claro o Magistério...
Visto que a Igreja cedeu a um mal disfarçado laicismo e não assume as posições políticas absolutamente inadiáveis, na gravíssima hora presente — a não ser de forma tíbia e sem dar qualquer tipo de retaguarda à ação dos leigos —, os católicos fiéis à doutrina se vêem na contingência de reagir de forma atomizada, ou seja, em pequenos grupos ou isoladamente, ao absurdo da aprovação de leis positivas contrárias à lei natural. Nestas ocasiões, trata-se de um espetáculo triste de ver, como no recente e bizarro episódio em que um grupo de defesa dos “direitos homossexuais” urrava violentas acusações contra católicos da TFP, nas ruas de Curitiba. A ponto de um destes ter recebido uma pedrada e ser ferido na cabeça,[5] como mostra um dos vários vídeos[6] disponíveis na internet. A propósito, pelo teor das palavras que proferiam os pró-gays, a libido defecandi estava elevadíssima, e tivemos a mais benemérita amostra de como se pensa com a pélvis ou com as suas adjacências glúteas.
Antes de tudo e por princípio, solidarizamo-nos com estes corajosos Quixotes[7] defensores da lei natural, que de público se colocaram contra o tsunami da descristianização — o qual já arrasou países e continentes outrora católicos. Mas lhes apontemos o seguinte, ainda que se aborreçam um pouco conosco: sem o apoio espiritual e pessoal de sacerdotes ou bispos, como também sem o suporte intelectual de gente formada no melhor da filosofia cristã, o resultado prático de sua ação será apenas o de conseguir aqui e ali arrebanhar novos prosélitos para o seu grupo. Para a Igreja e para a sociedade, se tratará de uma ação de pouca efetividade. Querem mudar isto? Arregimentem padres recalcitrantes (de boa consciência católica, senso de dever cívico e formação nem tão modernista, como a da maioria) para somar-se às suas fileiras, munidos de batinas e terço nas mãos. O resultado prático será multiplicado potencialmente ao infinito! Afinal, insultar ou apedrejar um padre de batina não é como insultar ou apedrejar um leigo; o efeito político será outro.
Existe um “pequeno” problema, é verdade: um padre que engrossasse as fileiras de uma ação como esta e, por exemplo, se pusesse a rezar diante de uma passeata gay, seria repreendido imediatamente pelo seu superior e talvez fosse enviado em missão à Conchinchina — onde se tornaria diretor espiritual de bodes e galinhas carijós. Por isso dissemos que é preciso ser padre “recalcitrante” e sem medo de represálias, e não um lânguido de má-formação que sequer tem noção do dever espiritual pelo qual será um dia cobrado. Seja como for, não custa tentar: se querem repercussão política, convidem padres para ações como esta, e o evento terá outra dimensão, além de fazer as pessoas refletirem, de alguma maneira, sobre o papel da Igreja na sociedade e sobre se realmente queremos um país materialista, hedonista e, em suma, anticristão. Escolham uma parada gay em Copacabana, e, ao lado dos padres, fiquem ali a rezar. Ganharão as manchetes do mundo, além de bordoadas e xingamentos.
Caros, a situação de hoje é anômala; não é que as ovelhas tenham saído do aprisco, como eventualmente sempre aconteceu, mas os pastores é que vêm deixando as ovelhas sem aprisco, à mercê das filosofias do mundo contra as quais São Paulo tanto nos alertara. Daí dizer o Pe. Álvaro Calderón, em A Candeia Debaixo do Alqueire, uma coisa com a qual concordo absolutamente: a situação doutrinal da Igreja é tal que, muitas vezes, católicos tradicionais se vêem na contingência de defender a autoridade de Cristo contra as autoridades eclesiásticas. Já os de “linha média” não se arriscam, aproveitam-se das concessões conseguidas unicamente em virtude da ação dos grilos falantes tradicionais e se mantêm entre a cruz e a espada — com hesitações hamletianas, sem nunca concluir o silogismo cuja conclusão os feriria de morte: a crise é doutrinal e qualquer postura católica sem base na doutrina de sempre, expressa em linguagem clara e inequívoca, assim como sem a presença formal da Igreja (no caso da débâcle política à qual assistimos em escala mundial), faz o demônio cair na gargalhada.
Ninguém mais ignora que se trata de uma luta civilizacional entre cristianismo e anticristianismo. E não é possível vencê-la sem a Igreja ou fora da Igreja, razão pela qual quando vejo católicos, leigos ou padres, bradando contra a opressora aldeia global anticristã, sem querer ver que apenas uma Igreja docente que reassumisse o magistério tradicional — de forma destemida e confrontadora — poderia opor-se a ela, tenho vontade de chorar, sobretudo se me vem à mente textos como o da Encíclica Caritas in Veritate. Pois lhes digo que até mesmo René Guénon (o gnóstico René Guénon!) escrevia, em meados dos anos 20, no livro A Crise do Mundo Moderno, mais ou menos o seguinte: o espírito protestante corroeu a Igreja Católica e esta é a única (!) instituição capaz de se contrapor, no Ocidente, ao estado de coisas fomentador do caos. Infelizmente, a sua defecção no plano político contribuiu para a conformação das sociedades contemporâneas, presas entre socialismos e liberalismos, como se não houvesse outra via.
Ações como esta — em que os católicos enfrentaram manifestantes pró-movimentos gays, como na impressionante defesa da Catedral de Neuquén, por fiéis argentinos, durante uma passeata LGBT — são sem dúvida importantes, pois só lascando o osso se faz a sociedade pensar. Mas é preciso pelo menos tentar lutar com a Igreja, mesmo que só seja possível contar com meia dúzia de corajosos padres; eles ali seriam a identidade da Igreja perante a sociedade. E mais: diante de homens de batina, os adversários temeriam o confronto, pois aprenderam com o passado que não se devem produzir mártires para a Igreja.
Conselhos como este partem da nossa firme convicção de que, quando o mal triunfa, não se resolvem os problemas políticos por meio da política — transformada em luta intestina pelo poder —, mas recorrendo aos princípios civilizacionais sem os quais sequer poderia haver política.[8] Noutras palavras: a derrocada civilizacional só pode resolver-se por algo que esteja espiritualmente acima da política. Algo supra ou metapolítico. E, a esta altura dos acontecimentos históricos, esse algo é a irrevogável lei evangélica,[9] da qual “ai daquele que retirar ou acrescentar um só iota”.[10]
Lei à qual estão obrigados não apenas os indivíduos, mas também as sociedades, como frisava Leão XIII.
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1- Evidentemente, pode haver leis positivas que tenham por objeto, por exemplo, criar sanções ou definir parâmetros de ação para certa categoria ou classe de cidadãos. Mas mesmo nestes casos, para que sejam legítimas, é preciso não contrariarem duas coisas: a) os princípios universais que estão preceituados na lei natural; b) a utilidade comum da categoria a que se referem, seja ela de engenheiros, médicos ou lixeiros. Portanto, embora estas leis não estejam diretamente preceituadas a todos os cidadãos, o estão indiretamente, se se considerarem os princípios de que partem.
2- Suma Teológica, I-II, q.94, art. 6, corpus.
3- Não é o caso de polemizar, neste breve texto, com aqueles que negam ser Suárez um voluntarista.  Para tanto nos bastaria mostrar certa linha de continuidade entre as noções de direito de Ockham, Grotius e Suárez.  Seja como for, o fato é que, por mitigar algumas teses desses dois autores, porém aceitando-as em seus princípios, Suárez recebeu no seio da escola tomista o justo epíteto de “voluntarista moderado”. Ou nem tão moderado...
4- Cfme. Jo. XIX, 11.
5- Trata-se do Sr. Coutinho, a quem conheci recentemente, quando da palestra proferida no Rio por mim e por meu irmão, Ricardo da Costa, intitulada O mito da Idade Média. Na ocasião, após o evento o Sr. Coutinho ofereceu-nos uma saborosa rodada de pizzas. Solidarizo-me, pois, com ele e espero que a ferida não lhe tenha trazido maiores conseqüências.
6- Ir ao minuto 16’32 do vídeo ao qual alude a presente nota.
7- Como ser católico no mundo com a presente configuração sem ter um quê de Quixote?
8- E também a convicção de que a presente crise eclesial só poderá resolver-se por um milagre gigantesco, na improvável circunstância de que este esteja nos desígnios divinos.
9- Lc. XVI, 17.
10- Cfme. Ap. XXII, 18.

domingo, 27 de janeiro de 2013

Breve lição de história ao deputado Jean Wyllys

A Igreja Católica e a escravidão

Prof. Dr. Ricardo da Costa*

Vivemos em uma época conturbada. Qualquer coisa afirmada levianamente ganha auréola de verdade. Por exemplo, recentemente, o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) disse que sessenta por cento dos congressistas brasileiros utilizavam serviços de prostitutas e que, por isso, eles gostariam de gozar essa atividade em “locais mais seguros”. Conclusão: para o deputado, deveríamos regulamentar a vida das meninas. Rapidamente a notícia ganhou as manchetes dos jornais. Contudo, dias depois, Wyllys voltou atrás – em uma matéria infinitamente menor, claro: baseou sua afirmação em sua “percepção da sociedade brasileira”, e que, de fato, desconhecia casos de pagamento de prostitutas por colegas.

Bem, cito o deputado do PSOL porque o próprio se valeu de um trecho de uma mensagem do papa Bento XVI no XLVI Dia Mundial da Paz para mais uma de suas afirmações bombásticas. O papa defendera a “estrutura natural do matrimônio” – a união entre um homem e uma mulher – quando negou que quaisquer outras formas radicalmente diversas de união fossem igualmente consideradas, pois elas “prejudicam, desestabilizam e obscurecem a função insubstituível do casamento”. Fazer essa equiparação constituía uma “ofensa contra a verdade da pessoa humana e uma ferida grave infligida à justiça e à paz”. Parafraseando o papa, o deputado afirmou que “ferida grave infligida à justiça e à paz foi a escravidão de negros africanos apoiada pela Igreja Católica”.

Nesse caso, Jean Wyllys não está só. Essa é uma das acusações costumeiras que costumam ser feitas à Igreja. Teria ela, segundo seus detratores, apoiado o sistema escravocrata, especialmente o ocorrido na África no período moderno (séculos XVI-XIX). Isso é verdade? Não. A verdade é exatamente o contrário disso. Vamos (mesmo que brevemente) aos fatos?

Na Bíblia há várias passagens relativas a escravos (especialmente o Antigo Testamento). Quase sempre são prescrições atenuantes. Por exemplo: não se deve enganar um escravo, nem utilizá-lo em tarefas degradantes ou serviços desnecessários; ao escravo é reservado o dia de descanso (sábado). Em resumo: apesar de reconhecer a escravidão, a religião a atenuava. Essa foi basicamente a herança do mundo antigo no que diz respeito aos preceitos religiosos.

Com a ascensão social e política da Igreja na Idade Média e a consequente cristianização das monarquias, a pressão a favor dos pobres, das mulheres e dos escravos tornou-se maior. Por exemplo, uma lei do século VI (sob influência da Igreja) afirmava que nenhum escravo poderia ser preso caso estivesse em um altar católico: seu dono deveria pagar uma pesada multa caso fizesse isso. Nesses séculos conhecidos pelos especialistas como Alta Idade Média (V-X) o Catolicismo que se difundiu na Europa pressionou aquelas sociedades a considerar a escravidão algo ultrajante aos seres humanos, já que, pela fé em Jesus Cristo, somos todos filhos de Deus (Gl 3:26).

Apesar disso, a escravidão só lentamente diminuiu – para dar lugar, pouco a pouco, à servidão. Com ela, a dignidade humana estava muito acima da escravidão. Nessa, o escravo era uma coisa que falava; naquela, o servo tinha deveres (e muitos!) – mas também direitos (como, por exemplo, a inalienabilidade da terra).

Mas os homens são dificilmente civilizados (e com revezes regulares). Mesmo com a pregação regular da Igreja, na Europa medieval a escravidão continuou tão comum que teve que ser reiteradamente condenada por ela (Concílios de Koblenz, em 922, de Londres, em 1022, e no Conselho de Armagh, ocorrido na Irlanda em 1171). Naquele Concílio de Londres, por exemplo, foi decidido: “Que futuramente, na Inglaterra, ninguém queira entrar naquele comércio nefasto no qual estavam acostumados a vender homens como animais irracionais” (artigo 27).

O problema era que as antigas leis romanas, e seu código civil, reorganizado nos anos 529-534 pelo imperador bizantino Justiniano I como Corpus Iuris Civilis (Conjunto do Direito Civil), regulamentavam a escravidão. Segundo ele, embora o estado natural da Humanidade fosse a liberdade, os direitos dos povos poderiam, no entanto, substituir a lei natural e escravizar pessoas. Basicamente um escravo era: 1. alguém cuja mãe era escrava, 2. qualquer pessoa capturada em batalha, 3. qualquer um que se vendeu para pagar uma dívida (fato comum nos primeiros séculos medievais).

Com a ascensão do Cristianismo, o direito também se cristianizou. Os advogados medievais, a partir do século XI, chegaram à conclusão que a escravidão era contrária ao espírito cristão. Isso para cristãos (e que não me venha nenhum fariseu acusar a Igreja de não legislar para não cristãos). Em contrapartida, por exemplo, foi o Islã quem difundiu largamente a escravidão. Vejamos isso com mais pormenor.

Começo com uma citação do grande historiador Fernand Braudel (1902-1985): “O tráfico negreiro não foi uma invenção diabólica da Europa. Foi o Islã, desde muito cedo em contato com a África Negra através dos países situados entre Níger e Darfur e de seus centros mercantis da África Oriental, o primeiro a praticar em grande escala o tráfico negreiro (...). O comércio de homens foi um fato geral e conhecido de todas as humanidades primitivas. O Islã, civilização escravista por excelência, não inventou, tampouco, nem a escravidão nem o comércio de escravos”.

Aqui chegamos à escravidão negra. Muitos séculos ANTES da chegada dos brancos europeus à África, tribos, reinos e impérios negros africanos praticavam largamente o escravismo, exatamente como os berberes (e demais etnias muçulmanas). Os europeus do século XVI tinham verdadeiro pavor de deixar o litoral ou mesmo desembarcar de seus navios e avançar para longe da costa e capturar escravos. Estes eram trazidos pelos próprios africanos, que tinham grandes mercados espalhados pelo interior do continente, abastecidos por guerras entre as tribos, ou mesmo puro sequestro. Isso pode ser facilmente comprovado, por exemplo, com a descrição do império de Mali feita pelo cronista muçulmano Ibn Batuta (1307-1377), um dos maiores viajantes da Idade Média, e o depoimento de al-Hasan (1483-1554) sobre Tumbuctu, capital do império de Songai. Ademais, havia tribos africanas que praticavam sacrifícios humanos, naturalmente de escravos. Às vezes, para interromper a chuva, mulheres negras (e escravas) eram crucificadas.

Entrementes, a Igreja Católica, reiteradamente, condenava a escravidão. Há inúmeras bulas papais a respeito: Sicut Dudum (1435) – Eugênio IV manda libertar os escravos das ilhas Canárias; em 1462, Pio II instrui os bispos a pregarem contra o tratamento de escravos negros etíopes, e condena a escravidão como um tremendo crime; Paulo III, na bula Sublimus Dei (1537) recorda aos cristãos que os índios são livres por natureza (isto é, ao contrário dos negros, eles não praticavam a escravidão); em 1571 o dominicano Tomás de Mercado declarou desumana e ilícita a escravidão; Gregório XIV (Cum Sicuti, de 1591) e Urbano VIII (Commissum nobis, de 1639) condenaram a escravidão.

Paro no século XVII. Há muito mais. Mas qual é o resumo da ópera? Devemos estudar o passado, não inventá-lo.

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* Medievalista. Professor efetivo da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Site: www.ricardocosta.com

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Quarenta horas de reparação pelo carnaval


Sidney Silveira
O amigo Pedro de Aquino pede-me que divulgue um vídeo por ele editado, no qual se faz um chamado para que realizemos um pequeno sacrifício espiritual, em reparação pelos pecados que se cometem — sobretudo contra a virtude da castidade — durante o carnaval. Divulgo-o com gosto.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

As filhas dos pecados capitais são pecados mortais?



Sidney Silveira
Resposta a um aluno do curso "Ascese e Filosofia à luz do Tomismo". Bem, antes que os chatos reclamem e a mero título de precisão, ressalto o seguinte: ao dizer que Platão concebe o mundo como proveniente de uma realidade imaterial ou supra-material, não me refiro ali propriamente ao artífice Demiurgo, mas sim à Idéias que ele contempla para plasmar o mundo.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O lançamento do ano, em filosofia!

Sidney Silveira
Já corre pelos Facebooks da vida o seguinte: finalmente estão vindo à luz as Questões Disputadas Sobre a Alma, de Santo Tomás de Aquino, aguardado lançamento da editora É ao qual fiz referência várias vezes aqui no Contra Impugnantes. Trata-se do texto completo do Aquinate, obra capital que aborda a um só tempo temas gnosiológicos, psicológicos, antropológicos e metafísicos.

O livro — traduzido pelo querido amigo Luiz Astorga — possui acurada apresentação de Carlos Augusto Casanova e 467 densas notas ao texto do Aquinate. Ele inaugura a Coleção Medievalia,  cujo propósito, como escrevi alhures, é suprir uma das graves lacunas editoriais em nosso país: a ausência de publicações em língua vernácula de clássicos da filosofia do período que se estende do neoplatonismo até o ápice da metafísica cristã, no século XIII. O próximo a sair em breve será o Protréptico, de Clemente de Alexandria, já em processo de finalização da edição, obra traduzida pela professora de grego Rita Codá, do Mosteiro de São Bento do Rio e do Colégio Pedro II, onde leciona latim.

Não tenho a menor dúvida de que este é o grande lançamento do ano no Brasil, na área de filosofia! 

Creio que, em breve, o livro estará à venda na loja virtual da editora É, assim como nas principais livrarias do país.

Considero esta edição uma vitória, por um conjunto de circunstâncias às quais posso aludir noutra oportunidade.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Quarto vídeo no ar

Sidney Silveira
Já está no ar o quarto vídeo referente à Primeira Aula do curso Ascese e Filosofia à luz do Tomismo. A demora em inseri-lo deveu-se a alguns problemas técnicos, que não pudemos sanar de todo. Assim, o áudio está com a qualidade um pouco inferior à dos outros vídeos; pareço o Romário falando, meio sibilante. Mas dá para ouvir muito bem; depois, se preciso, resolveremos este problema.

Em breve, o primeiro vídeo da segunda aula — da qual disponibilizei um trecho noutra postagem do Contra Impugnantes — também estará no ar.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Pequeno aviso e pedido

Sidney Silveira
Aos amigos que estão fazendo o curso Ascese e Filosofia à luz do Tomismo: o Fórum foi acionado e vocês podem comunicar-se comigo por lá. É melhor do que pelo meu e-mail, pois neste caso há o risco de a mensagem perder-se em meio a outras que nada têm a ver com o curso.

Peço, portanto, que se comuniquem por lá. Responderei às questões no próprio Fórum ou no decorrer de outros vídeos.

Abraço a todos.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A alma do liberalismo



Vimos um camelo a dançar.
(Camelum vidimus saltitantem.)

São Jerônimo
Contra Helvídio, XVIII, 226

Sidney Silveira
O liberal militante, em seu vertiginoso afã de liberdade, é como um louco que, valendo-se dos argumentos da mímica circense, pretendesse convencer ao seu psiquiatra de que os cachorros são livres para miar, e os gatos para latir. O fato de que isto jamais se dê na realidade é mero detalhe; um tanto incômodo, decerto, porém sem maior relevância perante a omnímoda liberdade de consciência que o liberal crê existir, a qual o induz a discorrer sobre várias idéias sem jamais remontar aos fundamentos das premissas implicadas.
A comparação acima nos serve para apontar o fato de que o liberalismo, em qualquer de suas correntes — e estamos falando de uma hidra multicéfala — não é propriamente uma teoria, mas o espírito engendrador de mil teorias. Um espírito de negação dos princípios da ordem do ser, que, apelando a uma maliciosa profilaxia, fecha culpavelmente os olhos para o arcabouço metafísico que impugnaria as suas teses religiosas e políticas, assim como parte das econômicas.
É, portanto, a coisa mais comum do mundo ver um liberal fugir às definições essenciais como o diabo foge da cruz. Tanto a precisão conceptual como o raciocinar a partir de princípios universais parecem atentar fragorosamente contra a sua liberdade de consciência. E não se atreva ninguém a insultar um liberal pedindo-lhe que defina — com rigor mínimo — os termos “liberdade” e “consciência”: em alguns casos, ele se defenderá dizendo que não se trata de filosofia, sem perceber que com isto invalida in nuce as próprias teorias; noutros, manterá a opinião mesmo diante das mais avassaladoras objeções. Seja como for, incomoda-o letalmente o fato de que, para pensar com retidão e organicidade, é preciso vencer o problema básico da relação entre nomes, conceitos e coisas. Superar os termos equívocos.
A Torre de Babel é o seu altar-mor, epítome da natureza humana que pretende chegar a Deus orgulhosamente por esforços próprios, sem o auxílio luxuoso da Graça. E por isso se perde na multiplicidade, no caos, numa espécie de dissenso plurânime que, invertendo a ordem dos bens, pretende fazer da liberdade uma meta política, sem imaginar que, como diz o tomista Jorge Martínez Barrera no livro A Política em Aristóteles e Santo Tomás, “a liberdade não pode ser o fim de uma comunidade política moralmente aperfeiçoadora porque tal comunidade só existe quando as ações que a conformam são atos, e não potências”, e a liberdade, no vocabulário técnico da filosofia, é um conceito afim ao de potência: é liberdade de algo e para algo. A liberdade está para a paz social, que é o bem das comunidades humanas, assim um instrumento está para o fim a que se destina.
Fazer da liberdade a finalidade conformadora da política foi o fogo prometéico com que o liberalismo seduziu os homens. Fogo que gerou a babel de teorias políticas, de seitas, de partidos, de teses econômicas, de sociedades secretas, etc., que o liberalismo é pródigo em gerar. Assim, embora em clave distinta da assinalada por Barrera, diz com total acerto Olavo de Carvalho que nenhuma teoria política séria pode tomar como princípios fundantes as idéias de “liberdade” e “propriedade”. Somos compelidos a assinar embaixo.
Eximindo-se, pois, de explicar amiúde termos centrais que servem de pano de fundo para as suas teorias, o liberal militante sente-se livre como um cavalinho de carrossel a saltar sobre quimeras. Neste sentido, o liberalismo (repitamos: em qualquer de suas inúmeras correntes!) é uma peculiar forma mentis cuja loquacidade é proporcional à ambivalência — ou mutivalência — de que se vale. Em tão sombrio contexto, cumpre-nos dizer que a supremacia desse espírito de negação dos princípios que é o liberalismo só foi possível graças ao colapso, no terreno ético-político, da noção cristã de Summum Bonum, como apontou José Guilherme Merquior no livro O Argumento Liberal. Apenas esqueceu-se de dizer Merquior que tal colapso só se consolidou a partir do paleoliberalismo do final do século XVIII e começos do XIX. Em breves palavras: o liberalismo é concausa da perda da noção cristã de Sumo Bem no plano político, e não a sua conseqüência.
Se aristotelicamente explicamos a um liberal que a liberdade (a verdadeira, que radica na vontade e se materializa nas escolhas, e não tem como fonte a consciência individual) acontece apenas em relação aos meios, pois os fins já nos estão dados, ele trinca os dentes. Reiteremos isto com outros termos, a título de procedimento mnemônico: em toda e qualquer natureza, não há liberdade com relação aos fins, e quando estes não se cumprem significa que a natureza se desnaturou: é o caso da figueira estéril do Evangelho, de um olho que não vê, de um pé que não anda, de um homem que habitualmente não diz a verdade. Trata-se de naturezas malogradas, ou seja, que apresentaram defeito nalguma das propriedades emanadas de sua essência.
Os limites da liberdade estão circunscritos, pois, pela forma entitativa, que é princípio de operação. Voltar-se contra as potências inscritas na própria forma é a “prerrogativa” do ente humano à qual o cristianismo chamou de pecado. Em nenhum outro ente natural composto de matéria e forma é possível agir contrariamente à sua própria natureza; no máximo, esta se degrada pelo princípio de corruptibilidade material, que pode chegar ao ponto de destruir a forma, caso por exemplo da morte. O homem é o único ente capaz de degradar a própria forma antes de corromper-se a matéria. Podemos por aí dimensionar que o pecado é uma derrota metafísica, e nela se corrompe a vontade, potência onde reside a liberdade. É claro que o liberal, homem pragmático, não está preocupado com tais sutilezas de ordem teorética. Deixemo-lo contemplar cágados voadores e saborear um pouco mais o fruto proibido.
Conceito afim ao de potência, e não ao de ato, como acima dissemos, a liberdade manifesta-se na escolha amorosa e ordenada do bem. Ou, noutra formulação: o bem — no plano metafísico, assim como no político — é o fim da liberdade, sendo o amor o ato livre da vontade na escolha efetiva do bem. Em suma, o amor é o ato livre por excelência, desprovido de amarras de quaisquer naturezas; porém se trata de um ato sui generis, que, se se realiza fora do fim ao qual tende a potência que o possibilita, a derroga e se anula. O problema do liberal militante é que, em geral, está incapacitado para compreender que não há genuína liberdade sem amor (mesmo mantendo-se a faculdade de escolha, pois liberdade é mais que livre-arbítrio, como veremos), e o amor pressupõe o bem e a verdade. Comunidades de satanistas ou de nazistas, por exemplo, só podem dizer-se “livres” por uma torta analogia, pois são fundadas no erro e no desamor, que matam a liberdade e escravizam o homem.
Em resumidas contas, a liberdade é potência para a felicidade, e só se pode realizar plenamente no ato que a especifica: a posse do bem na deliberação devida da ordem de bens que há na realidade. E a ordem, no plano natural, tem a pessoa humana no ápice; e, no plano sobrenatural — que é a sua razão de ser, pois o natural ordena-se ao sobrenatural como a seu fim próprio —, tem como fim a Deus, criador e mantenedor de todos os bens, fonte perene da felicidade. A propósito, o pecado de Lúcifer, segundo Santo Tomás, foi não deliberar, ao amar-se de maneira desordenada, a respeito do bem sumamente perfeito e amável, que é Deus, e com isto subtraiu-se à ordem e se danou. Tendo sido criado livre, Lúcifer perdeu formalmente a liberdade que Deus lhe outorgara para ser feliz, restando-lhe um arremedo de livre-arbítrio que não lhe permite sequer sair do ódio e da maldade em que jaz. Dotado de poderosíssima inteligência, anuiu ao mal com plena ciência, sofrendo como pena, ipso facto, a perda da liberdade, em seu real sentido metafísico.[1]
Reiteremos o seguinte: não existe liberdade fora do amor (êxtase da potência volitiva) e da verdade (êxtase da potência intelectiva). E frise-se que não tomamos liberdade e livre-arbítrio como conceitos unívocos, pois, como dizia Santo Agostinho, livre-arbítrio é a faculdade de escolha entre isto ou aquilo, entre o bem ou o mal, etc., ao passo que a liberdade — repitamos, agora com o Doutor da Graça — só se pode lograr na escolha consciente e amorosa do bem. Para ficar ainda mais clara a formulação: não somos livres porque escolhemos, mas escolhemos porque somos livres, pois a liberdade é, ontologicamente, anterior às escolhas pelas quais se manifesta; é o horizonte possibilitante delas.
Como a liberdade implica o uso da inteligência, a qual nos faculta mensurar as escolhas a partir da apreciação dos dados, chegamos a outra definição: liberdade é potência para o bem apreendido retamente pela inteligência. Radica na vontade, que tem sobre a inteligência superioridade acidental no operar, pois a vontade move todas as demais potências no ato de escolha, mas inferioridade essencial quanto ao ser, pois a vontade nada seria sem a inteligência. A absurdidade de qualquer posição voluntarista está em que não leva em conta um fator decisivo: a moção primordial da inteligência sobre a vontade se dá com relação à forma intelectiva do bem, e não quanto a este ou àquele bem particular, o qual sequer poderia ser apetecido pela vontade se a inteligência não lhe tivesse subministrado o conceito de bem.
Sem compreender estes e outros princípios, o liberal pode eventualmente transformar-se num economista competente em apresentar fórmulas para aumentar a reprodutibilidade dos bens materiais no seio das sociedades, como foi o caso de Mises. Mas ocorre o seguinte: faltam-lhe critérios objetivos de moralidade, razão pela qual sucumbe, na melhor das hipóteses, ao formalismo das morais categóricas e utilitaristas. Ademais, o mercado é o idolatrado bezerro de ouro do liberal; além dele, da consciência e da liberdade, quase tudo é subjetivo e está no plano individual. É como se o indivíduo fosse, ao modo de Protágoras, a medida de todas as coisas. Infelizmente, o liberalismo não consegue superar as aporias das brumosas definições de “consciência” e “liberdade” que vai perpetrando, em suas incontáveis correntes. Se porventura o liberal ouve que, para Santo Tomás, o limite da propriedade é o bem comum, desmaia de indignação.
Estas são razões por que o liberal habitualmente tenta apagar as pegadas de sua inconsistência basilar, nas perspectivas moral e gnosiológica. Trata-se de um prestidigitador que procura convencer as pessoas de que, para as suas teorias ficarem de pé, não é preciso apelar a princípios metafísicos. Isto ocorre sobretudo quando o liberal é repetidor das teses de seus mestres; neste caso, ele pula sobre os tamancos quando, por exemplo, lhe mostramos que a praxeologia de Mises padece de uma confusão entre eudaimonismo e hedonismo, e mais, que os atos propriamente humanos não podem ter como base a fuga do desconforto, como pensava o economista austríaco. Mas quando este pontifica, na Ação Humana, que a teologia cristã “condenou as funções animais do corpo humano e definiu a alma como algo externo aos fatores biológicos”, digamos, sem matizações, que está perpetrando uma calúnia...
Vale registrar o seguinte: por trás da imensa maioria dos liberalismos — sejam políticos, econômicos ou cristãos — vemos a sombra da moral de John Locke, cujos esforços mais persistentes, como lembra o meu querido amigo tomista Luiz Astorga, centraram-se na tentativa de inverter o conceito clássico de natureza, atomizá-lo, individualizá-lo. A moral lockeana é aquela em que o conteúdo inteligível da lei natural se transforma num vácuo hediondo. Daí que o laicismo, apelidado pelo católico liberal de sã laicidade, e o ecumenismo, na forma do indiferentismo religioso, sejam pressupostos da Carta sobre a Tolerância de Locke grandemente assimilados pelos liberais; pressupostos estes de um mundo em que a lei natural, como espelho da lei eterna, não existe. É absurda.
Ora, sem a noção correta de lei natural a queda no utilitarismo é automática, e pior: num utilitarismo materialista, embora de maneira disfarçada na obra dos liberais mais competentes. Seja como for, não existem propriamente direitos naturais para um liberal de boa cepa, e quando este eventualmente defende a existência da lei natural é com tantos conceitos equívocos que, em verdade, parece falar de outra coisa. Na verdade, o utilitarismo de Locke — que chegara ao ponto de considerar o direito de herança como o laço que une as famílias! — foi passado a seus descendentes liberais com variantes mais ou menos aporéticas.
Tais idéias fizeram escola no liberalismo, que se deblatera contra o Estado mas no fundo não consegue transcendê-lo, malgrado o considere útil na medida em que proteja a propriedade e garanta o atendimento às demandas do mercado. O seu mantra monocórdico é: quanto maior a intervenção estatal, menor a capacidade de prover os bens de que a sociedade precisa. Ocorre que, se a premissa valesse apenas para o âmbito econômico, poderíamos aceitá-la — com as devidas exceções exigidas pelos fundamentos metafísicos da ordem moral —, mas ela é por osmose transpassada ao terreno político, razão pela qual o liberal tende a considerar qualquer intervenção do Estado, mesmo em questões não-monetárias, como ações indevidas e “estatizantes”.
O pior de tudo reservamos para o final: o liberal católico. Após morder com vontade o fruto proibido da falsa liberdade, o pânico deste com relação à história da Igreja tornou-se indisfarçável. A Inquisição, as Cruzadas, os dogmas imutáveis, o Index, a posição dos principais teólogos da Igreja com relação à usura, o fato de ela não se colocar em paridade com as demais religiões ou seitas, os anátemas, a teoria dos dois gládios, tudo isso e muito mais — que o liberal estudou en passant — é concebido em sua mente culpavelmente confusa como se fossem erros transitórios superados pela Igreja aggiornata pós-Concílio Vaticano II. Na melhor das hipóteses, são fatos historicamente explicáveis, mas indefensáveis em si. É como diz o Pe. Calderón em A Candeia Debaixo do Alqueire: para o liberal, a autoridade — mesmo legítima — coage a liberdade.
Assim, para não se ver na dificuldade de compreender em profundidade que o é o carisma do Magistério participado por Cristo ao Corpo Docente da Igreja (Papa e Bispos), o liberal católico simplesmente se põe a matizá-lo, diminuí-lo, adaptá-lo à sua consciência individual. Entre o impositivo Magistério ex cathedra, que excluía da sociedade cristã os hereges, e o dialogado Magistério ex Papamobile, que não raro tangencia várias heresias, prefere este último porque se enxerga nele perfeitamente. Portanto, o seu amor à Igreja fundada por Cristo é fake, pois na verdade embute, de maneira indisfarçável, uma espécie de autoglorificação. Trata-se, como dizia São Pio X na Pascendi, de um infiltrado altamente perigoso. Hoje talvez dissesse São Pio X que os infiltrados são os tradicionais.
Para termos uma pálida idéia de como o liberal católico pode chegar a odiar o Magistério tradicional da Igreja, citemos o caso de Lord Acton, que tentou impedir de todas as formas a proclamação — durante o Concílio Vaticano I — do dogma da infalibilidade papal, mobilizando meio mundo para tanto. Acabou sendo incluído no Index, mas não por isso, e apesar de depois aceitar a contragosto o dogma, sem jamais entendê-lo em suas premissas teológicas. Por trás das posições de Lord Acton estava a tal da liberdade liberal e um conceito de poder deveras questionável. Podemos dizer, sem medo de errar, que se escondia ali um feroz antipapismo, ao modo ockhamista.
A ojeriza à filosofia escolástica, que o liberal conhece de orelhada, diz muito mais do seu estado mental que de qualquer outra coisa. A conclusão se impõe quando constatamos que o seu nível de conhecimentos nesta matéria é primário. Se o liberal católico lesse os Doutores da Igreja e os filósofos cristãos clássicos com a mesma voragem com que lê os pensadores políticos e economistas liberais, seria um teólogo imbatível! Mas ele teve a alma seduzida pelo naturalismo, e, como dizia o Cardeal Billot, passa a aplicá-lo em suas teorias nos âmbitos religioso, moral, político e econômico. O liberal católico não quer ver que o laicismo é uma exigência da liberdade de consciência, na forma dúbia como a concebe.
Poderíamos escrever livros sem fim sobre o caráter deletério do liberalismo para o catolicismo. Mas muitos outros já o fizeram, com maior ou menor competência. Neste contexto, aproveito para recomendar novamente o recém-lançado livro Liberalismo e Catolicismo, do Pe. Augustin Roussel, que enumera alguns pontos importantes — embora não concorde eu com tudo o que ali diz Roussel, numa obra que precisaria de algumas atualizações, dadas as novas conformações do liberalismo católico surgidas nos últimos dez anos. Mas, para quem pretende ter uma idéia dessa contraposição radical, vale a pena a leitura.
Como se deduz do que foi dito acima, numa perspectiva de base metafísica o ato de escolha é a epifania da liberdade, mas, se feito fora da ordem devida, acaba tornando-se o seu aguilhão. Se, portanto, destacamos que o liberalismo é a recusa dos princípios da ordem do ser, agora fica evidente que, encarnado no católico liberal, ele é também uma recusa dos fins.
Ou, diríamos nós em linguagem tomista, é o uso dos meios com vistas a um mau fim.
P.S. Como eu disse anteriormente, este texto foi motivado por um escrito de Joel Pinheiro, colaborador da Dicta&ContraDicta, mas a resposta não se dirige à pessoa dele, pois resume, em linhas muito gerais, o que penso sobre o liberalismo e que inviabiliza qualquer diálogo. Como eu disse, são premissas absolutamente opostas. 
Quanto a eu ter evitado nos últimos tempos entrar em polêmicas no Contra Impugnantes, isto provém do fato de que hoje estou convicto de que, se algum papel este espaço tem, é o de divulgar a filosofia e a teologia de Santo Tomás de Aquino sem matizações modernistas. O mesmo procedimento adotamos em todas as publicações da Sétimo Selo, do Angelicum e, agora, nos livros a ser publicados pela editora É, na coleção  Medievalia, da qual serei o coordenador: mostrar o Doutor Comum da Igreja tal qual é.
Quanto à crise da Igreja pós-conciliar, creio que somente por um milagre extraordinário ela pode resolver-se. Ademais, parto de uma premissa que é lugar teológico em matéria opinável (ou seja, aquela sobre a qual o Magistério não se manifestou): o reinado do Anticristo pressupõe o esfacelamento do poder espiritual da Igreja, que São Paulo chama de "abominação da desolação" ou grande apostasia. E como não se chega a tal estado num salto, a inacreditável situação atual — que o católico liberal se recusa a ver na hediondez de suas causas — parece preparatória para esse reinado maligno.
Esta é apenas uma opinião, uma leitura particular dos "sinais dos tempos". Por ela se deduz que não sou milenarista. 
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1- Por sua vez, os bem-aventurados, ou seja, os que foram glorificados pela visão beatífica da essência divina, não são livres para pecar: estão confirmados no bem indefectivelmente, pois a sua vontade, sede da liberdade, não tem como não anuir ao bem perfeitíssimo e omniabarcante compreendido pela inteligência em seus principais vetores. Como demonstra Santo Tomás valendo-se de sua fina metafísica do ser, os bem-aventurados são ab intrinseco impecáveis e estão confirmados no bem, pois gozam de uma radical impossibilidade de afastar-se de Deus. Desta verdade apenas dissentiram Duns Scot e seus epígonos, assim como os nominalistas, cujo voluntarismo, assim como no caso dos liberais, é irresolvível filosoficamente. Sendo a vontade o apetite do bem na forma intelectiva, um bem sumo a atrairá irresistivelmente, e, ao ser possuído, a fará aderir a ele.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

No país das maravilhas...

Sidney Silveira
Semana passada, leitores do Contra Impugnantes enviaram-me um link no qual se lê um texto de Joel Pinheiro, um liberal católico (pelo que se depreende de suas próprias palavras) que escreve para a Dicta & ContraDicta. O texto contém críticas a algo postado por aqui há quase cinco anos: um quolibet antiliberal.
Tecnicamente desempregado, endividado e ainda em processo de recuperação de duas cirurgias cardíacas — além de envolvido em trabalhos como “frila” para não morrer de fome ou ser despejado —, não responderei materialmente aos pontos trazidos à luz no texto do Sr. Pinheiro, que de maneira cavalheiresca teve o cuidado de perguntar a uma pessoa conhecida como eu estava de saúde, antes de postar as suas críticas. Cuidado pelo qual lhe agradeço.
Mas responderei num texto cujo título será A alma do liberalismo, no qual entre outras coisas espero deixar claro por que — há algum tempo — tenho preferido divulgar a doutrina de Santo Tomás de Aquino a manter querelas com católicos liberais, liberais não-católicos, liberais “econômicos”, ou falar da crise na Igreja. Nele farei referência a uns poucos princípios que tornam as posições liberal e católica tradicional absolutamente irredutíveis uma à outra, pois partem de premissas contraditórias, excludentes entre si. E apontarei que a posição liberal — malgrado a interminável gama de teorias e posturas em que a “escola” está entropicamente arrojada — tem aporéticos pontos de base em comum.
Farei isto sem maiores delongas, ou seja, sem prolongar ao infinito uma discussão de surdos, pois não há diálogo possível onde os topoi são diametralmente opostos ou divergentes na raiz, como dizia Aristóteles. Seria necessária uma espécie de maiêutica prévia para remontar aos princípios e a seus corolários necessários, antes de qualquer tentativa de debate. A propósito, o texto, embora seja uma resposta de caráter geral, não se dirigirá pessoalmente ao Sr. Joel Pinheiro, mas sim a aspectos do liberalismo e à forma mentis de seus adeptos.
Com esta resposta geral (e única), espero pôr fim a qualquer nova tentativa de “diálogo” conosco, disputa conceptual ou coisa que o valha, por parte de católicos liberais — procedimento para o qual hoje não tenho saúde nem tempo de levar adiante. E muito menos vontade, dada a minha absoluta certeza  de que é infrutífero, como fora o diálogo iniciado entre Eva e a serpente.
Aguardem um pouco, por favor, pois estou envolvido com outros afazeres. Mas o texto já está esquadrinhado em minha mente.
P.S. Conforme anunciei recentemente, em breve chegará às livrarias o livro Questões Disputadas sobre a Alma, de Tomás de Aquino, com o selo da editora É, traduzido por Luiz Astorga e prefaciado por Carlos Augusto Casanova, professor hoje radicado no Chile que possui vários estudos interessantes em torno das obras de Aristóteles e Santo Tomás. A obra, em copiosa edição bilíngüe, já saiu do forno: possui quase 500 páginas e cerca de 470 notas explicativas ao texto do Aquinate, que reputo grandemente enriquecedoras da leitura.
A propósito, o tema da alma humana em Santo Tomás continua a trazer contribuições para a psicologia, como ocorre na extraordinária obra do Prof. Martín Echavarría.