quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Sedevacantismo, ou uma conclusão à procura de premissas (IV)

Carlos Nougué
Como podemos ver pela exposição feita no artigo anterior desta série, a forma de sedevacantismo que estamos tratando em primeiro lugar gira em torno de três idéias básicas:

1) A fé teologal é infundida por Deus mesmo na inteligência e no coração de cada fiel, para que ele possa, infalivelmente, distinguir a verdade do erro ou da heresia, ou seja: cada fiel é dotado pelo Espírito Santo de um infalível sensus fidei. Por seu lado, a pregação da hierarquia da Igreja não tem autoridade sobre os atos de fé dos fiéis, podendo ter apenas caráter de persuasão com relação a estes últimos.

2) Mas desde o fim da civilização cristã (século XIII) a fé teologal (que junto com a graça santificante constitui a essência mesma do cristianismo) foi-se deslocando nas almas católicas de sua posição central, para ser pouco a pouco substituída por um culto do dever de corte kantiano e por uma obediência cega à autoridade papal.

3) Não é de estranhar, pois, que a heresia tenha ocupado a Sé de Pedro sem que a grande maioria dos católicos resistisse a ela, maioria que, muito pelo contrário, seguiu e segue obedecendo a papas heréticos. Estes, porém, justamente por heréticos, não são verdadeiros papas, e a Sede romana já desde algum tempo está vacante.

Notas prévias à refutação

● Dessas três idéias básicas do adversário, uma é ainda mais básica: a do sensus fidei de que é dotado cada fiel. Começaremos pois por ela, mas diga-se desde já: a noção de sensus fidei sustentada pela tese adversária é uma perversão da verdadeira doutrina acerca dele, perversão que, mutatis mutantis, esta forma de sedevacantismo compartilha por um lado com o protestantismo e por outro com o modernismo. Já o veremos.

● A segunda de tais idéias básicas constitui propriamente o tipo de “reconstrução ideal da história” que nos ocupa nesta série, e será refutada em seguida à refutação da noção equivocada de sensus fidei.

● A terceira de tais idéias (a da Sede vacante), porém, só será refutada ao final do exame de todas as formas de sedevacantismo, porque com efeito diz respeito a todas elas. Mas até lá já estará demonstrada a fragilidade dos alicerces em que todas se fundam.

● Após a refutação daquelas duas idéias básicas da tese adversária, responder-se-á particularmente a cada item numerado da exposição feita no artigo anterior.

I) Refutação da primeira idéia básica da tese adversária

Antes de tudo, atente bem o leitor para que uma aparente contradição da tese adversária não o é efetivamente. Com efeito, se Deus mesmo dá aos fiéis, a cada fiel, uma fé ou sensus fidei infalível e por isso mesmo capaz de distinguir infalivelmente a verdade do erro ou da heresia, como é possível então que a própria fé se tenha deslocado progressivamente na alma dos fiéis a ponto de ser pouco a pouco substituída por uma noção de dever de corte kantiano e por uma obediência tão cega, que os torna incapazes de resistir até a papas heréticos? A isso, lembremo-nos, responde o adversário da seguinte maneira: “Os autênticos fiéis lutam por sua fé, razão por que Deus não os deixa cair em erro (‘... si nos fecerimus quod in nobis est [...] Deus non deficiet nobis ab eo quod nobis est necessarium’, diz Santo Tomás). Mas, deixando de lado a luz infusa que Deus acende na alma dos cristãos para guiá-los pela senda da verdade que salva, a maioria dos católicos acabou por erigir, de modo tácito, o falso dogma da obediência incondicional ao Papa como sua obrigação primeira. Já sem poder suportar o governo absoluto do Deus invisível da pura fé, essa maioria quis um soberano evidente e acessível aos sentidos, mudando-se o Papa de vigário de Cristo em substituto de Nosso Senhor”. Para saber, porém, se de algum modo a tese do adversário procede, é preciso saber não só se a fé dada por Deus a cada fiel é efetivamente infalível, e não só se efetivamente a maioria dos católicos a rejeitou e por isso deixou de ser autenticamente católica, mas também se cada um dos fiéis pode efetivamente ter certeza de que o que julga ser fé sobrenatural dada por Deus a ele o é de fato. Sim, porque não é verdade que cada protestante sincero crê sinceramente que a sua fé individual e interior é verdadeira fé sobrenatural infusa?

Em verdade, como já antecipado, estamos diante de uma das formas de perversão da correta doutrina do sensus fidei. Com efeito, na Suma Teológica, IIa IIae, q. 1, a.3, pergunta-se Santo Tomás se é possível haver ato de fé de um objeto falso, como se daria se um menino fizesse um ato de fé de uma proposição falsa induzido, por exemplo, por um sacerdote formado num mau seminário. Parece que sim, porque em princípio o menino está predisposto a crer em tudo quanto lhe diga o sacerdote enquanto representante da Igreja, e porque não tem capacidade para distinguir o verdadeiro do falso em tudo quanto lhe diga o sacerdote. Mas não é assim, porque o objeto formal e próprio da virtude sobrenatural da fé é a verdade divinamente revelada, e em nada divinamente revelado pode haver nem sombra de erro. “Assim como a vista”, diz o Padre Álvaro Calderón em La lámpara bajo el celemín, “não pode ver senão a cor por meio da luz; assim como a inteligência não pode entender senão a verdade em razão de sua evidência; assim tampouco a fé sobrenatural pode crer senão na verdade formalmente revelada.” Ora, assim como aquele mesmo menino também poderia ser induzido por um professor de ciências a afirmar como verdadeira uma demonstração falaz, e assim como tal afirmação não seria induzida pela evidência do raciocínio (porque o menino por ser criança seria incapaz de tal) e não seria, portanto, um ato da virtude intelectual da ciência, assim também, analogamente, o menino pode assentir à falsidade proposta pelo sacerdote, e tal assentimento será, sim, um ato de fé, mas não de fé sobrenatural, que só se pode dar com respeito a verdades reveladas por Deus mesmo. Será um ato de fé meramente humano.

Até aqui, portanto, as palavras do Aquinate parecem dar inteira razão ao nosso sedevacantista, porque, com efeito, se lê na exposição da tese adversária feita no artigo anterior que, “segundo Santo Tomás de Aquino (cf. De Veritate, q. 14), um hábito, para tornar-se virtude, deve produzir sempre atos bons, porque toda e qualquer virtude é a perfeição de determinada potência. É o que se dá com a potência intelectiva, cujo objetivo é a verdade: qualquer ato seu será bom se manifestar a verdade, ou, em outras palavras, só tornarão virtuosa a inteligência humana os atos seus que alcançarem infalivelmente a verdade”. Sucede todavia que, como sugere o próprio exemplo do menino com o sacerdote, nesta vida o cristão nunca poderá discernir com certeza se um ato seu é natural ou sobrenatural, e isso porque, como lembra ainda o Padre Calderón (ibid.), “o único hábito intelectual capaz de conhecer o sobrenatural por essência é o lumen gloriae dos bem-aventurados”. Sim, porque para cada ato sobrenatural de uma virtude infusa pode dar-se um ato semelhante produzido por uma simples disposição natural, e, conquanto se possa, se se for dotado de boa capacidade de discernimento, “distinguir com certa probabilidade os atos que vêm da graça, não é possível fazê-lo com toda a certeza” (idem; destaque nosso). Para comprová-lo, leia-se De Veritate, q. 10, a.10, onde o Doutor Comum se pergunta se alguém pode saber com certeza se tem a virtude sobrenatural infusa da caridade, e, como propõe ainda o Padre Calderón, estenda-se o que se responde ali a todas as demais virtudes infusas: com efeito, ninguém pode ter certeza de que tem nenhuma delas (ainda que, se for dotado daquela boa capacidade de discernimento, possa até distinguir sua presença com certo grau de probabilidade).

Se assim é, contudo, como se pode dizer que o católico é obrigado a fazer firme profissão externa de sua fé? Sim, porque parece absurda tal exigência se ele não pode discernir com certeza aquilo em que internamente crê, ou seja, se se trata de assentimento sobrenatural ou meramente natural. De fato, uma criança nascida “no protestantismo pode ter fé divina por graça de Deus e crer sobrenaturalmente em muitas verdades reveladas, mas nunca poderia moralmente assegurar a ninguém que aquilo em que crê é verdade de fé” (idem). Mas se assim é, repita-se, como então pode o fiel fazer uma profissão de fé externa certa? Ora, com um critério externo também certo, ou seja, sem nenhuma possibilidade de erro: o Magistério infalível da Igreja.

(Continua.)

Em tempo 1: Bem sei que esta série sobre o sedevacantismo não só tem despertado o interesse de muitas pessoas, mas também tem dado ensejo a debates acalorados. Tudo isso era de esperar, não só porque diz respeito a um momento sabidamente difícil para a Igreja, mas porque os sedevacantistas são por demais agressivos ou, diga-se melhor, ofensivos, o que também não deve surpreender: neles se mesclam o erro e uma apaixonada renitência no erro. (Aliás, segundo me dizem, volta e meia se vê na Internet algum deles dizer que a tese do Padre Ceriani já foi refutada. Pois bem, diga-se em que documento foi refutada, que o linkarei aqui para que todos vejam que o que a maioria dos sedevacantistas chama de refutação não passa de uma clara (re)petição de princípio com sabor de hipnose: “A tese do Padre Ceriani é herética porque não diz que os papas conciliares, heréticos, não são verdadeiros papas, nem que, por isso mesmo, a Sede está vacante”, e assim ad nauseam com pouca variações.) Pois bem, para atender mais perfeitamente ao interesse despertado, deveria eu escrever os artigos desta série com mais freqüência. Perdoem-me, mas não o posso fazer, porque, se o fizesse, simplesmente não poderia ganhar o (árduo) pão de cada dia. Amanhã mesmo torno a viajar, ao Sul, para dar uma série de aulas, e ficarei sem escrever nada até a próxima terça-feira. Mas talvez tal espaçamento seja bom, por dar algum tempo aos leitores (incluindo os sedevacantistas) para meditar mais longamente sobre o que lêem aqui.
Em tempo 2: Duas coisas que se devem consignar desde já: a) dizer que a Sede não está vacante não é o mesmo que dizer que a Sede não pode ficar vacante; b) a questão da vacância ou não da Sede não se confunde com a questão da obediência devida ou não aos papas. Tudo isso se verá na sua hora.