Sidney Silveira
A “boa nova”, proclamada em alguns púlpitos blogosféricos liberais e libertários, é que Alan Greespan, ex-presidente do Federal Reserve, não é, jamais foi, um liberal.
A “boa nova”, proclamada em alguns púlpitos blogosféricos liberais e libertários, é que Alan Greespan, ex-presidente do Federal Reserve, não é, jamais foi, um liberal.
Pois bem. Uma das marcas do liberalismo é exatamente essa capacidade de travestir os seus argumentos com mil e um disfarces teóricos, ao sabor das “necessidades” momentâneas. Ora, como em seu balaio conceptual há uma gradação incomensurável de ações e teses propostas — gradação que é o lado exotérico da coisa toda, a manifestação exterior de um liberalismo fundamental, que temos exposto aqui —, toda vez que há alguma inconveniência, eles “excluem” da causa, sem dó nem piedade, quem tenha falhado ao defendê-la. É o caso de Greespan, durante décadas o grande defensor da intocabilidade dos mercados, sob o mote da auto-regulação (a propósito, “auto-regulação” é um dos termos do pensamento mágico liberal: tudo se ajeita naturalmente por si — para que autoridade?). Pois é, eis que agora nos descortinam a grande e acachapante novidade: Greenspan nunca foi liberal. Afinal, cometeu excessos no Fed adotando políticas “intervencionistas" em ocasiões específicas. Criticou, no ano passado, o sacrossanto mercado (ai, Jesus!). Criticou a falta de regulação do chamado subprime (isto após ter consentido, durante anos, com a farra desse mercado praticamente paralelo, diga-se!). “Acomodou” a política monetária e foi o grande "culpado" pelo excesso de crédito. E os agentes do mercado, coitadinhos, não têm absolutamente nenhuma responsabilidade. É sempre assim: para o liberal típico, jamais há mea culpa, dada a sua grande elasticidade teórica, mas somente culpa vestra. E se porventura Greespan bateu no peito e reconheceu, publicamente, a sua parcela de culpa para com a permissividade desse verdadeiro mercado paralelo, foi porque recebeu um choque de realidade e se rendeu à evidência do próprio erro, ainda que tardiamente, de modo parcial e confuso. Mas esse tipo de humildade é uma “queda” imperdoável, uma traição à causa.
Sabemos haver liberais dos mais quiméricos em seu otimismo — ou devaneio — libertário, os quais pregam, por exemplo, que os Bancos Centrais (um dos quais presididos por Greespan, durante anos a fio) são desnecessários. Autoridade monetária ou econômica? Ugh... Para estes idólatras da liberdade absoluta dos agentes econômicos, Greespan, simplesmente com ocupar o seu cargo de presidente do Fed (cargo “desnecessário”, incômodo), pode representar uma espécie de encarnação do “antiliberalismo” — ou de um “não-liberalismo”. Para outros, mais generosos, na prática Greespan ocupou um cargo que deve existir, sim, mas exorbitou de suas funções. Ora, assim é muito fácil, meus caros: tomar os ideólogos defensores de medidas extremas como critério de julgamento da imensa vala comum da ideologia (e mais: pondo-os como a norma do liberalismo econômico teórico), para excluir os mais moderados da “tchurma”, repetindo, como numa espécie de mantra — ele não é liberal, ele não é liberal, ele não é liberal. Assim é, de fato, moleza: "simplificar" uma realidade complexa por meio de um truque, uma palavrinha mágica dita num contexto aparetemente lógico.
Noutra oportunidade escreveremos sobre essa matreira tática. Mas, por ora, evoquemos uma imagem, para depois aplicá-la ao caso, analogamente: o mais e o menos verde são, igualmente, verdes. Certo? Sim, são gradações de verde — pois, como sabemos, há realidades que comportam graus, enquanto outras não o comportam. O maximamente verde (escuro) não exclui da espécie o verde-piscina, o verde-claro e outros verdes de matizes menos fortes. Veremos, noutra ocasião, se o liberalismo econômico comporta, ou não, o mais e o menos. E, se comporta, chequemos se Alan Greespan — chamado por vários economistas liberais (agora, que a vaca está no brejo) de Mr. Bubble — está assim, tão obviamente, fora da patota...
E nunca é demais lembrar que não ser teórico de uma causa não implica, necessariamente, não integrá-la na prática.