Carlos Nougué
Quase ao final do artigo anterior, disse-se que “parte da música clássica e da barroca profanas já nos leva, em certa medida variada, a contemplar fruindo a Criação e a harmonia do universo”. Com efeito, como não o ver em várias peças de Mozart, como, por exemplo, Divertimento para trio de cordas em Mi bemol maior, a Sonata para dois pianos em Fá maior, a Sinfonia n. 39 em Si bemol maior e a Sinfonia Júpiter, ou, ainda por exemplo, em diversos trios para piano de Haydn? Como não o ver em tantas e tantas peças profanas barrocas?
Diz Santo Agostinho que “todos os diversos sentimentos do nosso espírito encontram no canto uma sua modulação própria, que os desperta por força de não sei que relação oculta e íntima” (Confess., 1. X, c. 33, PL 32, 799ss), “não-sei-quê” que trataremos ao estudar a música por suas características intrínsecas. Importa agora, porém, que podemos parafrasear analogicamente a frase do Santo de Hipona e dizer, por nosso lado: naquele tipo de música profana, encontra a harmonia das esferas uma sua modulação própria, que é plasmada por força de não sei que relação oculta e íntima.
Ora, a música profana de Bach vai além disso: ela é não só uma contemplação fruitiva da harmonia das esferas, uma alegria de participar no ser, mas também uma espécie de louvor a Deus pela harmonia das esferas e pela participação no ser. Tome-se um único exemplo entre numerosíssimos (na verdade, cerca de 50 CDs): o Sexto Concerto de Brandenburgo, cujos movimentos 1 e 3 são dessa pura alegria, enquanto o segundo, um Adagio ma no tanto, parece convidar-nos a que nos ajoelhemos e rezemos. Para que se patenteie o que acabo de dizer, escute-se a Ária da Suíte n. 3 em dó maior. É com relação ao barroco bachiano que talvez mais adquira validez a afirmação de Chesterton (cito de memória, corrijam-me se eu estiver errado) de que “o barroco é a melhor maneira de expressar o claro-escuro dos mistérios”, o que, mais uma vez, nos remete ao estudo das propriedades intrínsecas da arte em geral e da música em particular.
A música profana de Bach é pois um caso único, intermediário entre a música que meramente deleita, compraz ou recreia a alma dentro de justos limites e a que serve diretamente para louvar a Deus, mas não liturgicamente. O Papa São Pio X preocupou-se grandemente, como veremos, com extirpar das igrejas qualquer traço de música profana; Bach, por seu lado, como que infiltrou a música sacra na música profana.
No meio da nossa hierarquia musical está, portanto, a música que serve diretamente para louvar a Deus, mas não liturgicamente. Em termos mais filosóficos: como a música litúrgica é que é simpliciter (ou seja, em termos absolutos) música sacra, temos que o tipo de música que agora trataremos é música sacra apenas secundum quid (ou seja, por certo ângulo ou segundo alguma relação).
Mas já é música ordenada diretamente a Deus ao modo de louvor. Tem ela com relação à vida do católico papel semelhante ao dos autos medievais encenados diante das igrejas, ao dos autos de Gil Vicente, ao da pintura de um Zurbarán ou ao da Paixão de Mel Gibson. Não tem formato litúrgico, mas impregna a vida cotidiana de religiosidade, estimula o fervor da fé, alarga, como diria Santo Agostinho, a cidade de Deus no seio da cidade do homem e retira, com isso, espaço ao príncipe deste mundo.
Uma audição de uma peça deste tipo, quer em espaço religioso, quer numa sala de concertos, quer em casa mediante os meios eletrônicos de reprodução, convém com o que dizia São Cipriano em sua exortação a Donato: “Ressoe de salmos o sóbrio banquete: e, como tens memória tenaz e voz canora, assume esse ofício segundo o costume em voga: a pessoas a ti caríssimas oferecerás maior nutrimento se de nossa parte houver uma audição espiritual, e se a doçura religiosa deleitar nosso ouvido” (Epist. ad Donatum [Epístola 1, n. XVI]; PL 4, 227).
Muitos compuseram boas (e más) músicas deste tipo: por exemplo, Mozart (entre as más, a quase blasfema Missa breve em Dó maior; entre as boas, o Réquiem e a Missa em Dó menor, os quais porém ele deixou, significativamente, inacabados); Haendel (são admiráveis o Messias, o oratório Teodora, etc., mas Haendel também compôs muita ópera “em que já não há a presença da graça”); ou Pergolesi, de quem podemos escutar aqui o primeiro movimento do belíssimo Stabat Mater.
P.S.: Esta parte do estudo, por razões de espaço, continua no próximo post.
Quase ao final do artigo anterior, disse-se que “parte da música clássica e da barroca profanas já nos leva, em certa medida variada, a contemplar fruindo a Criação e a harmonia do universo”. Com efeito, como não o ver em várias peças de Mozart, como, por exemplo, Divertimento para trio de cordas em Mi bemol maior, a Sonata para dois pianos em Fá maior, a Sinfonia n. 39 em Si bemol maior e a Sinfonia Júpiter, ou, ainda por exemplo, em diversos trios para piano de Haydn? Como não o ver em tantas e tantas peças profanas barrocas?
Diz Santo Agostinho que “todos os diversos sentimentos do nosso espírito encontram no canto uma sua modulação própria, que os desperta por força de não sei que relação oculta e íntima” (Confess., 1. X, c. 33, PL 32, 799ss), “não-sei-quê” que trataremos ao estudar a música por suas características intrínsecas. Importa agora, porém, que podemos parafrasear analogicamente a frase do Santo de Hipona e dizer, por nosso lado: naquele tipo de música profana, encontra a harmonia das esferas uma sua modulação própria, que é plasmada por força de não sei que relação oculta e íntima.
Ora, a música profana de Bach vai além disso: ela é não só uma contemplação fruitiva da harmonia das esferas, uma alegria de participar no ser, mas também uma espécie de louvor a Deus pela harmonia das esferas e pela participação no ser. Tome-se um único exemplo entre numerosíssimos (na verdade, cerca de 50 CDs): o Sexto Concerto de Brandenburgo, cujos movimentos 1 e 3 são dessa pura alegria, enquanto o segundo, um Adagio ma no tanto, parece convidar-nos a que nos ajoelhemos e rezemos. Para que se patenteie o que acabo de dizer, escute-se a Ária da Suíte n. 3 em dó maior. É com relação ao barroco bachiano que talvez mais adquira validez a afirmação de Chesterton (cito de memória, corrijam-me se eu estiver errado) de que “o barroco é a melhor maneira de expressar o claro-escuro dos mistérios”, o que, mais uma vez, nos remete ao estudo das propriedades intrínsecas da arte em geral e da música em particular.
A música profana de Bach é pois um caso único, intermediário entre a música que meramente deleita, compraz ou recreia a alma dentro de justos limites e a que serve diretamente para louvar a Deus, mas não liturgicamente. O Papa São Pio X preocupou-se grandemente, como veremos, com extirpar das igrejas qualquer traço de música profana; Bach, por seu lado, como que infiltrou a música sacra na música profana.
No meio da nossa hierarquia musical está, portanto, a música que serve diretamente para louvar a Deus, mas não liturgicamente. Em termos mais filosóficos: como a música litúrgica é que é simpliciter (ou seja, em termos absolutos) música sacra, temos que o tipo de música que agora trataremos é música sacra apenas secundum quid (ou seja, por certo ângulo ou segundo alguma relação).
Mas já é música ordenada diretamente a Deus ao modo de louvor. Tem ela com relação à vida do católico papel semelhante ao dos autos medievais encenados diante das igrejas, ao dos autos de Gil Vicente, ao da pintura de um Zurbarán ou ao da Paixão de Mel Gibson. Não tem formato litúrgico, mas impregna a vida cotidiana de religiosidade, estimula o fervor da fé, alarga, como diria Santo Agostinho, a cidade de Deus no seio da cidade do homem e retira, com isso, espaço ao príncipe deste mundo.
Uma audição de uma peça deste tipo, quer em espaço religioso, quer numa sala de concertos, quer em casa mediante os meios eletrônicos de reprodução, convém com o que dizia São Cipriano em sua exortação a Donato: “Ressoe de salmos o sóbrio banquete: e, como tens memória tenaz e voz canora, assume esse ofício segundo o costume em voga: a pessoas a ti caríssimas oferecerás maior nutrimento se de nossa parte houver uma audição espiritual, e se a doçura religiosa deleitar nosso ouvido” (Epist. ad Donatum [Epístola 1, n. XVI]; PL 4, 227).
Muitos compuseram boas (e más) músicas deste tipo: por exemplo, Mozart (entre as más, a quase blasfema Missa breve em Dó maior; entre as boas, o Réquiem e a Missa em Dó menor, os quais porém ele deixou, significativamente, inacabados); Haendel (são admiráveis o Messias, o oratório Teodora, etc., mas Haendel também compôs muita ópera “em que já não há a presença da graça”); ou Pergolesi, de quem podemos escutar aqui o primeiro movimento do belíssimo Stabat Mater.
P.S.: Esta parte do estudo, por razões de espaço, continua no próximo post.