segunda-feira, 30 de junho de 2008

Os fins da arte (III)

Carlos Nougué
Comecemos, agora, as precisões e desdobramentos requeridos pela hierarquização da boa arte apresentada ao
final do artigo anterior.

a) Na base está aquela que meramente deleita, compraz ou recreia a alma dentro de justos limites, como dizia
Bach. A única coisa que se requer deste tipo de arte é que, além de contribuir para a formação ética e pois política do indivíduo, não contrarie ou negue em nada o fim último do homem* e da própria arte, o qual é Deus mesmo.

Este tipo de arte abrange uma gama imensa de subtipos. Tomemos a música como exemplo, e veremos que aqui se incluem, de maneira também ascendente:

• A boa música folclórica ou popular, ou seja, aquela que atende aos requisitos dados acima. Má seria a música folclórica ou popular de caráter sensual ou indutor da concupiscência, ou de quaisquer outros vícios ou pecados. (Uma “harmônica” estátua de nu sensual é má arte** porque contraria o fim último do homem, induzindo à apetência de um bem criado em detrimento do Sumo Bem e da lei natural, e porque, afinal, o autêntico belo não é senão a outra face do bem. Voltaremos ao tema ao tratar da bondade ou da maldade intrínsecas da arte.) Por outro lado, não deixa de ser boa, em sua escala, uma música que vise ao mero descanso da mente e do corpo, ou a que vise a fazer dormir um bebê, como qualquer canção de ninar.

• Superior ao subtipo anterior, temos, por exemplo, a música profana dos clássicos Haydn e Mozart, e até o melhor de certos românticos, como o são certas peças de Schubert e os Noturnos de Chopin (embora estes padeçam, por vezes, de certa melancolia exacerbada — a melancolia é, dentro de certa e pequena medida, algo inerente à arte, pelas razões que veremos ao tratar a arte do ângulo de suas características intrínsecas; mas, repito, dentro de certa e pequena medida). Por outro lado, é má, por exemplo, grande parte da obra de um Beethoven, de um Schumann, de um Liszt, e quase toda a de Wagner, pois, sendo produto de homens gnósticos e/ou liberais e revolucionários, já não visa à formação ética (e portanto política) do homem, mas sim, por um lado, à expressão dos dilaceramentos e paixões dos próprios compositores e, por outro, induz os ouvintes a esses mesmos dilaceramentos e paixões. Aliás, a audição continuada desta espécie de música levará o ouvinte a ter a sensibilidade esgarçada, tensionada, tendente à explosão, à violência (exagero? para provar que não, basta a Quinta Sinfonia de Beethoven, tão adequadamente utilizada no terrível e perverso filme Laranja Mecânica) ou à tristeza: o que, indubitavelmente, é porta para vícios da mais variada índole.

• Vem depois a música profana barroca. (Não a confundir com a música renascentista, cujos madrigais são geralmente de uma sensualidade enfermiça, tão enfermiça como a de grande parte da pintura de Leonardo da Vinci e Botticelli. Alguns compositores, como Monteverdi, são já barrocos, mas ainda compõem peças ao estilo renascentista, enquanto, por outro lado, há alguns que se podem dizer pré-barrocos, e bons, como Byrd, Gibbons, Frescobaldi, etc.) O barroco é, de certa maneira, fruto do Concílio de Trento e da atividade dos jesuítas (conquanto se tenha arraigado também firmemente na parte protestante da Europa); veja-se que na pintura e na escultura o barroco é em parte uma questão de panejamentos para cobrir o nu renascentista, como é o caso do belíssimo quadro de Caravaggio A Inspiração de São Mateus. Na música, começa com uma volta à homofonia, mas termina por retomar, em grande estilo, a polifonia. É grande a lista dos bons compositores barrocos, quer católicos, quer protestantes: Corelli, Couperin, Vivaldi, Rameau, Haendel, Telleman, etc., etc. Mas atenção: quase todos esses grandes compositores barrocos também fizeram música não tão boa, sobretudo óperas “em que já não há a presença da graça” (di-lo o Padre Calmel, em seu magnífico Théologie de l’histoire, com respeito a muitas peças de Racine e Cornaille).

Como
diz Sidney Silveira, “louvar implica juízo de valor (um ato da potência intelectiva), ao passo que fruir, não — pois, conforme explica Santo Tomás (Suma Teológica, IªIIª, 11, a.2. resp.), desfrutar não é ato da potência que alcança o fim como ordenadora, e sim da potência que alcança o fim como executora, o que é muito diferente. Por isso, a fruição está na potência apetitiva, e não na intelectiva, razão pela qual uma arte que nos leve a fruir sem contemplar é, ontologicamente, inferior àquela que nos leva a contemplar fruindo”. Precisamente por tudo isso, pois, é que o tipo de arte que tratamos aqui é boa, mas, de maneira geral, inferior à que trataremos no post seguinte.

Faça-se porém a seguinte ressalva: parte da música clássica e da barroca profanas já nos leva, em certa medida variada, a contemplar fruindo a Criação e a harmonia do universo. Por seu lado, a música profana de Bach, com a qual começaremos o próximo artigo, é caso único: é já todo um ato de louvor e de contemplação.

* O homem não escolhe o fim último, de acordo com Santo Tomás, mas apenas os fins próximos (electio finis proximi). Ou seja: não “escolho” a Deus, mas simplesmente eu O aceito ou não. O fim último já se preanuncia na retidão do apetite natural do bem — inerente a todas as criaturas racionais —, o qual não poderia repousar senão num bem perfeito e necessário, e não em algo imperfeito e contingente. É certo que a inclinação natural do homem é para a beatitude ou felicidade, que alguém pode até não saber onde se encontra exatamente e onde se concretiza objetivamente. Mas sempre deseja naturalmente. Na escolha dos indivíduos pelos fins próximos pode estar o afastamento do fim último. De toda forma, como diz Santo Tomás, embora as ações sejam dos indivíduos, o primeiro princípio do obrar é da natureza da espécie — e esta, sendo racional, tende a um único fim, que é a imperecibilidade no bem perfeito.
** Não se espante o leitor de ver um julgamento da arte por critérios teleológico-metafísico-teológicos (hoje mais do que nunca inusuais!). Mas o fato é que na ordem de ser — a qual culmina no Próprio Ser Subsistente, como veremos noutra ocasião —, a arte se enquadra, sim, perfeitamente, na categoria da relação, ou seja: pode ser considerada boa e perfeita quanto aos seus objetivos próximos e à sua forma intrínseca, e má e imperfeita enquanto relacionada ao fim último de todos os entes, ou seja enquanto se torna obstáculo para que o ente racional alcance, por seus atos próprios, o seu fim — ao qual esses mesmos atos deveriam conduzir.