Carlos Nougué
O que vou escrever neste e nos próximos três posts está mais desenvolvido na entrevista que dei ao Professor Cotrim, cujo vídeo logo estará disponível, na íntegra; será muito mais desenvolvido no estudo de maior escopo de que já falei; e, ainda que em menor escala, também aparecerá com algum desenvolvimento na última série sobre o belo e a música que postarei neste blog.
Se ainda insisto aqui no tema “Beethoven”, é para desfazer alguns mal-entendidos, sobretudo este: Quer dizer então que, ao afirmar que boa parte da música de Beethoven não expressa nenhuma harmonia, mas antes alguma desarmonia da própria alma ou a da revolução, estarei dizendo que o compositor alemão não conhecia “harmonia” ou não a dominava?
Obviamente que não. Lembre-se que começo por dizer, em “Gênios e gênios”, que Beethoven era um gênio da música, e para ser tal é impossível não dominar perfeitamente a arte e ciência da harmonia, ou seja: aquela que tem por objeto a formação e o encadeamento dos acordes segundo as leis da tonalidade e do cromatismo. O compositor alemão foi, indubitavelmente, um dos maiores conhecedores dessa arte e ciência; mais: foi um gênio, tinha a chispa da genialidade. O que disse e digo é que, em boa parte de sua obra, usava tanto aquele conhecimento como esta genialidade para um objetivo mau, e que por isso mesmo essa parte de sua música era em si mesma música má, pelos menos não integralmente bela. Vejamo-lo algo detidamente.
Em grande parte do que direi aqui, remeto-me ao magnífico artigo do Padre Bertrand Labouche Bach et Pink Floyd – Petite étude comparative de la musique classique et de la musique rock, publicado na não menos magnífica revista Le Sel de la Terre, Avrillé, no 58, Automne 2006. Mas as conclusões que tirarei aqui, conquanto me pareçam próximas das do Padre Labouche (que além de tudo é músico e profundo conhecedor de sua arte), são de minha inteira responsabilidade. Vejamos, pois, à guisa de exemplo, o que se pode dizer aqui da Sonata para piano no 23, a Appassionata, opus 57, de Beethoven.
Nesta peça, composta em 1805, Beethoven “abandona as categorias estéticas em vigor e troca a beleza tradicional por um novo tipo de expressão” (Ulrich Michels, p. 403, apud Padre Labuche, Bach et Pink Floyd...). A estrutura da peça, é verdade, ainda “é a de uma sonata clássica (exposição – desenvolvimento – recapitulação – coda), mas ‘massas sonoras de intensidade máxima irrompem bruscamente: na nuança f f [fortissimo], sobre um ritmo sincopado, acordes maciços de fá menor, em movimento ascendente, rompem brutalmente a linha temática e a atmosfera [...], mas este episódio prepara ao mesmo tempo a chegada do segundo tema ascendente, em lá bemol maior [...], a melodia nobre indicada como pp dolce’” (Padre Labouche, ibid.).
O próprio compositor relacionava esta sonata à peça de Shakespeare A Tempestade, e, com efeito, como diz o Padre Labouche, a sonata “evoca [...] uma verdadeira tempestade por seus martelamentos e rompimentos rítmicos acompanhados de violentos contrastes harmônicos” (idem). Convenhamos, porém, que não se trata aqui, como tampouco na peça de Shakespeare, de um evento atmosférico, mas de uma tempestade da alma. Chegou-se a ver nesta peça “o coroamento da vida espiritual de Beethoven, a luta contra o destino (tema que se encontra em sua Quinta Sinfonia: sol-sol-sol-mi: o destino que bate à porta...), e depois a aceitação e o sentimento religioso que disso deriva, notadamente no segundo movimento, andante con moto, antes da explosão final” (idem).
Convenhamos ainda, antes de prosseguir com as palavras do Padre, que algo já se pode dizer sem hesitação desta peça musical e da parte da obra de Beethoven que a ela se assemelha: a) trata-se de um rompimento com as categorias estéticas tradicionais, que como vimos foram maximamente desenvolvidas por Bach, mas se mantiveram de alguma maneira nos clássicos Haydn e Mozart; b) como a beleza artística é uma expressão do belo transcendental e das harmonias celestes, cósmicas, sociais, humanas, etc., ela tem caráter objetivo, razão por que romper (romper, não desenvolver, o que seria outra coisa) com as categorias que sempre a sustentaram implica, pelo menos, a substituição da função original (a expressão do belo e harmônico) por outra (que logo veremos qual seja); c) assim como a expressão artística do belo e harmônico tem características análogas às do que expressa (do mesmo modo que a palavra “catraca” tem em si algo, o som, semelhante ao objeto que ela significa), assim também o “novo tipo de expressão” beethoveniano há de ter características análogas às do que expressa.
Mais ainda: o “sentimento religioso” que deriva daquela aceitação referida, ou seja, do seu destino, não é o sentimento católico, e isso, caríssimos, o sabemos histórica e biograficamente. O sentimento religioso que se pode conceder a Beethoven é precisamente o resultante do rebaixamento — típico do pré-romantismo e do romantismo — da religião a um sentimento, a uma emotividade, a uma vivência pessoal, a qualquer coisa assim muito inferior à verdadeira religiosidade, que ou dependerá das virtudes teologais infundidas por Deus mesmo e da moção da Sua graça, ou não será.
Mas será que se dá mesmo aquele sentimento religioso na peça musical de que estamos tratando (e em boa parte da obra do compositor)? É o que veremos no próximo post.
O que vou escrever neste e nos próximos três posts está mais desenvolvido na entrevista que dei ao Professor Cotrim, cujo vídeo logo estará disponível, na íntegra; será muito mais desenvolvido no estudo de maior escopo de que já falei; e, ainda que em menor escala, também aparecerá com algum desenvolvimento na última série sobre o belo e a música que postarei neste blog.
Se ainda insisto aqui no tema “Beethoven”, é para desfazer alguns mal-entendidos, sobretudo este: Quer dizer então que, ao afirmar que boa parte da música de Beethoven não expressa nenhuma harmonia, mas antes alguma desarmonia da própria alma ou a da revolução, estarei dizendo que o compositor alemão não conhecia “harmonia” ou não a dominava?
Obviamente que não. Lembre-se que começo por dizer, em “Gênios e gênios”, que Beethoven era um gênio da música, e para ser tal é impossível não dominar perfeitamente a arte e ciência da harmonia, ou seja: aquela que tem por objeto a formação e o encadeamento dos acordes segundo as leis da tonalidade e do cromatismo. O compositor alemão foi, indubitavelmente, um dos maiores conhecedores dessa arte e ciência; mais: foi um gênio, tinha a chispa da genialidade. O que disse e digo é que, em boa parte de sua obra, usava tanto aquele conhecimento como esta genialidade para um objetivo mau, e que por isso mesmo essa parte de sua música era em si mesma música má, pelos menos não integralmente bela. Vejamo-lo algo detidamente.
Em grande parte do que direi aqui, remeto-me ao magnífico artigo do Padre Bertrand Labouche Bach et Pink Floyd – Petite étude comparative de la musique classique et de la musique rock, publicado na não menos magnífica revista Le Sel de la Terre, Avrillé, no 58, Automne 2006. Mas as conclusões que tirarei aqui, conquanto me pareçam próximas das do Padre Labouche (que além de tudo é músico e profundo conhecedor de sua arte), são de minha inteira responsabilidade. Vejamos, pois, à guisa de exemplo, o que se pode dizer aqui da Sonata para piano no 23, a Appassionata, opus 57, de Beethoven.
Nesta peça, composta em 1805, Beethoven “abandona as categorias estéticas em vigor e troca a beleza tradicional por um novo tipo de expressão” (Ulrich Michels, p. 403, apud Padre Labuche, Bach et Pink Floyd...). A estrutura da peça, é verdade, ainda “é a de uma sonata clássica (exposição – desenvolvimento – recapitulação – coda), mas ‘massas sonoras de intensidade máxima irrompem bruscamente: na nuança f f [fortissimo], sobre um ritmo sincopado, acordes maciços de fá menor, em movimento ascendente, rompem brutalmente a linha temática e a atmosfera [...], mas este episódio prepara ao mesmo tempo a chegada do segundo tema ascendente, em lá bemol maior [...], a melodia nobre indicada como pp dolce’” (Padre Labouche, ibid.).
O próprio compositor relacionava esta sonata à peça de Shakespeare A Tempestade, e, com efeito, como diz o Padre Labouche, a sonata “evoca [...] uma verdadeira tempestade por seus martelamentos e rompimentos rítmicos acompanhados de violentos contrastes harmônicos” (idem). Convenhamos, porém, que não se trata aqui, como tampouco na peça de Shakespeare, de um evento atmosférico, mas de uma tempestade da alma. Chegou-se a ver nesta peça “o coroamento da vida espiritual de Beethoven, a luta contra o destino (tema que se encontra em sua Quinta Sinfonia: sol-sol-sol-mi: o destino que bate à porta...), e depois a aceitação e o sentimento religioso que disso deriva, notadamente no segundo movimento, andante con moto, antes da explosão final” (idem).
Convenhamos ainda, antes de prosseguir com as palavras do Padre, que algo já se pode dizer sem hesitação desta peça musical e da parte da obra de Beethoven que a ela se assemelha: a) trata-se de um rompimento com as categorias estéticas tradicionais, que como vimos foram maximamente desenvolvidas por Bach, mas se mantiveram de alguma maneira nos clássicos Haydn e Mozart; b) como a beleza artística é uma expressão do belo transcendental e das harmonias celestes, cósmicas, sociais, humanas, etc., ela tem caráter objetivo, razão por que romper (romper, não desenvolver, o que seria outra coisa) com as categorias que sempre a sustentaram implica, pelo menos, a substituição da função original (a expressão do belo e harmônico) por outra (que logo veremos qual seja); c) assim como a expressão artística do belo e harmônico tem características análogas às do que expressa (do mesmo modo que a palavra “catraca” tem em si algo, o som, semelhante ao objeto que ela significa), assim também o “novo tipo de expressão” beethoveniano há de ter características análogas às do que expressa.
Mais ainda: o “sentimento religioso” que deriva daquela aceitação referida, ou seja, do seu destino, não é o sentimento católico, e isso, caríssimos, o sabemos histórica e biograficamente. O sentimento religioso que se pode conceder a Beethoven é precisamente o resultante do rebaixamento — típico do pré-romantismo e do romantismo — da religião a um sentimento, a uma emotividade, a uma vivência pessoal, a qualquer coisa assim muito inferior à verdadeira religiosidade, que ou dependerá das virtudes teologais infundidas por Deus mesmo e da moção da Sua graça, ou não será.
Mas será que se dá mesmo aquele sentimento religioso na peça musical de que estamos tratando (e em boa parte da obra do compositor)? É o que veremos no próximo post.