quarta-feira, 30 de julho de 2008

O latim ainda (I)

Carlos Nougué
“Porém [os homens], tendo partido do oriente, encontraram uma planície na terra de Senaar, e habitaram nela. [...] e disseram: Vinde, façamos para nós uma cidade e uma torre cujo cimo chegue até o céu; e tornemos célebre o nosso nome, antes que nos espalhemos por toda a terra. O Senhor, porém, desceu a ver a cidade e a torre que os filhos de Adão edificavam, e disse: Eis que são um só povo, e têm todos a mesma língua; e começaram a fazer esta obra, e não desistirão de seu intento até que a tenham de todo executado. Vinde, pois, desçamos, e confundamos de tal sorte a linguagem, que um não compreenda a voz do outro. E assim o Senhor os dispersou daquele lugar por todos os países da terra [...]. E por isso lhe foi posto o nome de Babel, porque ali foi confundida a linguagem de toda a terra [...]” (Gênesis, XI, 2-9).

Assim, pois, a linguagem humana tende a tornar-se incompreensível entre os diversos falantes. Tende a tornar-se idioleto ou língua individual, e por isso não há estabilidade lingüística sequer nas nações de gramática cerrada e ensino generalizado. Tome-se a cultivada França, onde a gramática, forjada em Port-Royal e refinada de cartesianismo, é incapaz de impedir as velozes transformações ora em curso na língua vernácula. Ai porém da nação francesa sem sua gramática: não seria sequer nação. É por isso que os que bradam abstrata e genericamente contra a gramática, a posar de paladinos da liberdade de expressão lingüística ou poética, não passam de inimigos da cidade: dada sobretudo a punição divina à soberba da torre de Babel, a linguagem humana já não serviria ao amor de amizade que solda os laços da pólis se não fosse o esforço dos literatos e dos gramáticos por deter-lhe o curso da incompreensibilidade.

Nada disso quer dizer, veja-se bem, que antes de Babel não haveria gramática ou a necessidade dela, porque, sim, parece que haveria, pela mesma razão por que, como dizia Santo Tomás de Aquino, antes da queda, ou melhor, no estado de justiça original, haveria, sim, Estado ou a necessidade dele. Nem quer dizer que defendamos o beletrismo nem, muito menos, a gramatiquice, ou seja: o rigorismo afetado em coisas de linguagem, a mania de correção gramatical que toma conta das civilizações decadentes (como a nossa), nas quais precisamente se esvaem as idéias. Não é um fato a multiplicação inaudita, entre nós, de gramáticos, e até de gramáticos midiáticos, enquanto as idéias correm celeremente bueiro abaixo? Mas uma coisa é reconhecê-lo, e outra, muito diferente, é negar a importância da gramática, porque fazê-lo é o mesmo que dizer que não se deve corrigir um filho quando ele comete um erro lingüístico. Bem, na verdade, isso de não corrigir um filho também já está acontecendo, e tal é apenas mais um sintoma de que vivemos tempos não só de decadência, mas, ao que parece, finais...

Pois bem, o latim, mais que rebento de um hipotético “indo-europeu”, é folha caída da dispersão babélica. O latim era, originariamente, a língua tosca dos pobres pastores e agricultores que viviam às margens do Tibre, no Lácio, na área onde depois se edificaria a cidade de Roma. Só o podemos documentar a partir de 250 a.C., por inscrições campestres, fortemente dialetais. Quanto elas se distanciam do sermo urbanus (ou seja, da linguagem urbana), testemunha-o a célebre fíbula que traz gravado o seguinte: “Manios med fhefhaked Numasioi”, a que corresponde, no latim culto: “Manius me fecit Numerio” (= Mânio [o fabricante da fíbula] fez-me [a fíbula] para Numério [para eu dar de presente a Numério]). Pois bem, aquele mesmo povo, aprimorando-se nas artes da guerra, acabou por construir o imenso Império Romano e impor a chamada Pax romana em quase todo o mundo então conhecido. E levavam os romanos para as regiões conquistadas professores de latim, donde a mais ou menos rápida assimilação da língua dos vencedores pelos povos dominados.

Façam-se, porém, antes de continuarmos, as duas seguintes observações.

1) O latim, para transformar-se eficazmente na grande língua civilizacional que foi, recebeu grande influxo gramatical do grego, língua já fortemente gramaticalizada por causa da cultura superior do povo que a falava. (Disso, aliás, já podemos extrair um corolário: uma língua é superior a outra na mesma medida em que o povo que a fala seja culturalmente superior ao que fala a outra, porque, afinal, a língua não é senão instrumento da razão humana. Ao contrário de Leibniz, por um lado, e de James, Bergson, Le Roy e tantos outros “antiintelectualistas”, por outro [todos de alguma maneira caudatários de Guilherme de Ockham e, um pouco mais remotamente, de Duns Scott], não se devem confundir as operações do espírito humano, suas obras [imateriais] e os sinais materiais [orais ou escritos] dessas obras. Comumente se confundem estas três ordens de coisas, especialmente porque amiúde o que se diz da obra também se pode dizer da operação, e porque há o fato, evidente, de que chamamos as coisas significadas por seu sinal significante. Sem embargo, qualquer proposição pensada é um “organismo” imaterial formado de diversos conceitos [também, é óbvio, imateriais]; e qualquer proposição expressa é, enquanto expressa, um composto também de partes materiais [signos verbais] que se justapõem ou no tempo [proposição falada] ou no espaço [proposição escrita].)

2) Nem todos os territórios da România — nome que, aplicado ao conjunto dos territórios subordinados a Roma, se contrapunha então ao de Barbária — adotaram o latim. Nos Bálcãs, por exemplo, o grego não permitiu que ele se generalizasse, restringindo-o a uma região mais ao norte, entre limites que correspondem, pouco mais ou menos, aos da atual Romênia. Também não se arraigou o latim nas Ilhas Britânicas, nem em Malta, nem na Ásia Menor e em outras terras asiáticas, nem no Norte da África, no qual sua presença acabou por ser absolutamente apagada pelo árabe.

(Continua)