Carlos Nougué
O que deve oferecer a pólis aos cidadãos há de depender, inextricavelmente, de uma escala de valores. Ou, mais propriamente: a escala de valores políticos ou civilizacionais depende estreitamente da escala de valores do homem e de seus fins — pelo simples fato, esquecido desde Maquiavel, de que a pólis não é (ou não deveria ser) uma entidade contraposta aos indivíduos humanos, mas é antes um todo (todo não substancial, como veremos em outro post) composto das partes que são os seus cidadãos.
Santo Tomás mostra, na Suma contra os Gentios (ver caps. 25-63 do Livro III), a regra geral de aperfeiçoamento do homem. Com efeito, a felicidade humana não reside na saúde, na beleza ou no vigor do corpo, nem nos deleites sensíveis, nem nas honras ou na glória humana, nem na riqueza ou no poder, nem na produção de nenhumas obras (úteis ou artísticas), e nem sequer na prática das virtudes morais nem da prudência (ou frónesis): “A felicidade suprema do homem”, diz o Aquinate, “reside na contemplação da verdade”. “A ela, portanto”, prossegue o Doutor Comum, “parecem ordenar-se como a seu fim todas as operações humanas. Porque para a contemplação perfeita requer-se a incolumidade do corpo, à qual se ordenam todas as produções do homem necessárias para a sua vida. Requerem-se, também, o apaziguamento das perturbações das paixões, o que se obtém por meio das virtudes morais e da prudência, e o apaziguamento das paixões externas, ao qual se ordena todo o regime da vida civil [grifo nosso], de modo que, se considerados retamente, todos os ofícios humanos parecem estar a serviço dos que contemplam a verdade”.
Antes, porém, de prosseguirmos, devemos perguntar-nos o que é essa verdade que se há de contemplar. Os primeiros princípios? As leis que regulam o universo? Não, reponde ainda Santo Tomás: “Não é possível, porém, que a felicidade última do homem resida na contemplação que se dá na intelecção dos princípios, a qual, por sumamente universal, é imperfeitíssima e contém apenas em potência o conhecimento das coisas, e não é termo mas início do estudo humano, derivada em nós da natureza e não do estudo; tampouco pode residir na contemplação que se dá nas ciências, que versam sobre as coisas inferiores, já que é preciso que a felicidade resida na operação da intelecção com relação aos inteligíveis mais nobres. Assim, não resta senão que é na contemplação da sabedoria que versa sobre as coisas divinas que consiste a suprema felicidade do homem”.
Em outra obra, De regno (466: 74-80), resume-o Santo Tomás com perfeita luminosidade: “E, dado que o homem ao viver segundo a virtude se ordena a um fim ulterior, que consiste na fruição divina [...], é necessário que o fim da multidão humana [ou pólis], que é o mesmo do indivíduo, não seja viver segundo a virtude, mas antes, por meio de uma vida virtuosa, chegar à fruição divina”.
A vida do homem, portanto, deve repousar nesta verdade fundamental, e verdade não só teórica, mas prática: deve repousar em Deus. Deve ser possuída da divina contemplação. E a tal contemplação devem ordenar-se integralmente todas as atividades humanas: as econômicas, as políticas, as artísticas, as culturais; ou seja, a ela deve ordenar-se a mesma pólis. Deus é não só o alfa do homem, mas também o seu ômega: é a sua fonte e, necessariamente, é o seu fim, o seu termo, a sua meta. Deus, como diz o Padre Julio Meinvielle, “é a norma suprema e única que regula todas as ações de sua vida”, assim como, aliás, é a norma suprema e única que regula todas as ações e operações de todas as criaturas, ressalvada, naturalmente, a especificidade dessa regulação segundo a natureza de cada ente (sobre o conceito de natureza, vide mais abaixo, “Em tempo 1”). E registre-se que se está falando aqui em termos de pura naturalidade; em outras palavras, não se sai aqui do âmbito dos caracteres próprios do homem, determinados por sua própria natureza. A contemplação de Deus aqui referida não é a visão beatífica da face ou da essência de Deus que nos anuncia a Revelação; mas é já, como diz ainda o Padre Julio Meinvielle, “verdadeira contemplação, posse e fruição de Deus”.
E, digo eu: nenhum homem de boa vontade, ou seja, de coração e mente abertos à verdade, pode deixar de anuir racionalmente ao que se disse aqui do fim do homem e da pólis e de sua regra constitutiva.
Em tempo 1: Segundo o Aquinate em outra de suas luminosas definições, “natureza é a razão de certa arte divina, intrínseca aos entes, que os faz mover-se por si mesmos a seus próprios fins”. Tal definição definitiva é o desenvolvimento “orgânico” da tese das “razões seminais” de Santo Agostinho, um dos mestres do nosso Doutor Comum.
Em tempo 2: Dizia Santo Tomás, para escândalo dos liberais “econômicos”, que a propriedade privada é boa, mas “tem por limite o bem comum”. Não se assanhem, porém, os esquerdistas de todos os matizes: dizia São Paulo: “Senhor, trate bem o seu escravo; escravo, obedeça ao seu senhor”, e assinava em baixo Santo Tomás de Aquino. Trataremos de tudo isso calmamente na longa série de textos breves de que este faz parte. E temos de fazê-lo assim, mui calmamente e estendidamente, por duas razões: primeira, porque é assim que se deve proceder na perquirição, demonstração e exposição da verdade; segunda, porque tudo o que se diz e dirá aqui é de fato escândalo para um mundo engolfado em todos os tipos de paixões internas e externas e por eles enceguecido – um mundo cujo pilar principal é a impugnação da verdade conhecida. Um mundo propriamente iníquo.
O que deve oferecer a pólis aos cidadãos há de depender, inextricavelmente, de uma escala de valores. Ou, mais propriamente: a escala de valores políticos ou civilizacionais depende estreitamente da escala de valores do homem e de seus fins — pelo simples fato, esquecido desde Maquiavel, de que a pólis não é (ou não deveria ser) uma entidade contraposta aos indivíduos humanos, mas é antes um todo (todo não substancial, como veremos em outro post) composto das partes que são os seus cidadãos.
Santo Tomás mostra, na Suma contra os Gentios (ver caps. 25-63 do Livro III), a regra geral de aperfeiçoamento do homem. Com efeito, a felicidade humana não reside na saúde, na beleza ou no vigor do corpo, nem nos deleites sensíveis, nem nas honras ou na glória humana, nem na riqueza ou no poder, nem na produção de nenhumas obras (úteis ou artísticas), e nem sequer na prática das virtudes morais nem da prudência (ou frónesis): “A felicidade suprema do homem”, diz o Aquinate, “reside na contemplação da verdade”. “A ela, portanto”, prossegue o Doutor Comum, “parecem ordenar-se como a seu fim todas as operações humanas. Porque para a contemplação perfeita requer-se a incolumidade do corpo, à qual se ordenam todas as produções do homem necessárias para a sua vida. Requerem-se, também, o apaziguamento das perturbações das paixões, o que se obtém por meio das virtudes morais e da prudência, e o apaziguamento das paixões externas, ao qual se ordena todo o regime da vida civil [grifo nosso], de modo que, se considerados retamente, todos os ofícios humanos parecem estar a serviço dos que contemplam a verdade”.
Antes, porém, de prosseguirmos, devemos perguntar-nos o que é essa verdade que se há de contemplar. Os primeiros princípios? As leis que regulam o universo? Não, reponde ainda Santo Tomás: “Não é possível, porém, que a felicidade última do homem resida na contemplação que se dá na intelecção dos princípios, a qual, por sumamente universal, é imperfeitíssima e contém apenas em potência o conhecimento das coisas, e não é termo mas início do estudo humano, derivada em nós da natureza e não do estudo; tampouco pode residir na contemplação que se dá nas ciências, que versam sobre as coisas inferiores, já que é preciso que a felicidade resida na operação da intelecção com relação aos inteligíveis mais nobres. Assim, não resta senão que é na contemplação da sabedoria que versa sobre as coisas divinas que consiste a suprema felicidade do homem”.
Em outra obra, De regno (466: 74-80), resume-o Santo Tomás com perfeita luminosidade: “E, dado que o homem ao viver segundo a virtude se ordena a um fim ulterior, que consiste na fruição divina [...], é necessário que o fim da multidão humana [ou pólis], que é o mesmo do indivíduo, não seja viver segundo a virtude, mas antes, por meio de uma vida virtuosa, chegar à fruição divina”.
A vida do homem, portanto, deve repousar nesta verdade fundamental, e verdade não só teórica, mas prática: deve repousar em Deus. Deve ser possuída da divina contemplação. E a tal contemplação devem ordenar-se integralmente todas as atividades humanas: as econômicas, as políticas, as artísticas, as culturais; ou seja, a ela deve ordenar-se a mesma pólis. Deus é não só o alfa do homem, mas também o seu ômega: é a sua fonte e, necessariamente, é o seu fim, o seu termo, a sua meta. Deus, como diz o Padre Julio Meinvielle, “é a norma suprema e única que regula todas as ações de sua vida”, assim como, aliás, é a norma suprema e única que regula todas as ações e operações de todas as criaturas, ressalvada, naturalmente, a especificidade dessa regulação segundo a natureza de cada ente (sobre o conceito de natureza, vide mais abaixo, “Em tempo 1”). E registre-se que se está falando aqui em termos de pura naturalidade; em outras palavras, não se sai aqui do âmbito dos caracteres próprios do homem, determinados por sua própria natureza. A contemplação de Deus aqui referida não é a visão beatífica da face ou da essência de Deus que nos anuncia a Revelação; mas é já, como diz ainda o Padre Julio Meinvielle, “verdadeira contemplação, posse e fruição de Deus”.
E, digo eu: nenhum homem de boa vontade, ou seja, de coração e mente abertos à verdade, pode deixar de anuir racionalmente ao que se disse aqui do fim do homem e da pólis e de sua regra constitutiva.
Em tempo 1: Segundo o Aquinate em outra de suas luminosas definições, “natureza é a razão de certa arte divina, intrínseca aos entes, que os faz mover-se por si mesmos a seus próprios fins”. Tal definição definitiva é o desenvolvimento “orgânico” da tese das “razões seminais” de Santo Agostinho, um dos mestres do nosso Doutor Comum.
Em tempo 2: Dizia Santo Tomás, para escândalo dos liberais “econômicos”, que a propriedade privada é boa, mas “tem por limite o bem comum”. Não se assanhem, porém, os esquerdistas de todos os matizes: dizia São Paulo: “Senhor, trate bem o seu escravo; escravo, obedeça ao seu senhor”, e assinava em baixo Santo Tomás de Aquino. Trataremos de tudo isso calmamente na longa série de textos breves de que este faz parte. E temos de fazê-lo assim, mui calmamente e estendidamente, por duas razões: primeira, porque é assim que se deve proceder na perquirição, demonstração e exposição da verdade; segunda, porque tudo o que se diz e dirá aqui é de fato escândalo para um mundo engolfado em todos os tipos de paixões internas e externas e por eles enceguecido – um mundo cujo pilar principal é a impugnação da verdade conhecida. Um mundo propriamente iníquo.