terça-feira, 8 de julho de 2008

Os fins da arte (V)

Carlos Nougué
Como se disse ao final de Os fins da arte (IVb), “algumas peças bachianas para órgão, por sua vez, também são um caso único: porque podem assumir, como de fato já assumiram e assumem, caráter litúrgico verdadeiro, ou seja, católico, o que nos remete ao próximo artigo”. Penso, particularmente, no prelúdio coral Ich ruf’ zu Dir, Herr Jesu Christ e no lied Herr Jesu, was für Seelenweh, usados há mais de um século em missas beneditinas; mas o que digo vale também para muitas outras peças de Bach.

E, com efeito, dizia o papa Pio XII na carta encíclica Musicae Sacrae Diciplina: “Entre os instrumentos a que é aberta a porta do templo, vem, com todo o direito, em primeiro lugar o órgão, por ser particularmente adequado aos cânticos sacros e aos sagrados ritos, por conferir às cerimônias da Igreja notável esplendor e singular magnificência, por comover a alma dos fiéis com a gravidade e doçura do seu som, por encher a mente de gozo quase celeste, e por elevar fortemente a Deus e às coisas celestes”. Escutem as duas peças acima, e vejam se não se enquadram perfeitamente nas palavras do grande Papa.

Mas reafirme-se, sempre, com o Papa São Pio X, que, como vimos, amava Bach: “O lugar da música profana [de qualquer tipo, incluída a boa] não é a igreja”. Por isso explana o santo Papa em Tra le sollicitudine – Sobre a Música Sacra:

1. A música sacra, como parte integrante da Liturgia solene, participa de seu fim geral, que é a glória de Deus e a santificação dos fiéis. A música concorre para aumentar o decoro e esplendor das sagradas cerimônias; e, assim como o seu ofício principal é revestir de adequadas melodias o texto litúrgico proposto à consideração dos fiéis, assim o seu fim próprio é acrescentar mais eficácia ao mesmo texto, a fim de que por tal meio se excitem mais facilmente os fiéis à piedade e eles se preparem melhor para receber os frutos da graça, próprios da celebração dos sagrados mistérios.

2. Por isso a música sacra deve possuir, em grau eminente, as qualidades próprias da liturgia, e nomeadamente a santidade e a delicadeza das formas, donde resulta espontaneamente outra característica, a universalidade. – Deve ser santa, e por isso excluir todo o profano não só em si mesma, mas também no modo como é desempenhada pelos executantes. Deve ser arte verdadeira, não sendo possível que, de outra forma, exerça no ânimo dos ouvintes aquela eficácia que a Igreja se propõe a obter ao admitir na sua liturgia a arte dos sons. Mas seja, ao mesmo tempo, universal no sentido de que, embora seja permitido a cada nação admitir entre as composições religiosas aquelas formas particulares que, de certo modo, constituem o caráter específico de sua música própria, devem elas ser de tal maneira subordinadas aos caracteres gerais da música sacra, que ninguém de outra nação, ao ouvi-las, tenha uma impressão desagradável”.

Pois bem, dois são os principais tipos de música litúrgica (que se for arte verdadeira é, como já vimos, o gênero superior da música, precisamente por destinar-se a um fim superior), e quem o diz é ainda São Pio X:

3. Estas qualidades se encontram em grau sumo no canto gregoriano, que é conseqüentemente o canto próprio da Igreja Romana, o único que ela herdou dos antigos Padres, que conservou cuidadosamente no decurso dos séculos em seus códigos litúrgicos e que, como seu, propõe diretamente aos fiéis [...]. Por tais motivos, o canto gregoriano sempre foi considerado o modelo supremo da música sacra, podendo-se com razão estabelecer a seguinte lei geral: uma composição religiosa será tanto mais sacra e litúrgica quanto mais se aproximar no andamento, na inspiração e no sabor da melodia gregoriana, e será tanto menos digna do templo quanto mais se afastar de tal modelo. [...]

4. As supramencionadas qualidades verificam-se também na polifonia clássica, especialmente na da escola romana, que no século XVI atingiu a sua maior perfeição com as obras de Giovanni Pierluigi da Palestrina e, depois, continuou a produzir composições de excelente qualidade musical e litúrgica. A polifonia clássica, aproximando-se do modelo de toda a música sacra, que é o canto gregoriano, mereceu por esse motivo ser admitida, juntamente com o canto gregoriano, nas funções mais solenes da Igreja, quais sejam, as da Capela Pontifícia”.

E com tais palavras não só santas, mas profundamente filosóficas (leia-se o De musica de Santo Agostinho e ver-se-á por quê), termino a série de pequenos artigos sobre “Os fins da arte”, ficando ainda por escrever, para este blog, os artigos referentes às propriedades intrínsecas da arte (especialmente da música), ou seja, referentes a tudo aquilo que torna possível a São Pio X falar de “arte verdadeira”. O que porei nesses artigos, porém, já está dito em boa parte na longa entrevista que dei ao professor Marcos Cotrim, da Faculdade Católica de Anápolis (o vídeo com essa entrevista logo estará disponível), e fará parte, como já disse alhures, de um estudo de escopo e fôlego muito mais amplos.