Carlos Nougué
O liberalismo e o comunismo brotam de um mesmo non serviam, de uma mesma revolta contra Deus, e ambos carecem de uma correta compreensão do que é o homem, seus produtos e seus fins. Mostremo-lo ao longo da série de breves artigos que começa aqui.
I) O homem
O homem, em meio embora à grande complexidade de tendências a que está submetido, mantém una inequívoca e rigorosa unidade hierárquica.
Antes de tudo, tem ele um corpo, e dão-se nesse corpo operações físico-químicas que ele tem em comum com todos os outros entes visíveis, animados como inanimados. Mas também há no homem:
1) operações, como as de assimilação e crescimento, de caráter vegetativo, as quais ele tem em comum com as plantas;
2) operações, como o ver, o ouvir etc., de caráter sensitivo ou sensível, as quais, de certa forma, ele tem em comum com os animais;
3) e, por fim, as operações que lhe são próprias e distintivas no mundo visível, o inteligir e o querer, as quais, porém, mutatis mutandis, ele tem em comum com as substâncias espirituais a que chamamos anjos (e com Deus mesmo).
É o homem, portanto, um microcosmo, um epítome da criação, e por isso, pelo fato de que in homine quodam modo sunt omina (“no homem, de certo modo, se encontram todas as coisas”), dizia Santo Tomás de Aquino que merece ele nossa especial atenção (Suma Teológica, I, q. 96, a. 2, corpus)
E, apesar da complexidade de suas tendências e operações naturais, é o homem uma perfeita unidade (ao contrário do que sempre disseram, por um lado, as correntes de pensamento ultra-espiritualistas, como o platonismo, os diversos neoplatonismos e o cartesianismo, e, por outro lado, as correntes materialistas, como o marxismo e o darwinismo).
1) Ele é uno com unidade de natureza, ainda que sua natureza seja composta de dois princípios aparentemente tão incompatíveis, o corpo e a alma.
2) Ele também é uno com unidade de “pessoa”, porque todos os seus atos se atribuem a um mesmo “eu”, que se mantém idêntico a si mesmo ao longo das múltiplas mudanças e alterações da vida.
3) E ele é uno com unidade de orientação e de fim, porque tudo o que faz se destina a uma única e suma meta, a verdade e o bem plenos (e não aceitar isso é incorrer, ipso facto, de alguma maneira, no desespero niilista, que é propriamente o suicídio da vida espiritual).
Mas essa tão complexa unidade da criatura espiritual que é o homem (espiritual porque sua natureza dupla tem por princípio constitutivo e formal [ou atual] a alma espiritual) se torna ainda mais complexa porque o homem, conquanto se destine à verdade e ao bem plenos, vem ao mundo — como dizia o Padre Julio Meinvielle em De Lamennais a Maritain — em estado de “maior indigência. Ele é feito, sim, para toda a Verdade e Bem e a eles tende com toda a força de seu ser, mas vem ao mundo em total privação de toda Verdade e de todo Bem. Numa árdua e progressiva conquista, deve primeiro adquirir perfeições puramente materiais, para por meio delas alcançar as de sua vida afetiva e sensitiva, e depois, através destas, também as da vida intelectiva, e por fim culminar [...] na plena contemplação da Verdade”.
II) O homem e a pólis
Ora, é precisamente por tal indigência, por nascer como uma tabula rasa, que o homem é um “animal político”: ele depende não só da família, mas, a princípio, da pólis, da cidade, da sociedade, da civilização (chame-se como se queira), para viver e para atingir seus fins. Portanto, justamente pelo fato de ser composta de entes que, por um lado, nascem tão indigentes, tão absolutamente carentes de toda e qualquer perfeição, mas, por outro, anseiam a plena felicidade que é a posse da verdade e do bem supremos, é que a pólis ou civilização deve não só reunir em si toda a complexa variedade de bens naturais apetecidos pelo homem, ordenados naquela mesma unidade hierárquica segundo a qual ele os apetece, mas também propiciar condições para a consecução de seus bens e fins “transpolíticos”, como propriamente os chama Jorge Martínez Barrera em A Política em Aristóteles e Santo Tomás.
Daí a importância de assinalar não só quais são esses bens e condições, mas também a medida ou proporção em que devem e podem ser fornecidos pela pólis.
Em tempo: Para fazermos alguma ligação entre o tema da série de artigos que começa aqui e o da série de artigos sobre a arte que venho postando no blog, saiba-se que com a revolução francesa, a parteira de todas as formas de liberalismo, se desata uma arte em que o mundo do infernal se torna como que imanente ao próprio homem. Ele próprio passa a ser demoníaco, e não só na aparência; ele e todo o seu mundo estão entregues às forças diabólicas. Exemplos? Eis dois, concomitantes à mesma revolução: a obra do pintor, escultor e gravurista inglês John Flaxman (amigo do poeta e, também, ilustrador William Blake, que escreveu o terrível "Matrimônio do Céu e do Inferno" e era seguidor do não menos daninho Emmanuel Swedenborg) e a fase “escura” da pintura do espanhol Goya, em que o satanismo é explícito. Retenha-se, porém, que o que antes fora esporádico (com, por exemplo, Hieronymus Bosch ou o Paraíso Perdido de Milton), a partir de agora será uma das tônicas. Voltaremos ao assunto.
I) O homem
O homem, em meio embora à grande complexidade de tendências a que está submetido, mantém una inequívoca e rigorosa unidade hierárquica.
Antes de tudo, tem ele um corpo, e dão-se nesse corpo operações físico-químicas que ele tem em comum com todos os outros entes visíveis, animados como inanimados. Mas também há no homem:
1) operações, como as de assimilação e crescimento, de caráter vegetativo, as quais ele tem em comum com as plantas;
2) operações, como o ver, o ouvir etc., de caráter sensitivo ou sensível, as quais, de certa forma, ele tem em comum com os animais;
3) e, por fim, as operações que lhe são próprias e distintivas no mundo visível, o inteligir e o querer, as quais, porém, mutatis mutandis, ele tem em comum com as substâncias espirituais a que chamamos anjos (e com Deus mesmo).
É o homem, portanto, um microcosmo, um epítome da criação, e por isso, pelo fato de que in homine quodam modo sunt omina (“no homem, de certo modo, se encontram todas as coisas”), dizia Santo Tomás de Aquino que merece ele nossa especial atenção (Suma Teológica, I, q. 96, a. 2, corpus)
E, apesar da complexidade de suas tendências e operações naturais, é o homem uma perfeita unidade (ao contrário do que sempre disseram, por um lado, as correntes de pensamento ultra-espiritualistas, como o platonismo, os diversos neoplatonismos e o cartesianismo, e, por outro lado, as correntes materialistas, como o marxismo e o darwinismo).
1) Ele é uno com unidade de natureza, ainda que sua natureza seja composta de dois princípios aparentemente tão incompatíveis, o corpo e a alma.
2) Ele também é uno com unidade de “pessoa”, porque todos os seus atos se atribuem a um mesmo “eu”, que se mantém idêntico a si mesmo ao longo das múltiplas mudanças e alterações da vida.
3) E ele é uno com unidade de orientação e de fim, porque tudo o que faz se destina a uma única e suma meta, a verdade e o bem plenos (e não aceitar isso é incorrer, ipso facto, de alguma maneira, no desespero niilista, que é propriamente o suicídio da vida espiritual).
Mas essa tão complexa unidade da criatura espiritual que é o homem (espiritual porque sua natureza dupla tem por princípio constitutivo e formal [ou atual] a alma espiritual) se torna ainda mais complexa porque o homem, conquanto se destine à verdade e ao bem plenos, vem ao mundo — como dizia o Padre Julio Meinvielle em De Lamennais a Maritain — em estado de “maior indigência. Ele é feito, sim, para toda a Verdade e Bem e a eles tende com toda a força de seu ser, mas vem ao mundo em total privação de toda Verdade e de todo Bem. Numa árdua e progressiva conquista, deve primeiro adquirir perfeições puramente materiais, para por meio delas alcançar as de sua vida afetiva e sensitiva, e depois, através destas, também as da vida intelectiva, e por fim culminar [...] na plena contemplação da Verdade”.
II) O homem e a pólis
Ora, é precisamente por tal indigência, por nascer como uma tabula rasa, que o homem é um “animal político”: ele depende não só da família, mas, a princípio, da pólis, da cidade, da sociedade, da civilização (chame-se como se queira), para viver e para atingir seus fins. Portanto, justamente pelo fato de ser composta de entes que, por um lado, nascem tão indigentes, tão absolutamente carentes de toda e qualquer perfeição, mas, por outro, anseiam a plena felicidade que é a posse da verdade e do bem supremos, é que a pólis ou civilização deve não só reunir em si toda a complexa variedade de bens naturais apetecidos pelo homem, ordenados naquela mesma unidade hierárquica segundo a qual ele os apetece, mas também propiciar condições para a consecução de seus bens e fins “transpolíticos”, como propriamente os chama Jorge Martínez Barrera em A Política em Aristóteles e Santo Tomás.
Daí a importância de assinalar não só quais são esses bens e condições, mas também a medida ou proporção em que devem e podem ser fornecidos pela pólis.
Em tempo: Para fazermos alguma ligação entre o tema da série de artigos que começa aqui e o da série de artigos sobre a arte que venho postando no blog, saiba-se que com a revolução francesa, a parteira de todas as formas de liberalismo, se desata uma arte em que o mundo do infernal se torna como que imanente ao próprio homem. Ele próprio passa a ser demoníaco, e não só na aparência; ele e todo o seu mundo estão entregues às forças diabólicas. Exemplos? Eis dois, concomitantes à mesma revolução: a obra do pintor, escultor e gravurista inglês John Flaxman (amigo do poeta e, também, ilustrador William Blake, que escreveu o terrível "Matrimônio do Céu e do Inferno" e era seguidor do não menos daninho Emmanuel Swedenborg) e a fase “escura” da pintura do espanhol Goya, em que o satanismo é explícito. Retenha-se, porém, que o que antes fora esporádico (com, por exemplo, Hieronymus Bosch ou o Paraíso Perdido de Milton), a partir de agora será uma das tônicas. Voltaremos ao assunto.