Carlos Nougué
(Ao contrário do anunciado ao final do último texto, ainda não trataremos aqui da questão de “se são verdadeiramente belas obras como Tristão e Isolda e quaisquer ‘flores do mal’”, a qual ficará para um próximo post.)
A conclusão de nosso artigo anterior — qual seja, a de que “o fim da obra de arte não é fazer o belo, não é fazer coisas belas (o que implicaria uma clara tautologia), mas sim, fazendo o belo, fazendo coisas belas, deleitar ou comprazer o homem” — encerra a questão sobre os fins das artes?
Parece que sim, porque, negado o fim tautológico da arte pela arte, e apontada a ordenação dela a certo deleite do homem (o deleite com o belo), demos-lhe um fim suficiente, por tratar-se de um fim espiritual humano, superior em si a qualquer fim corporal humano. É a isso que se referia Bach ao dizer que “a música serve para recrear a alma dentro de justos limites”. Mas, em sentido contrário, pode-se dizer que, se por sua vez o próprio homem tem um fim que lhe é exterior (qual seja, Deus), todo e qualquer produto espiritual seu tem de ordenar-se a Ele, o que também diz Bach ao afirmar que “a música serve para louvar a Deus”. Ter-se-ia, então, uma contradição na própria afirmação de Bach que lemos em “Música e beleza (I)”.
Deve-se responder a isso dizendo, antes de tudo, que o homem não é um animal solitário. Ele é naturalmente social ou político, e toda e qualquer ação sua é, a princípio, uma ação também política, razão por que a própria formação ética do indivíduo, como dizia Aristóteles, visa a (e é coroada por) uma atuação na pólis ordenada ao bem da multidão. (Isso, diga-se, é todo o contrário da visão maquiavélico-liberal, para a qual a ética é assunto de foro íntimo individual, e a política, uma questão de alcançar ou manter-se no poder, donde ter a lei mero caráter de arbitração ou mediação no conflito entre os indivíduos e entre o indivíduo e o Estado – tema que trataremos proximamente).
Sucede porém que, como dizia Santo Tomás de Aquino:
• a pólis ou Estado é apenas um fim intermediário do homem, fim que assume caráter de meio com relação ao fim último dele, que é Deus mesmo;
• além disso, o fim da multidão ou Estado não pode ser diferente do fim de cada indivíduo que o compõe, razão por que o fim do próprio Estado também é Deus mesmo;
• nem tudo o que de propriamente humano faz o homem (ou seja, os atos da vontade e da inteligência: querer e entender) é meritório ou demeritório com relação ao Estado, mas o é, sim, com relação a Deus, motivo por que, se a princípio deve o homem atuar politicamente, pode, quando chamado a isto por Deus mesmo, deixar de atuar e de viver politicamente (como um São João Batista ou os Padres do deserto) para servir diretamente a Deus — sendo este obrar superior àquele não em espécie, mas em gênero.
Ora, tal escala e tal ordenação de fins hão de ser, analogicamente, também as da arte, da seguinte maneira:
• ao deleitar ou comprazer o homem criando coisas belas, a boa arte contribui — como dizia Platão com relação à música (na República e nas Leis) e Aristóteles com relação à música (na última parte da Política) e a diversas artes (na Poética) —, a boa arte contribui para a formação do caráter e da sensibilidade dos indivíduos, e portanto para a sua formação ética;
• ao contribuir para a formação ética do indivíduo, a arte já serve à própria pólis ou Estado, uma vez que a ética se ordena à política, sendo esta, como é, coroação daquela;
• mas deve a arte servir sempre, de algum modo, ao fim último do homem, ou seja, Deus, o que quer dizer que o fim último da arte também é Deus mesmo.
Pode-se hierarquizar a boa arte, portanto, da seguinte maneira geral.
a) Na base está aquela que meramente deleita, compraz ou recreia a alma dentro de justos limites, como dizia Bach.
b) No meio está aquela que serve diretamente para louvar a Deus, mas não liturgicamente.
c) No topo está aquela que serve a Deus liturgicamente.
Essa hierarquização, porém, requer muitas precisões e desdobramentos, que se farão nos próximos posts.
P.S. 1: Alguém já disse: “Deus nos deu a música e o vinho para mais facilmente podermos carregar a nossa cruz”. Seria ocioso dizer que, mais que para a música, isso de “justos limites” vale para o vinho, embora seja imperioso dizer: tampouco a arte, incluída a música, pode ser um sucedâneo para a religião, ao contrário do que propugnava, com tanta infelicidade, Schopenhauer.
P.S. 2: Antecipando algo do próximo artigo: naturalmente, a boa arte que serve diretamente a Deus não deixa de contribuir, muito pelo contrário, para a formação do indivíduo e da pólis – porque, quanto melhor se serve a um fim ulterior, melhor se servirá a um fim anterior, assim como a graça, conformando a si a natureza, não a destrói, mas a melhora.
(Ao contrário do anunciado ao final do último texto, ainda não trataremos aqui da questão de “se são verdadeiramente belas obras como Tristão e Isolda e quaisquer ‘flores do mal’”, a qual ficará para um próximo post.)
A conclusão de nosso artigo anterior — qual seja, a de que “o fim da obra de arte não é fazer o belo, não é fazer coisas belas (o que implicaria uma clara tautologia), mas sim, fazendo o belo, fazendo coisas belas, deleitar ou comprazer o homem” — encerra a questão sobre os fins das artes?
Parece que sim, porque, negado o fim tautológico da arte pela arte, e apontada a ordenação dela a certo deleite do homem (o deleite com o belo), demos-lhe um fim suficiente, por tratar-se de um fim espiritual humano, superior em si a qualquer fim corporal humano. É a isso que se referia Bach ao dizer que “a música serve para recrear a alma dentro de justos limites”. Mas, em sentido contrário, pode-se dizer que, se por sua vez o próprio homem tem um fim que lhe é exterior (qual seja, Deus), todo e qualquer produto espiritual seu tem de ordenar-se a Ele, o que também diz Bach ao afirmar que “a música serve para louvar a Deus”. Ter-se-ia, então, uma contradição na própria afirmação de Bach que lemos em “Música e beleza (I)”.
Deve-se responder a isso dizendo, antes de tudo, que o homem não é um animal solitário. Ele é naturalmente social ou político, e toda e qualquer ação sua é, a princípio, uma ação também política, razão por que a própria formação ética do indivíduo, como dizia Aristóteles, visa a (e é coroada por) uma atuação na pólis ordenada ao bem da multidão. (Isso, diga-se, é todo o contrário da visão maquiavélico-liberal, para a qual a ética é assunto de foro íntimo individual, e a política, uma questão de alcançar ou manter-se no poder, donde ter a lei mero caráter de arbitração ou mediação no conflito entre os indivíduos e entre o indivíduo e o Estado – tema que trataremos proximamente).
Sucede porém que, como dizia Santo Tomás de Aquino:
• a pólis ou Estado é apenas um fim intermediário do homem, fim que assume caráter de meio com relação ao fim último dele, que é Deus mesmo;
• além disso, o fim da multidão ou Estado não pode ser diferente do fim de cada indivíduo que o compõe, razão por que o fim do próprio Estado também é Deus mesmo;
• nem tudo o que de propriamente humano faz o homem (ou seja, os atos da vontade e da inteligência: querer e entender) é meritório ou demeritório com relação ao Estado, mas o é, sim, com relação a Deus, motivo por que, se a princípio deve o homem atuar politicamente, pode, quando chamado a isto por Deus mesmo, deixar de atuar e de viver politicamente (como um São João Batista ou os Padres do deserto) para servir diretamente a Deus — sendo este obrar superior àquele não em espécie, mas em gênero.
Ora, tal escala e tal ordenação de fins hão de ser, analogicamente, também as da arte, da seguinte maneira:
• ao deleitar ou comprazer o homem criando coisas belas, a boa arte contribui — como dizia Platão com relação à música (na República e nas Leis) e Aristóteles com relação à música (na última parte da Política) e a diversas artes (na Poética) —, a boa arte contribui para a formação do caráter e da sensibilidade dos indivíduos, e portanto para a sua formação ética;
• ao contribuir para a formação ética do indivíduo, a arte já serve à própria pólis ou Estado, uma vez que a ética se ordena à política, sendo esta, como é, coroação daquela;
• mas deve a arte servir sempre, de algum modo, ao fim último do homem, ou seja, Deus, o que quer dizer que o fim último da arte também é Deus mesmo.
Pode-se hierarquizar a boa arte, portanto, da seguinte maneira geral.
a) Na base está aquela que meramente deleita, compraz ou recreia a alma dentro de justos limites, como dizia Bach.
b) No meio está aquela que serve diretamente para louvar a Deus, mas não liturgicamente.
c) No topo está aquela que serve a Deus liturgicamente.
Essa hierarquização, porém, requer muitas precisões e desdobramentos, que se farão nos próximos posts.
P.S. 1: Alguém já disse: “Deus nos deu a música e o vinho para mais facilmente podermos carregar a nossa cruz”. Seria ocioso dizer que, mais que para a música, isso de “justos limites” vale para o vinho, embora seja imperioso dizer: tampouco a arte, incluída a música, pode ser um sucedâneo para a religião, ao contrário do que propugnava, com tanta infelicidade, Schopenhauer.
P.S. 2: Antecipando algo do próximo artigo: naturalmente, a boa arte que serve diretamente a Deus não deixa de contribuir, muito pelo contrário, para a formação do indivíduo e da pólis – porque, quanto melhor se serve a um fim ulterior, melhor se servirá a um fim anterior, assim como a graça, conformando a si a natureza, não a destrói, mas a melhora.