sexta-feira, 27 de junho de 2008

Os fins da arte (II)

Carlos Nougué
(Ao contrário do anunciado ao final do último texto, ainda não trataremos aqui da questão de “se são verdadeiramente belas obras como Tristão e Isolda e quaisquer ‘flores do mal’”, a qual ficará para um próximo post.)

A conclusão de nosso artigo anterior — qual seja, a de que “o fim da obra de arte não é fazer o belo, não é fazer coisas belas (o que implicaria uma clara tautologia), mas sim, fazendo o belo, fazendo coisas belas, deleitar ou comprazer o homem” — encerra a questão sobre os fins das artes?

Parece que sim, porque, negado o fim tautológico da arte pela arte, e apontada a ordenação dela a certo deleite do homem (o deleite com o belo), demos-lhe um fim suficiente, por tratar-se de um fim espiritual humano, superior em si a qualquer fim corporal humano. É a isso que se referia Bach ao dizer que “a música serve para recrear a alma dentro de justos limites”. Mas, em sentido contrário, pode-se dizer que, se por sua vez o próprio homem tem um fim que lhe é exterior (qual seja, Deus), todo e qualquer produto espiritual seu tem de ordenar-se a Ele, o que também diz Bach ao afirmar que “a música serve para louvar a Deus”. Ter-se-ia, então, uma contradição na própria afirmação de Bach que lemos em “Música e beleza (I)”.

Deve-se responder a isso dizendo, antes de tudo, que o homem não é um animal solitário. Ele é naturalmente social ou político, e toda e qualquer ação sua é, a princípio, uma ação também política, razão por que a própria formação ética do indivíduo, como dizia Aristóteles, visa a (e é coroada por) uma atuação na pólis ordenada ao bem da multidão. (Isso, diga-se, é todo o contrário da visão maquiavélico-liberal, para a qual a ética é assunto de foro íntimo individual, e a política, uma questão de alcançar ou manter-se no poder, donde ter a lei mero caráter de arbitração ou mediação no conflito entre os indivíduos e entre o indivíduo e o Estado – tema que trataremos proximamente).

Sucede porém que, como dizia Santo Tomás de Aquino:

• a pólis ou Estado é apenas um fim intermediário do homem, fim que assume caráter de meio com relação ao fim último dele, que é Deus mesmo;

• além disso, o fim da multidão ou Estado não pode ser diferente do fim de cada indivíduo que o compõe, razão por que o fim do próprio Estado também é Deus mesmo;

• nem tudo o que de propriamente humano faz o homem (ou seja, os atos da vontade e da inteligência: querer e entender) é meritório ou demeritório com relação ao Estado, mas o é, sim, com relação a Deus, motivo por que, se a princípio deve o homem atuar politicamente, pode, quando chamado a isto por Deus mesmo, deixar de atuar e de viver politicamente (como um São João Batista ou os Padres do deserto) para servir diretamente a Deus — sendo este obrar superior àquele não em espécie, mas em gênero.

Ora, tal escala e tal ordenação de fins hão de ser, analogicamente, também as da arte, da seguinte maneira:

• ao deleitar ou comprazer o homem criando coisas belas, a boa arte contribui — como dizia Platão com relação à música (na República e nas Leis) e Aristóteles com relação à música (na última parte da Política) e a diversas artes (na Poética) —, a boa arte contribui para a formação do caráter e da sensibilidade dos indivíduos, e portanto para a sua formação ética;

• ao contribuir para a formação ética do indivíduo, a arte já serve à própria pólis ou Estado, uma vez que a ética se ordena à política, sendo esta, como é, coroação daquela;

• mas deve a arte servir sempre, de algum modo, ao fim último do homem, ou seja, Deus, o que quer dizer que o fim último da arte também é Deus mesmo.

Pode-se hierarquizar a boa arte, portanto, da seguinte maneira geral.

a) Na base está aquela que meramente deleita, compraz ou recreia a alma dentro de justos limites, como dizia Bach.

b) No meio está aquela que serve diretamente para louvar a Deus, mas não liturgicamente.

c) No topo está aquela que serve a Deus liturgicamente.

Essa hierarquização, porém, requer muitas precisões e desdobramentos, que se farão nos próximos posts.

P.S. 1: Alguém já disse: “Deus nos deu a música e o vinho para mais facilmente podermos carregar a nossa cruz”. Seria ocioso dizer que, mais que para a música, isso de “justos limites” vale para o vinho, embora seja imperioso dizer: tampouco a arte, incluída a música, pode ser um sucedâneo para a religião, ao contrário do que propugnava, com tanta infelicidade, Schopenhauer.

P.S. 2: Antecipando algo do próximo artigo: naturalmente, a boa arte que serve diretamente a Deus não deixa de contribuir, muito pelo contrário, para a formação do indivíduo e da pólis – porque, quanto melhor se serve a um fim ulterior, melhor se servirá a um fim anterior, assim como a graça, conformando a si a natureza, não a destrói, mas a melhora.