terça-feira, 26 de abril de 2011

Sobre demônios e endemoniados (I)

Sidney Silveira


Estava eu por estes dias lendo a última questão do De Malo, de Santo Tomás — que trata dos demônios — juntamente com o livro Os endemoniados, hoje, do exorcista Corrado Balducci, e me pareceu útil trazer aos nossos leitores um pouco da doutrina católica sobre estas criaturas espirituais cuja excelência ontológica excede incomensuravelmente à humana.


Noutras ocasiões, lembramos no Contra Impugnantes que, de acordo com o Aquinate, a pecabilidade no Anjo provém de uma espécie de ignorância metafísica, ou seja, do fato de os Anjos (que não são Ato Puro, mas compostos de essência e ser) não terem a intelecção de todos os inteligíveis num só ato de sua elevada inteligência, sendo o seu conhecimento, portanto sucessivo — por ter um antes e um depois — e não instantâneo. Só Deus conhece instantaneamente todas as coisas num só ato, daí ser Ele omnisciente, por isso não há trânsito entre o que Ele pensa e o que cria (ou entende). Em resumo, em Deus não é possível haver ignorância, pois Ele já está na suma posse de todos os inteligíveis, que se identificam em absoluto com o seu Próprio Ser Subsistente. Nos Anjos, diferentemente, não há essa intelecção perfeitíssima e englobante de tudo o que há num só ato, razão pela qual eles não podem ter o conhecimento da ordem da Divina Providência, etc.


Santo Tomás encontra, pois, na própria natureza criatural angélica a ratio da pecabilidade, ou seja: a radical possibilidade de o Anjo pecar, como de fato pecaram Lúcifer e os que se seguiram a ele. E o fato de os Anjos que não caíram não poderem mais pecar se dá não em virtude de sua natureza, e sim porque eles foram sobrenaturalmente confirmados na luz da glória, sob cujo influxo nenhuma criatura é capaz de pecado. Mas por que essa necessidade de encontrar na inteligência do Anjo a raiz da possibilidade de pecar? Simplesmente porque, embora o pecado tenha sede na vontade, esta é apetite intelectivo do bem, e, portanto, a inteligência possui um papel-chave em todo ato pecaminoso, seja humano ou angélico. Noutras palavras, só uma inteligência absolutamente inerrante poderia não pecar. E este não era o caso dos Anjos, apesar da sua notável excelência.


Depois do pecado, há uma situação mais ou menos simétrica entre os Anjos e demônios: uns confirmaram-se na glória e não podem mais pecar, enquanto outros caíram e não podem mais ver-se livres do pecado. Estes últimos estão, pois, irremediavelmente perdidos, ao passo que os seus antípodas angélicos estão invencivelmente salvos. Para uns, amor, luz, glória; para outros, o ódio espiritual mais hediondo, trevas, desgraça. Ora, neste estado deplorável de confirmação no mal de culpa e de pena, uma criatura espiritual (como são os demônios, que com o pecado não perderam sua excelência ontológica) não pode senão voltar-se necessariamente ao pecado, aumentando a sua culpa ajuntando malefícios sobre malefícios, até o Dia do Juízo. Mas eles podem voltar-se contra quem? Como?


Pois bem. Digam-se em primeiro lugar três coisas:


a) o ódio satânico a Deus é impotente para feri-Lo, pois Deus é o Ato Puro que não pode sofrer qualquer alteração proveniente de nenhuma criatura.


b) Esse ódio é também impotente para ferir os Anjos confirmados na luz da glória, mesmo no caso eventual de o demônio ser de uma hierarquia superior à do Anjo, pois, como se disse acima, os Anjos que não pecaram foram confirmados na glória.


c) Resta, pois, ao demônio voltar-se contra o homem, que ainda é pecável no atual estado e possui uma dignidade ontológica muitíssimo inferior à das criaturas espirituais, nesta escala que vai da potência da matéria prima ao Ato Puro do espírito divino. Enquanto pode, portanto, o demônio vinga-se de Deus ferindo o homem, perdendo-o quando lhe é permitido chegar a tanto. Mas sempre como instrumento (em geral, de santificação) da Divina Providência, como se verá adiante.


Os teólogos identificam quatro modos de ação diabólica contra o homem: a tentação, a infestação local, a infestação pessoal e a possessão. Balducci convenceu-me de que o termo obsessão já não é o ideal, pois se confunde com algumas linhas da psicologia e da psiquiatria contemporâneas. Vejamos cada um desses casos, seguindo de perto o nosso exorcista.


A tentação diabólica é um estímulo, uma incitação ao pecado. Noutras palavras, tentar é por à prova induzindo ao mal, experimentando (tentare est proprie experimentum sumere de aliquo, conforme diz Santo Tomás na Suma Teológica, I, q. 144, a. 2). Aqui é conveniente dizer que nem todas as tentações provêm do diabo, pois muitas são advindas da nossa natureza corrompida pelo pecado, da concupiscência desgovernada. Mas como exercita o demônio esse poder de tentar o homem? Resposta: agindo sobre os sentidos internos e externos, principalmente sobre a memória, a imaginação, o tato e a visão. Desta forma, ele procurar atuar, ainda que indiretamente, sobre a vontade, induzindo-a a querer pecar.


A infestação local é a atividade diabólica exercida sobre a natureza inanimada ou, também, sobre a animada inferior, para perturbar o homem — sempre com intuitos espirituais maléficos.


A infestação pessoal ocorre quando o demônio comete contra uma pessoa uma série de tentações violentíssimas e reiteradas vezes. Aqui, em boa parte dos casos ele incita a pecados mais graves, tanto da carne como do espírito. Aparições monstruosas, blasfemas, imagens lúbricas e palavras malditas acossam o homem sob o influxo da infestação pessoal.


A possessão caracteriza-se pelo completo domínio de Satanás sobre uma pessoa, da seguinte forma a) diretamente sobre o corpo, pois a sua atuação sobre a matéria é perfeita, na medida em que a criatura espiritual tem o poder de submetê-la totalmente; b) indiretamente sobre alma, já que esta se serve do corpo para as suas operações próprias. Pois bem, nesta situação o homem é instrumento dócil do poder despótico e maléfico do diabo, como diz Balducci.


Nos próximos textos desta série veremos alguns aspectos dessa ação diabólica, dada a natureza de tais criaturas, a começar pelo fato de que os demônios têm total domínio sobre o lugar, pois eles estão onde operam, nas palavras de Santo Tomás. Eles não podem estar contidos num lugar, como nós, senão que o contêm. Veremos também se o possesso, a partir do momento em que passa a sê-lo, comete atos pecaminosos ou se está isento de culpa ao agir como instrumento do demônio.


(continua)