Sidney Silveira
Em todo ente composto de potência e ato, de matéria e forma, há uma distância entre o seu agir e a atualidade que busca, como por exemplo (no caso do homem) entre o querer uma coisa e o possuí-la, entre o estudar uma matéria difícil e o entendê-la. Os entes, sem nenhuma exceção, se movem para os fins, e todo movimento é o trânsito de uma potência a um ato. Com Deus não ocorre isto: Ele possui o fim possuindo-Se, porque é Ato Puro, sem mescla de potência. Em termos metafísicos, a Sua impecabilidade explica-se pela instantaneidade do seu agir que coincide com a Sua eterna atualidade, daí que Ele não pode desviar-se do fim que, afinal, Ele é (e lembramos que o pecado é sempre um desvio do fim). Quanto a nós, é possível que pequemos porque não possuímos o nosso fim imediatamente, mas o buscamos, no tempo, a partir dos atos próprios da nossa forma entis (atos da inteligência e da vontade), que são complexos porque dependem, por sua vez, da operação ótima de várias potências sensitivas — neste composto psicossomático que nos constitui.
Em todo ente composto de potência e ato, de matéria e forma, há uma distância entre o seu agir e a atualidade que busca, como por exemplo (no caso do homem) entre o querer uma coisa e o possuí-la, entre o estudar uma matéria difícil e o entendê-la. Os entes, sem nenhuma exceção, se movem para os fins, e todo movimento é o trânsito de uma potência a um ato. Com Deus não ocorre isto: Ele possui o fim possuindo-Se, porque é Ato Puro, sem mescla de potência. Em termos metafísicos, a Sua impecabilidade explica-se pela instantaneidade do seu agir que coincide com a Sua eterna atualidade, daí que Ele não pode desviar-se do fim que, afinal, Ele é (e lembramos que o pecado é sempre um desvio do fim). Quanto a nós, é possível que pequemos porque não possuímos o nosso fim imediatamente, mas o buscamos, no tempo, a partir dos atos próprios da nossa forma entis (atos da inteligência e da vontade), que são complexos porque dependem, por sua vez, da operação ótima de várias potências sensitivas — neste composto psicossomático que nos constitui.
Por aí já se vislumbra que o problema do pecado tem resolução metafísica. Vamos a um esboço dela em Santo Tomás:
1- Deus é impecável porque o seu a agir e o seu Ser identificam-se absolutamente. E, sendo o pecado também definido como deficiência de ser na ação, em Deus não pode haver pecado, pois Ele é sumamente Ser e é Ato Puro. No Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, Santo Tomás nos diz que o fato de que Deus não pode pecar não derroga em nada a Sua liberdade, porque “o pecado nem é a liberdade nem faz parte da liberdade”. É justamente a perfeição da liberdade de Deus que O priva de toda possível defectibilidade. Ademais, sendo Ele a Bondade subsistente, o Seu querer coincide com essa Sua suma bondade. Por fim, não tendo Deus nenhuma deficiência ou carência quanto ao ser, é evidente que não pode pecar nem na inteligência, nem na vontade.
2- O Anjo — embora tenha uma inteligência intuitiva que não lhe permite errar com relação aos objetos inteligidos — não tem a intuição simultânea de toda a realidade, nem do que Deus é em si mesmo. Diz Santo Tomás que “a causa primeira excede a medida da substância dos Anjos e dos demônios. Daí que, mesmo ao conhecer [intuitivamente] a essência de Deus, [a inteligência angélica] não apreende a ordem total da Providência divina” [De Malo, q. 16, a. 2. ad 10]. Por isto, frisa o português Celestino Pires, no seu excelente Inteligência e Pecado em Tomás de Aquino, que a ignorância dos Anjos, de que fala Santo Tomás, não é privação de conhecimento devida à natureza angélica. Não é obnubilação da inteligência. É simplesmente que o seu conhecimento não é total, ou seja: não exaure a inteligibilidade da causa que Deus é. Sendo assim, podemos dizer que há uma ignorância metafísica nos Anjos, razão pela qual o demônio pôde considerar possível assemelhar-se a Deus e, com isto, pecar (pois é claro que a inteligência angélica não quereria algo que a ela se apresentasse como impossível). Foi possível o demônio querer a autonomia em relação a Deus porque não conhece toda a ordem da Providência. E assim, considerando o seu próprio bem, desconsiderou a sua ordem necessária em relação ao Bem que Deus é.
3- O ser humano (no estado de inocência original) — Recém-saídos das mãos do Criador, dotados de dons preternaturais e com a superabundância da Graça, dada a sua amizade com Deus, Adão e Eva tinham uma inteligência não passível de erro. O pecado, portanto, não residiu na inteligência, mas na vontade, que os fez amar desordenadamente a própria excelência, e só depois, então, errar na inteligência e crer na possibilidade — proposta pela serpente — de ser semelhantes a Deus. Não foi o erro ou defeito na inteligência o que os fez pecar, mas o pecado na vontade é que os fez errar na escolha feita. Erro de eleição: elegeram o próprio bem sem ordená-lo ao Bem que Deus é. E essa eleição foi causada pelo pecado na vontade, que quis autonomia, independência em relação a Deus.
4- O homem caído — Após o pecado, todas as potências inferiores não mais puderam estar perfeitamente ordenadas às superiores, como no estado original. E se o homem depois de Adão nasce em pecado, isto significa que teve um déficit de liberdade, na medida em que tem enorme dificuldade de praticar o bem e de conhecer a verdade. A sua inteligência é passível de erro, ao contrário da dos Anjos e de Adão.
A propósito, lembra-nos o mesmo Celestino Pires que Santo Tomás estuda as causas do pecado atual no homem caído formulando um problema geral: deve-se supor uma deficiência na vontade anterior à sua ação moral má? Diz Celestino — e nisto é perfeitamente concorde com o Angélico — que a vontade age sob a moção da inteligência quando esta lhe propõe o bem querido. Mas a inteligência pode propor um bem falso ou aparente. Assim, o pecado no homem caído proviria de duas possibilidades: ou porque a vontade cedeu à apreensão sensível (o que não poderia acontecer com Adão e muito menos com os Anjos), ou porque seguiu a razão que não lhe apresentou o bem com propriedade, ou seja: não o ordenou ao bem superior. Esse seu ato da vontade também constitui, portanto, uma falta de ordem ao fim. E essa desordem, segundo Tomás de Aquino, é voluntária porque a vontade, mesmo no homem caído, pode não ceder ao atrativo. “O deleite dos sentidos move a vontade do adúltero e a atrai ao deleite que exclui a ordem da razão e a lei divina. O que é mal moral. (...) [Mas] por mais que o bem sensível solicite a vontade, está no poder desta ceder ou não ceder ao atrativo” (De Malo, I, 3).
Pois bem, se na atual condição nascemos em pecado (se se é católico, é necessário crer nisto por fé!!!!), e se neste estado de natureza caída temos grande dificuldade de alcançar a verdade e de querer os bens ordenando-os a Deus, o que dizer de uma teoria (como a liberal) que põe a liberdade no ato de escolha e entroniza a consciência individual “autônoma”, se acabamos de ver que o pecado (em todos os níveis e estados!) é, literalmente, um ato de escolha movido pela vontade que quer o bem de forma autônoma em relação à ordem que Deus criou?
Por favor, pensem e respondam a si mesmos.