segunda-feira, 20 de abril de 2009

Relações Igreja-Estado (I)

Sidney Silveira
O católico liberal de nosso tempo aprova e difunde a tese de que a separação entre a Igreja e o Estado foi o que de melhor houve na história eclesiástica — “em benefício da Igreja”, acrescenta com certo pietismo. E se algum imprudente porventura lhe mostra vários documentos do Magistério infalível** que ou condenam, explicitamente, tal separação (como por exemplo a Encíclica Gravissimo Offichii Munere Defungimur, de São Pio X), ou afirmam que a realeza de Cristo abarca também a ordem temporal, e não diz respeito apenas à espiritual (como em Quas Primas, de Pio XI), ele dá de ombros e deixa de lado a resolução de tão candente problema, procurando encontrar certa paz para a sua consciência laxa na conciliação entre a fé que diz professar e a realidade objetiva desse Magistério e do ensinamento dos Santos Doutores — como Tomás de Aquino — acerca do tema. No máximo, esse católico liberal culto alegará que, hoje em dia, não se pode defender a tese da subordinação do Estado à Igreja, entre outras coisas, porque ela é, em si, irrealizável. É evidente que ele não estudou as distinções entre poder temporal e espiritual, e nem imagina qual seja o princípio inamovível dessa subordinação entre tais ordens de bens. Além do mais, com tal arremedo de argumento — na verdade, uma premissa condicionada por critérios meramente políticos —, o nosso católico liberal põe de lado toda a história dos apóstolos mártires (imaginemos São Paulo falando aos Romanos, ou então aos Gregos no Aerópago, sobre a necessidade da conversão de todos ao Evangelho de Nosso Senhor com semelhantes pruridos teóricos!), além, é claro, de pôr entre parênteses o fim último do homem e de todas as sociedades, como veremos no decorrer dos artigos desta série.

Tomo como parâmetro para os textos que o Contra Impugnantes postará sobre este espinhoso assunto o magnífico escrito “O Reino de Deus”, do Padre Álvaro Calderón, teólogo argentino da Fraternidade Sacerdotal São Pio X – FSSPX, professor do Seminário de La Reja, próximo a Buenos Aires.

Um primeiro esclarecimento a fazer é o seguinte: o nosso arquetípico católico liberal já labora num erro prévio, que é a distinção entre Igreja e Reino de Deus, que, para o Magistério bimilenar e para os Santos Doutores da Igreja, sempre foram a mesmíssima coisa, mas para o nosso valente “teólogo” liberal, não. A respeito disto, diz claramente Santo Tomás de Aquino, o Doutor Comum, no seu Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, IV, dist. 49, q. 1, art. 2:

“A expressão “Reino de Deus” se entende, por antonomásia, de duas maneiras: ou como a congregação dos que caminham na Fé, e assim se diz que o Reino de Deus é a Igreja militante; ou, de outra forma, como o consórcio daqueles que já estão fixados no fim [os bem-aventurados], e assim se diz que o Reino de Deus é a Igreja triunfante”.

Este é, caros amigos, o “pecado” de Santo Tomás: ser simples, direto, sem peias; ser um homem do “sim, sim, não, não” evangélico. Neste caso, dizendo — em uníssono com o Magistério eclesiástico, é claro — que, para nós, homens feridos pelo pecado original e caminhantes por este vale de lágrimas, o Reino de Deus é a Igreja militante, ou seja: a Igreja Católica, única Igreja de Cristo, assim definida até a malfadada invenção do conceito de subsist in, do qual falaremos adiante e que fez a Igreja entrar numa verdadeira crise de identidade, ou seja, começar a perguntar-se sobre o que ela mesma é (coisa sobre a qual, até então, não havia a mais remota sombra de dúvida).

O liberal, por sua vez, parte das seguintes distinções — entre outras, que posteriormente traremos à baila, com farta indicação bibliográfica:

1- Distinção entre Reino de Deus e Igreja (sendo o primeiro meramente escatológico e a segunda, meramente temporal);
2- Distinção entre Reino de Deus e mundo (dando ao primeiro o mesmo caráter meramente escatológico acima descrito, e ao segundo uma emancipação política do primado da Igreja);
3- Distinção entre Igreja e mundo (não havendo uma relação de subordinação necessária entre o Reino e o mundo, este último poderá prescindir da tutela da Igreja, ou seja: não precisará in primis submeter-se às leis de Deus de que a Igreja militante é depositária, por mandato divino. O mundo está, portanto, emancipado).

Nesta visão liberal autonomista, a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens estão como que separadas por um muro intransponível — por uma “essencial” cisão entre os planos temporal e espiritual. Nela o Estado circunscreve-se pelos bens temporais e a Igreja é especificada, tão-somente, por seu fim escatológico. E isto ocorre até mesmo entre autores presumivelmente conservadores, como o Cardeal Charles Journet, um amigo de Jacques Maritain (este último, aclamado ao final do Concílio Vaticano II) que abordara o tema da política em La Juridiction de l’Eglise sur la Cité, e o Cardeal A. Ottaviani.

A seu tempo, veremos como essas verdadeiras aberrações teológicas aplicadas à política contribuirão para a confusão entre a pax Christi e a paz meramente humana (a de uma Nova Ordem Mundial, de caráter maçônico, forjada numa fraternidade universal sem Deus, ou então com o sincretismo de Deus com todos os “deuses” e demônios). E contribuirão, também, para uma interpretação heterodoxa e antitradicional das relações entre Igreja e Estado.

Comentando as Instituitiones Iuris Publici Ecclesiastici, do Cardeal Ottaviani, Álvaro Calderón aponta de que maneira a defesa da Tradição, por este aguerrido antimodernista (heroicamente atuante no Concílio Vaticano II), pode ser considerada como uma espécie de muro com brechas.

► Ottaviani delimita, na referida obra, o Estado em uma ordem natural, esquecendo-se de que do fato de a ordem natural exigir, de certa maneira, a existência do Estado — conforme sempre fora sublinhado pelo Magistério (com base escriturística em Gn. I, 28) —, não se segue que o Estado esteja encerrado na ordem natural, da mesma forma como a natureza não é fechada em si mesma, mas depende da ordem sobrenatural, mesmo para lograr os seus fins naturais, na medida em que Deus é mantenedor das criaturas no ser e também coopera na natureza. Diz Santo Tomás: “A própria operação da natureza é operação da força divina (sed ipsa naturae operatio est etiam operatio virtutis divinae)”, De Potentia Dei, I, q. 1, a. 7, ad. 3; e esclarece: “Se consideramos os sujeitos agentes, todo agente particular é imediato em relação a seu efeito [natural], mas se consideramos a força com que se leva a cabo a ação [natural], então a força da causa mais elevada é mais imediata em relação ao efeito [produzido pela natureza]”, De Potentia Dei, I, q.1, a. 7, resp. Analogamente, podemos nós dizer, repetindo o Magistério, que, para lograr o fim último projetado por Deus para todos os homens, não se deve esquecer que a natureza, sem a Graça, é insuficiente, e que o Estado — o qual, de acordo com o Magistério da Igreja, existiria ainda que não tivesse havido o pecado original —, se se afasta da lei de Deus da qual a Igreja é a depositária, será incapaz de alcançar até mesmo o bem intermediário a que se destina: a justiça social e a paz entre os homens.
► Ottaviani, ao defender a tese da subordinação do Estado à Igreja, sublinha corretamente que as relações jurídicas entre o Estado e a Igreja devem comparar-se às relações entre o corpo (Estado, plano material) e a alma (Igreja, plano espiritual superior), mas comete o erro de afirmar que tal subordinação é acidental ou indireta, dado que o Estado seria perfeitamente sui iuris. Aqui, como diz muito bem Calderón, Ottaviani se esquece de que uma subordinação acidental é, na prática, uma não-subordinação essencial. Um exemplo? O Papa está, acidentalmente, subordinado ao seu dentista. Mas certamente não o está em relação ao fim último de todos os homens e sociedades: Deus. E aqui vale fazer a seguinte ressalva: é óbvio que Calderón não considera o Cardeal Ottaviani um liberal, mas cita-o para mostrar como, ainda entre bons defensores da Tradição, pode haver erro no tocante ao tema da política, sobretudo se se parte de critérios jurídicos como se estes fossem, de todo, descontectados dos critérios teológicos e dos ensinamentos do Magistério da Igreja.

Num próximo texto, traremos o que nos diz Santo Tomás — sempre e necessariamente fazendo eco ao Magistério — sobre esta subordinação do temporal ao espiritual, assim como a respeito da intervenção do poder espiritual no temporal, sobretudo em assuntos em que a autoridade espiritual pode e deve intrometer-se nas coisas seculares, para horror do nosso católico liberal, que se baseia no "dogma" da consciência individual autônoma.
** Com relação ao Magistério infalível, eis o que diz, lindamente, a Constituição Dogmática Pastor Aeternus, do Concílio Vaticano I (os grifos são meus):


"Quando o Romano Pontífice fala ex cathedra, isto é, quando, cumprindo o seu cargo de pastor e doutor de todos os cristãos, define por sua suprema autoridade apostólica que uma doutrina sobre fé e costumes deve ser sustentada pela Igreja Universal, pela assistência divina que lhe foi prometida na pessoa do bem-aventurado Pedro goza daquela infalibilidade de que o Redentor Divino quis que estivesse provista a Igreja na definição da doutrina sobre a fé e os costumes".
Este é, em suma, o critério da infalibilidade papal, que se subdivide em quatro pontos:

1º. Quem fala é Pedro, vigário de Cristo;
2º. Pedro fala a toda a Igreja, ou seja: a todo o universo de fiéis do Corpo Místico;
3º. Pedro fala com intenção de obrigar, ou seja: deixando claro que as opiniões em contrário devem ser derrogadas, por errôneas ou contrárias à Fé;
4º. Pedro fala sobre fé e costumes.

Se apenas um desses pontos não se cumpre, não há infalibilidade.