Sidney Silveira
Em se tratando de Santo Tomás de Aquino, não há como falar em potência sem fazer referência ao fato de que a sua obra filosófica nos legou a chamada metafísica da participação em graus intensivos no Ser, como afirma o filósofo Jorge Barrera no começo desta palestra de apresentação de um livro da Sétimo Selo, numa alusão indireta ao teólogo italiano Cornelio Fabro. Tendo isto em vista, abriremos um parêntese nesta série para tratar do conceito de participação que o Aquinate aproveita de Platão, livrando-o não obstante da aporia da separação absoluta entre os mundos sensível e inteligível, entre a Idéia pura e a sua realização/imitação nas coisas compostas de matéria e forma, a metexis. Para tanto, o gênio medieval realizou uma síntese única na história da filosofia, entre o conceito de platônico de participação e a metafísica aristotélica do ato e da potência.
Recorramos a alguns axiomas, para começar:
Ø Ente é o que tem ser (habet esse), mas não é o Próprio Ser, o Ser absoluto.
Ø Todo ente possui, pois, um limite metafísico (seja formal, material, quanto ao ser, etc.).
Ø Portanto, ente é o que tem o ser participado (recebido) por outro.
Ø Por ser limitado, nenhum ente possui, em si, todas as possíveis perfeições da ordem do ser.
Ø Toda perfeição implica um modo de ser.
Ø Participar uma perfeição na ordem do ser é, em sentido próprio, causar.
Ø Em toda participação, o participante está para o participado assim como o ato está para a potência. Por ex.: esquentar um líquido pressupõe algo quente em ato (um bule, etc.), que participa o calor a algo que está em potência para recebê-lo (a água, etc.). Neste caso, a água passa a adquirir uma perfeição participada, o calor.
Ø Toda perfeição encontra-se no participante de modo mais pleno do que no participado; assim, por exemplo, o calor está de modo mais eminente no Sol do que nos planetas por ele aquecidos.
Ø Toda participação é um trânsito da potência ao ato.
Ø Todo ente participado depende de um participante, pois está para ele assim como o efeito está para a sua causa eficiente.
Ø Há certa proporcionalidade (semelhança formal) entre o participante e o participado. No exemplo acima citado, um ente quente em ato participa o calor a outro, e obviamente não o frio (o que seria desproporcional); esse calor passa a ser um modo de semelhança entre os dois.
Ø Todo ente por participação depende de algo que é por si, no que tange à perfeição participada.
A prioridade radical do ato em relação à potência — um princípio aristotélico — está pressuposta em todas estas máximas, e não expressa outra coisa senão a prioridade do mais perfeito com relação ao menos perfeito, na ordem do ser. Para Aristóteles, lembremos, o ato identificava-se com a perfeição formal ou operativa, enquanto a potência dizia respeito ao aspecto material (à matéria passível de assumir novas perfeições formais entitativas e de operar a partir delas), sendo ato e potêntia dois coprincípios inerentes a todas as coisas. Santo Tomás vai muito além: identifica o ato não com a forma, mas com o ser, e com este ajuste aparentemente simples resolve uma série incomensurável de aporias.
A emergência metafísica do ser (esse) sobre todas as formas e sobre todos os atos significa o seguinte: o ser é o ato por excelência, a atualidade de qualquer forma ou realidade, de sorte que qualquer perfeição formal está, com relação ao esse, em potência. E o ser dos entes é, literalmente falando, participado pelo Próprio Ser Subsistente, que é Deus. Diz o Aquinate:
“Nada possui atualidade senão enquanto é; logo, o próprio ser é a atualidade de todas as coisas e de todas as formas” (Suma Teológica, I, a. IV, a.1, ad 3).
Essa emergência absoluta do ser Santo Tomás buscou-a no neoplatônico Pseudo Dionísio Aeropagita, e é sobre ela que se articula a dialética da participação, de acordo com Cornelio Fabro — o tomista que, no século XX, resgatou brilhantemente o conceito de “ato de ser” (actus essendi). Em resumo, esta noção de ser é intensiva, na medida em que, quanto melhor for a participação de um ente na ordem do ser, mais ele será perfeito, mais terá potências ativas para atuar. Há, portanto, graus de ser que vão desde Deus (ato puríssimo e, portanto, omnipotente) até a mais ínfima parcela da matéria comum. O ser, neste sentido, subordina a si todas as formas entitativas, que em relação a ele são meramente potenciais. Como se disse no texto anterior, potência é um possível no Ser (aqui com maiúscula, porque a referência é o Próprio Ser, ao qual, normalmente, chamamos Deus).
Assim, em todo ente podemos dizer que:
a) a matéria participa (enquanto potência) da forma;
b) a forma participa (enquanto potência) do ato de ser.
c) e o ato de ser, por sua vez, é participado pelo Próprio Ser, sendo este o imparticipado, o absolutamente separado da matéria e de todas as formas.
Em todos os entes, pois, o ato de ser (participação no Próprio Ser) é o mais perfeito, o mais íntimo, o ato radical, o substrato metafísico fundamental absolutamente intocável pela nossa mão. Nós só podemos alterar a matéria e a forma dos entes, mas jamais lhes maculamos o ser. Só Deus, o Próprio Ser, participa o ato de ser dos entes e só Ele pode aniquilá-lo, tocá-lo, alterá-lo. Nenhum ente tem potência para tanto, pois o seu limite de atuação é a forma (principiis operationis). Assim, posso dizer que meus pais me participaram a forma humana, mas eles não me deram o ser, pois este quem dá é somente Deus. O ser era o suposto daquela operação formal específica, algo anterior (e superior, transcendente) aos meus pais. Da mesma forma eles não me podem retirar o ser; podem até matar-me, ou seja, destruir a minha forma entitativa humana, mas o ser que a subjaz permanecerá, no cadáver. Assim, podemos pulverizar um ente e transformá-lo em partículas infinitesimais de matéria, mas não o podemos metafisicamente aniquilar (ou seja: destruir-lhe o ser em sentido absoluto). O ser é, pois, indestrutível, pois participa da absoluta indestrutibilidade de Deus, o Próprio Ser.
Todas as coisas que não são o Próprio Ser — ou seja, Deus mesmo, que é o Ser por essência, enquanto elas o são por participação — têm perfeições formais específicas, porém limitadas. São, portanto, entes. Têm o ser mas não são o Próprio Ser.
De tudo isto pode-se extrair um corolário: dado que existem os entes (por participação), é necessário haver o Ser (por essência), sem o qual os entes seriam não menos que absurdos, sob qualquer aspecto que os contemplássemos.
Nesta ordem do ser, o homem é a interseção entre o finito (pois participa das coisas corpóreas) e o infinito (pois participa das coisas incorpóreas, dada as suas potências superiores: a inteligência que conhece a verdade e a vontade que quer o bem). Ora, isto é de uma beleza sem par, sublime! Daí Santo Tomás dizer lindamente que, quando entendemos algo, acontece o seguinte milagre*: o ínfimo do Supremo (que é Deus) toca o supremo das coisas ínfimas (que somos nós).
* Uso aqui o termo "milagre" com analogia de proporcionalidade metafórica.