Sidney Silveira
Chegou-me ontem o novo número da revista Le Sel de La Terre, dos dominicanos contemplativos de Avrillé, na França. Simplesmente sensacional! Se tivéssemos entre nós publicações periódicas com esta qualidade, certamente formaríamos uma elite de católicos não contaminados pelos liberalismos político, econômico e, o pior de todos, religioso — ou seja, o que engendrou o modernismo condenado na Pascendi e, aos poucos, foi tomando conta da Igreja até ser “consagrado” nos documentos Concílio Vaticano II. Digo mais: se tivéssemos entre nós publicações periódicas como esta, formaríamos católicos preparados para lutar, cada qual em seu âmbito restrito, pela civilização cristã, que ao fim e ao cabo não é outra coisa senão a conformação das sociedades à lei sublime do Evangelho. Formaríamos uma elite filosófica e teologicamente preparada para lutar pela recatolicização da Igreja, hoje tão secularizada, mundanizada, naturalizada, sexualizada, infantilizada. Tão amiga do mundo, em todos os níveis hierárquicos.
Li ontem mesmo os dois primeiros artigos deste número de Le Sel de la Terre. Num deles, assinado por Philippe Girard, é mostrada com toda a clareza (e farta documentação histórica) a trajetória da política francesa desde 1879 — quando Jules Grévy, primeiro presidente franco-maçon, assume o poder — até 1905, ano em que é aprovada a lei da separação entre a Igreja e o Estado, prontamente condenada por São Pio X. Neste período, governado por uma sucessão de maçons de diferentes lojas, foram sendo aprovadas leis que:
1- retiraram os representantes da Igreja do Conselho de Ensino Superior do país (1879)[1];
2- deram ao Estado o monopólio dos diplomas universitários (1880);
3- desbarataram a Compania de Jesus, sob o argumento de que a congregação, tão presente no ensino, precisaria passar por regulamentação (1880);
4- organizaram o ensino secundário para as mulheres (1880), com vistas a criar condições favoráveis para a retirada das mães de seus lares e, por conseguinte, para a eclosão do movimento feminista, anticatólico por excelência;
5- tornaram o ensino primário (que se laicizava) obrigatório dos 6 aos 13 anos (1881);
6- suprimiram a lei de imobilidade dos magistrados (1883), com o intuito de que o Estado dominado por presidentes e ministros maçons pudesse mudar os magistrados de um lugar a outro do país, ao seu bel-prazer, de acordo com as conveniências da nova política laicizante;
7- retiraram os religiosos do ensino primário (1886), para não “contaminar” as crianças com o Catecismo;
8- instituíram sanções penais para os religiosos que criassem estabelecimentos de ensino privados sem autorização do Estado (1901). Neste tópico, para se ter uma vaga idéia do sistemático ataque à Igreja, no ano de 1904, em apenas uma semana (!), 2.200 pequenos estabelecimentos de ensino católico privados foram fechados;
9- enfim, separaram na forma da lei a Igreja do Estado (1905).
Ora, o que hoje sucede intra Ecclesiam (ou seja, desde os seminários até o Magistério dos Papas), naquele período aconteceu extra Ecclesiam (ou seja, no plano político): nos dois casos, a tsunami da secularização liberal veio precedida e, depois, acompanhada de um metódico desmantelamento legislativo, ou seja, da aprovação de um conjunto de leis cujo propósito era pôr fim à conformação católica da sociedade — primeiro, leis políticas, com o objetivo de dessacralizar o mundo; depois, leis eclesiásticas, que foram dessacralizando o próprio Corpo Místico e, na teoria e na prática, transformando a Igreja, como diz o Pe. Calderón no livro Prometeo, na Religião do Homem, doutrinal, pastoral e liturgicamente. O resultado imediato desta última revolução, a católico-liberal, foi o seguinte: falta de vocações, multiplicação das seitas pseudocristãs em progressão geométrica, redução drástica das conversões, imoralidade crescente, liturgia protestantizada, etc. Estes são os frutos da infernal metodologia da desordem.
Mas voltemos à França de antanho, naquele momento crucial da história recente. Nas palavras de Jules Ferry, franco-maçon adepto do positivismo — e que foi o ministro da Instrução Pública na França naquele período de grande ataque à Igreja —, “o propósito [do seu grupo] era organizar uma humanidade sem Deus”. E hoje podemos dizer que ele e os seus asseclas maçons conseguiram, no primeiro momento. Mas, para completar o serviço era ainda necessário vencer, num segundo momento, as resistências da Igreja, infiltrando-se nela para maquiavelicamente corroê-la por dentro. E assim foi feito.
Em resumo, ninguém ataca frontalmente uma sólida fortaleza; é preciso, em primeiro lugar, ir aos pontos mais fracos e minar o adversário aos poucos. Primeiro foi necessário transformar o Estado em um monstro opressor dos indivíduos; depois, para “melhorá-lo”, propugnar a sua separação da Igreja e de suas leis; por fim, infiltrar esta última a ponto de fazê-la defender ela própria a separação formal entre os planos material e espiritual.
Assim age o demônio: com persistência e método na disseminação do mal. Graças à Deus, a sua derrota final é certa, assim como a de todos os seus servos inúteis.
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1 - É claro que, para um liberal católico dos dias de hoje, a simples existência de um Conselho Superior de Ensino Público é um verdadeiro non sense, pois ele identifica univocamente o público com as estruturas do Estado, e vê neste quase uma desnecessidade — justamente por ter perdido a noção de que o bem comum público é transpolítico, ou seja: há uma ordenação do bem comum político ao fim último do homem: Deus. Reiteremos: esse católico modernista perdeu a noção de que, como diz Jorge Barrera no livro A Política em Aristóteles e Santo Tomás, o homem busca politicamente fins transpolíticos. Era com isto em vista, justamente, que Leão XIII dizia que, dentre os bens a ser protegidos pelo Estado, em primeiro lugar estão os da alma.