terça-feira, 3 de maio de 2011

Sobre demônios e endemoniados (II)

Sidney Silveira


A existência dos demônios é, antes de tudo, uma verdade de fé. Ou seja, ela é atestada pela Sagrada Escritura, razão pela qual o teólogo católico — em suas especulações acerca do ser e das operações dessas criaturas espirituais — deve sempre partir da certeza absoluta de que os demônios (assim como os Anjos) existem, se não quiser perder a fé. As passagens tanto no Antigo Testamento como no Evangelho são várias, com a diferença marcante de que, no Antigo Testamento, a ação dos demônios é sempre exterior, com tentações, infestações locais e pessoais, enquanto no Evangelho ela chega ao interior, à possessão propriamente dita. Como afirma o exorcista Corrado Balducci, no livro que tomamos como linha-mestra para estes textos, não existe um só caso de possessão no Antigo Testamento. Isto quer dizer o seguinte: na Lei Antiga há demônios, sim, mas não endemoniados; noutro texto veremos as razões teológicas que explicam isto.


Os textos evangélicos por sua vez nos remetem a sete casos concretos de possessão diabólica:


1- o endemoniado mudo (Mt. IX, 32-33);


2- o endemoniado cego e mudo (Mt. XII, 22-32);


3- Maria Madalena, que estava possuída por sete demônios (Mc. XVI, 9; Lc. VIII, 2);


4- o endemoniado de Carfanaum (Mc. I, 21-28; Lc. IV, 31-37)


5- os endemoniados de Gerasa (Mt. VIII, 28-34; Mc. V, 1-20; Lc. VIII, 26-39);


6- a filha da Cananéia (Mt. XV, 21-28; Mc. VII, 24-30);


7- o rapaz lunático (Mt. XVII, 14-20; Mc. IX, 13-28; Lc. IX, 37-43).


Além desses casos de possessão, o Evangelho descreve os outros três tipos de ação diabólica apontados anteriormente, a começar pela tentação de Cristoarquétipo da atividade luciferina e também modelo da vitória sobre Satanás que Deus quer que todos nós tenhamos. A propósito da tentação do Senhor, diz Santo Tomás na Suma Teológica (III, . q. 41, art. 1, resp):


“Cristo quis ser tentado. Primeiro, para proporcionar-nos auxílio contra as tentações. Por isso diz Gregório em uma homilia: “Não era indigno de nosso Redentor querer ser tentado — ele que veio ao mundo para ser morto —, para que assim vencesse as nossas tentações com as suas, da mesma forma como aniquilou a nossa morte com a própria [imolação]”. Segundo, para precaver-nos, a fim de que ninguém, por santo que seja, acredite estar seguro e imune à tentação. Também por isso ele quis ser tentado depois do batismo, porque, como diz Santo Hilário, “as tentações do diabo voltam-se especialissimamente contra os santos, porque não há vitória que mais apeteça [ao demônio] que a lograda contra os santos. Daí também que no Livro do Eclesiástico (II, 1) se diga: “Filho, se vens servir ao Senhor, mantém-te firme na justiça e no temor, e prepara tua alma para a tentação”. Terceiro, pelo exemplo, isto é, para ensinar-nos o modo de vencer as tentações do diabo. (...). Quarto, para infundir em nós a confiança na misericórdia de Deus. Por isso se diz em Heb (IV, 15): “Não temos um sumo sacerdote incapaz de compadecer-se de nossas fraquezas, pois como nós Ele mesmo foi tentado em tudo, menos no pecado”.


A tentação de Cristo é um modelo para nós no sentido de que nos ensina como espiritualmente agir nestes momentos, mas também diz muito do modus operandi satânico. Antes de tudo, o demônio precisa vislumbrar o sinal de fraqueza a partir do qual iniciará a sua ação. No caso de Nosso Senhor, embora Lúcifer soubesse conjecturalmente que se tratava do Cristo (cf. Lc. IV, 41, onde se lê que os demônios sabiam que ele era o Messias), ele não estava na posse formal perfeita desta verdade, pois, desconhecendo os desígnios da Divina Providência e vendo em Cristo algumas humanas debilidades, não poderia ter certeza absoluta de que ele era mesmo o Filho de Deus. Daí Santo Tomás afirmar que, por este motivo, quis Satanás tentá-lo (Suma Teológica, III, q. 41., art. 1, ad. 1). No parecer do Aquinate, é o que dão a entender as seguintes palavras da Sagrada Escritura: “Depois que teve fome, se aproximou dele o tentador” (Mt. IV, 2-3). Ora, a primeira tentação foi justamente direcionada a um aspecto materialmente identificável pelo diabo, a fome que sentiu Cristo após prolongado jejum: “Se tu és o Filho de Deus, manda que estas pedras se tornem pães” (Mt. IV, 3).


A própria formulação da frase diabólica, expressa na tentação de Cristo, aponta para a incerteza de Lúcifer acerca da condição do Nosso Senhor: “Se tu és” (...).


Retenhamos bem isto, pois nos será útil nos textos que se seguirão: o demônio sempre começa a sua ação tendo em vista a debilidade humana pela qual começará o seu ataque, pois não joga para perder. Embora seja o maior derrotado de todos...


(continua)