Rembrandt: São Pedro na prisão
Sidney Silveira
“O sublime desequilibra” (Longino)
Ele desce os degraus com o coração em descompasso, pois o medo é a imaginação quando se desgoverna, um crédito dado a hipóteses que mudam a sintaxe das coisas. O homem chega a uma sala e observa, sobre os móveis antigos de madeira nobre, esculturas barrocas de cores pálidas. Parecem mirá-lo com ar enigmático, além de exibir músculos mais pletóricos do que sugere a representação da santidade, na arte da estatuária, não sendo os santos, de acordo com a opinião da maioria, atletas olímpicos a ostentar os dotes físicos, mas sim as virtudes do espírito, forjadas na renúncia e na dor.
O homem não reconheceu aquelas imagens, em razão da pouquíssima claridade, e agora caminha por um dédalo de paredes com pequenas entrâncias por onde penetraria a luz, se a houvesse, paredes de material não identificado por ele, semelhante a uma rocha da qual parece escorrer algum líquido não potável, por fissuras. No final da uma segunda escadaria ele enfim descobre a entrada: uma porta rústica com símbolos gravados, como a suástica invertida e o delta maçônico sob uma espécie de romã, e, acima deles, dois gonzos de bronze. Como estivesse encostada, ele se arriscou a entrar e deparou com outra porta, esta de cristal com cortes oblíquos no centro e nas laterais, e através dela percebeu aproximar-se uma estranha figura humana — distorcida, é verdade, pelo recurvado dos desenhos no cristal —, impressão em parte dissipada quando um sujeito de rosto amistoso lhe deu passagem com a atitude hierática do lacaio orgulhoso [O senhor Malacoda espera no gabinete. É no final do corredor, à esquerda] [Obrigado]. Enquanto descia, por instantes ele perdeu a referência do tempo, mas ainda conseguiu sorrir com simpática covardia para o serviçal que, a alguma distância, acenava com uma mão e lhe apontava o caminho com a outra.
O corredor continuava noutro declive, desta vez sem degraus, mas por uma rampa de calçamento irregular. A terceira porta com a qual ele se confrontou, desde que começara a descer, era bonita demais para ser apenas útil, e parecia indicar outra finalidade além de dar passagem à sua angústia. A beleza sempre traz consigo uma urgência, render-se ou lutar, e o inquietante da beleza desse lugar era que parecia emancipar-se das coisas, como se houvesse um desacordo entre matéria e forma, algo que o homem não saberia bem definir. As cores dos objetos eram frias, o que o incomodou, além do fato de ele também não identificar as imagens estampadas nesta outra entrada, não poder chamá-las por um nome qualquer. Dar nome às coisas é antecipar-lhes um destino, e o dele parecia correr sérios riscos, naqueles meandros [Seja bem-vindo] [Obrigado, moça. O senhor Malacoda está?] [Um momento, por favor. Vou chamá-lo ao interfone]. Nos minutos de espera, o deleite visual reduziu-lhe a vigilância do medo, graças àquela mulher, atraente como as demais coisas dali, porém uma atratividade feita de avessos, sendo pessoa em cujo olhar havia algo de viril desacato, impavidez com mais de fêmeo que de feminino, mais força que delicadeza. Seja como for, o fato é que o sorriso da jovem rompeu a seqüência de acontecimentos ambivalentes até então desencadeados, pois no agora da vontade não existe caos, e ali havia o súbito embrião de dois quereres.
[Salve, amigo! Eu esperava por você] [Olá, senhor Malacoda. Enquanto conversava com a sua assistente, eu estava observando aqueles belos quadros. Mas não conheço nenhum. De quem são?] [Na verdade são de autor desconhecido. Mas isso é o de menos, meu caro. Que diferença faz o nome do abismo para quem nele se precipita?].
Sem mais conversa, o senhor Malacoda levou o seu convidado a uma sala próxima e lhe apresentou o tabuleiro de xadrez, peça de magnífico trabalho de marchetaria com jade nas laterais, e, no centro, as casas escuras e claras eram feitas de ônix e marfim incrustados. As peças do jogo eram de uma espécie lustrosa de pedra-sabão e tinham as formas encompridadas semelhantes a figuras de El Greco, pintor que ele muito apreciava. Eram harmoniosamente adequadas ao tamanho do tabuleiro, deixando no homem a certeza do notável senso de proporções do artista que fizera o trabalho, da perfeita ordenação de tudo a um fim determinado: mesclar as idéias de bem e de mal nas sessenta e quatro casas do jogo. O senhor Malacoda ligou o abajur de uma luz amarelada que, incidindo sobre o tabuleiro, lhe deu aspecto ainda mais vistoso. Acendeu um charuto, acertou o relógio do jogo e cumprimentou o adversário enquanto passava a língua pelo lábio inferior com um vagar lânguido, atitude que se somou às outras coisas enigmáticas desse lugar cuja arquitetura, talvez por estar em terreno inclinado, parecia fazer tudo convergir para baixo, objetos e pessoas.
O jogo transcorria tenso, em equilibrado antagonismo. O Sr. Malacoda adotara uma aparentemente poderosa variante da Defesa Karo-Kann, talvez uma novidade teórica, pois não constava de nenhum dos mais importantes informativos do xadrez top ten das últimas décadas que ele compulsara, e de novo a sensação de estar entre coisas herméticas fez-lhe saltar o coração. A bela assistente do Sr. Malacoda assistia à partida com um sorriso agora maquiavélico, distinto daquele com que o recebera. Estava com o semblante sardônico de quem parece ordinariamente capaz de transformar vileza em fetiche. Quanto a ele, não lhe restava outra coisa senão fazer o próximo lance e fugir ao olhar triunfante de seu anfitrião e à desconcentrante e voluptuosa presença da mulher. Bem se poderia dizer que o tempo congelara, tão prenhe de significados era aquele momento em que céu ou inferno estavam perto de definir-se. Para o convidado, a partida parecia perdida naquela posição, razão pela qual ele tentaria, num último e supremo esforço mental, fazer a jogada certa antes que se esvaíssem os minutos de que ainda dispunha.
O homem respirou fundo, fechou os olhos por instantes e silenciou a alma. Não mais admiraria as paredes repletas de quadros. Não mais olharia para a moça de tez agressivamente sensual. Não mais se encantaria pela beleza das peças do tabuleiro. O perfume do charuto do Sr. Malacoda não o distrairia, nem o garboso anel heráldico que lhe enfeitava um dos dedos. Muito menos lhe tiraria a atenção o Concerto nº 2 de Rachmaninoff, para piano e orquestra, que ele tanto apreciava e o seu anfitrião, adivinhando-lhe o gosto musical, pusera para tocar no cd player. Por um ato positivo da vontade ele impôs aos sentidos a noite. O relógio era-lhe desfavorável e a estupenda variante do Sr. Malacoda era ciência nova, na verdade desconhecida desde os primórdios do tempo, e por isto só lhe restava fazer a jogada por um caminho de fé. Jogada nascida de um coração morto para o mundo.
Hoje, cinco anos após a partida contra o Sr. Malacoda, tendo à frente um tabuleiro de beleza gasta e sóbria, ele refaz todos os doze lances a partir daquela jogada decisiva. E traz viva na lembrança a brusca mudança facial tanto do oponente como de sua secretária, ao final do jogo. Tinham passado do sutil escárnio ao desespero, e sequer se despediram quando o homem deixou-os ali sem olhar para trás, subindo por onde descera, até chegar à porta principal daquela casa. Ao batê-la atrás de si com satisfação, ouviu o barulho de algo chocar-se com o chão. Abaixou-se, pegou o escapulário que lhe caíra do bolso e saiu em paz, na claridade do dia...
O homem não reconheceu aquelas imagens, em razão da pouquíssima claridade, e agora caminha por um dédalo de paredes com pequenas entrâncias por onde penetraria a luz, se a houvesse, paredes de material não identificado por ele, semelhante a uma rocha da qual parece escorrer algum líquido não potável, por fissuras. No final da uma segunda escadaria ele enfim descobre a entrada: uma porta rústica com símbolos gravados, como a suástica invertida e o delta maçônico sob uma espécie de romã, e, acima deles, dois gonzos de bronze. Como estivesse encostada, ele se arriscou a entrar e deparou com outra porta, esta de cristal com cortes oblíquos no centro e nas laterais, e através dela percebeu aproximar-se uma estranha figura humana — distorcida, é verdade, pelo recurvado dos desenhos no cristal —, impressão em parte dissipada quando um sujeito de rosto amistoso lhe deu passagem com a atitude hierática do lacaio orgulhoso [O senhor Malacoda espera no gabinete. É no final do corredor, à esquerda] [Obrigado]. Enquanto descia, por instantes ele perdeu a referência do tempo, mas ainda conseguiu sorrir com simpática covardia para o serviçal que, a alguma distância, acenava com uma mão e lhe apontava o caminho com a outra.
O corredor continuava noutro declive, desta vez sem degraus, mas por uma rampa de calçamento irregular. A terceira porta com a qual ele se confrontou, desde que começara a descer, era bonita demais para ser apenas útil, e parecia indicar outra finalidade além de dar passagem à sua angústia. A beleza sempre traz consigo uma urgência, render-se ou lutar, e o inquietante da beleza desse lugar era que parecia emancipar-se das coisas, como se houvesse um desacordo entre matéria e forma, algo que o homem não saberia bem definir. As cores dos objetos eram frias, o que o incomodou, além do fato de ele também não identificar as imagens estampadas nesta outra entrada, não poder chamá-las por um nome qualquer. Dar nome às coisas é antecipar-lhes um destino, e o dele parecia correr sérios riscos, naqueles meandros [Seja bem-vindo] [Obrigado, moça. O senhor Malacoda está?] [Um momento, por favor. Vou chamá-lo ao interfone]. Nos minutos de espera, o deleite visual reduziu-lhe a vigilância do medo, graças àquela mulher, atraente como as demais coisas dali, porém uma atratividade feita de avessos, sendo pessoa em cujo olhar havia algo de viril desacato, impavidez com mais de fêmeo que de feminino, mais força que delicadeza. Seja como for, o fato é que o sorriso da jovem rompeu a seqüência de acontecimentos ambivalentes até então desencadeados, pois no agora da vontade não existe caos, e ali havia o súbito embrião de dois quereres.
[Salve, amigo! Eu esperava por você] [Olá, senhor Malacoda. Enquanto conversava com a sua assistente, eu estava observando aqueles belos quadros. Mas não conheço nenhum. De quem são?] [Na verdade são de autor desconhecido. Mas isso é o de menos, meu caro. Que diferença faz o nome do abismo para quem nele se precipita?].
Sem mais conversa, o senhor Malacoda levou o seu convidado a uma sala próxima e lhe apresentou o tabuleiro de xadrez, peça de magnífico trabalho de marchetaria com jade nas laterais, e, no centro, as casas escuras e claras eram feitas de ônix e marfim incrustados. As peças do jogo eram de uma espécie lustrosa de pedra-sabão e tinham as formas encompridadas semelhantes a figuras de El Greco, pintor que ele muito apreciava. Eram harmoniosamente adequadas ao tamanho do tabuleiro, deixando no homem a certeza do notável senso de proporções do artista que fizera o trabalho, da perfeita ordenação de tudo a um fim determinado: mesclar as idéias de bem e de mal nas sessenta e quatro casas do jogo. O senhor Malacoda ligou o abajur de uma luz amarelada que, incidindo sobre o tabuleiro, lhe deu aspecto ainda mais vistoso. Acendeu um charuto, acertou o relógio do jogo e cumprimentou o adversário enquanto passava a língua pelo lábio inferior com um vagar lânguido, atitude que se somou às outras coisas enigmáticas desse lugar cuja arquitetura, talvez por estar em terreno inclinado, parecia fazer tudo convergir para baixo, objetos e pessoas.
O jogo transcorria tenso, em equilibrado antagonismo. O Sr. Malacoda adotara uma aparentemente poderosa variante da Defesa Karo-Kann, talvez uma novidade teórica, pois não constava de nenhum dos mais importantes informativos do xadrez top ten das últimas décadas que ele compulsara, e de novo a sensação de estar entre coisas herméticas fez-lhe saltar o coração. A bela assistente do Sr. Malacoda assistia à partida com um sorriso agora maquiavélico, distinto daquele com que o recebera. Estava com o semblante sardônico de quem parece ordinariamente capaz de transformar vileza em fetiche. Quanto a ele, não lhe restava outra coisa senão fazer o próximo lance e fugir ao olhar triunfante de seu anfitrião e à desconcentrante e voluptuosa presença da mulher. Bem se poderia dizer que o tempo congelara, tão prenhe de significados era aquele momento em que céu ou inferno estavam perto de definir-se. Para o convidado, a partida parecia perdida naquela posição, razão pela qual ele tentaria, num último e supremo esforço mental, fazer a jogada certa antes que se esvaíssem os minutos de que ainda dispunha.
O homem respirou fundo, fechou os olhos por instantes e silenciou a alma. Não mais admiraria as paredes repletas de quadros. Não mais olharia para a moça de tez agressivamente sensual. Não mais se encantaria pela beleza das peças do tabuleiro. O perfume do charuto do Sr. Malacoda não o distrairia, nem o garboso anel heráldico que lhe enfeitava um dos dedos. Muito menos lhe tiraria a atenção o Concerto nº 2 de Rachmaninoff, para piano e orquestra, que ele tanto apreciava e o seu anfitrião, adivinhando-lhe o gosto musical, pusera para tocar no cd player. Por um ato positivo da vontade ele impôs aos sentidos a noite. O relógio era-lhe desfavorável e a estupenda variante do Sr. Malacoda era ciência nova, na verdade desconhecida desde os primórdios do tempo, e por isto só lhe restava fazer a jogada por um caminho de fé. Jogada nascida de um coração morto para o mundo.
Hoje, cinco anos após a partida contra o Sr. Malacoda, tendo à frente um tabuleiro de beleza gasta e sóbria, ele refaz todos os doze lances a partir daquela jogada decisiva. E traz viva na lembrança a brusca mudança facial tanto do oponente como de sua secretária, ao final do jogo. Tinham passado do sutil escárnio ao desespero, e sequer se despediram quando o homem deixou-os ali sem olhar para trás, subindo por onde descera, até chegar à porta principal daquela casa. Ao batê-la atrás de si com satisfação, ouviu o barulho de algo chocar-se com o chão. Abaixou-se, pegou o escapulário que lhe caíra do bolso e saiu em paz, na claridade do dia...