segunda-feira, 30 de maio de 2011

Trecho do livro "Jesus Cristo e os filósofos"

Sidney Silveira
Sem ter como escrever para o Contra Impugnantes por estes dias, transcrevo abaixo um trecho do livro Jesus Cristo e os Filósofos, do Pe. Eugenio Cantera (com o corte em um parágrafo em que, inadvertidamente, ele citava Lamennais). Vale muito a pena ler este pedaço... A propósito, o livro inteiro é encontrável neste link. Outra coisa: não tive como expurgar o texto de todos os erros de português da tradução, por falta de tempo; mas o que importa, neste caso, é o conteúdo.


(....)


Cristo é a verdade, a verdade lógica, a verdade ontológica e a moral. A verdade ontológica, porque esta é a realidade das coisas conforme as idéias arquétipas da divindade, e no verbo que é Cristo, essa realidade e conformidade são perfeitas, radicam no ser subsistente, ato puríssimo sem mescla de potencialidade alguma. É a verdade lógica que não é outra coisa que o conhecimento adequado e perfeito da realidade inteligível, e em Deus esta adequação é suprema; conhecendo a si mesmo, conhece todas as coisas, que são graus de imitabilidade de sua essência criadora. É verdade moral, porque sua palavra é a expressão sincera do seu pensamento; Jesus não pode enganar-nos porque é a santidade mesma, incapaz de mentir ou de fazer mal. Jesus é a fonte de toda a verdade e luz de toda a inteligência; é a verdade substancial de que participam todos os seres [1]. Não somente é Jesus a verdade existente ab aeterno; é também a verdade revelada no tempo, comunicada aos homens por meio das ciências, das letras e das artes. Revelou-se igualmente como luz em Adão e os Patriarcas, em Moisés e os Profetas; porém aquela luz era participada, efêmera, não bastava para dissipar as trevas espalhadas pelo mundo.


Novamente se revelou sem sombras e sem figuras; apresentou-se Ele mesmo, descobrindo-nos de uma vez os tesouros da verdade e as riquezas da graça com a efusão definitiva da luz, da vida e da inteligência divina.


«Aprouve à sabedoria e bondade de Deus, diz o Concílio Vaticano I [2], revelar-se a si mesmo e descobrir-nos os eternos decretos da sua vontade por meio sobrenatural conforme estas palavras do apóstolo: «Deus que em outro tempo falou a nossos pais pelos profetas em diferentes ocasiões e de muitas maneiras, falou-nos ultimamente, nestes dias, por meio de seu Filho Jesus Cristo » (Hebr. I, 1 e 2 ).


O homem separando-se de Deus pelo pecado, ficou submerso nas trevas, esqueceu o caminho do céu prometido aos servos fiéis. Cristo veio para salvar-nos, para ensinar ao homem a verdade obscurecida pelas sombras do erro, adulterada pelas superstições gentílicas. «Eu sou, diz Ele, o caminho que conduz ao Pai»[3]; «eu sou a luz e vim para que todo aquele que crê em mim não ande nas trevas, mas tenha a luz da vida»[4]. «Eu sou o princípio de todas as coisas falando convosco» [5]. «Eu sou a verdade mesma [6]; vim para dar testemunho da verdade»[7]. Jesus é o único mesmo, porque é o único que possui a verdade e a revela aos homens. «Vós me chamais Senhor Mestre, e dizeis bem, porque eu o sou»[8]; «um só é o vosso Mestre: o Cristo» [9].



4. Em Cristo se encerram todos os tesouros da ciência e sabedoria divina, e por conseguinte os tesouros da verdade [10]. É a verdade na ordem teológica, porque todas as verdades na teologia se referem a Cristo, como raios de um mesmo foco, encontram nele sua explicação e complemento.


Os Dogmas e Mistérios de nossa santa religião estão intimamente ligados entre si; Cristo é o laço de união que os compendia e resume. A Trindade é o primeiro Mistério, Dogma capital, fonte da vida divina. Pois bem; esse Mistério Jesus Cristo o revelou. Expressa-o em seu Evangelho e brilha com esplendor no fato da encarnação. O Pai de tal modo ama o mundo que entrega seu Filho unigênito; O Espírito Santo forma o corpo puríssimo do Salvador, e, efetuada a Redenção, aplica os méritos de Cristo às almas que nele crêem. E a encarnação supõe o pecado original que arrebata o homem do estado de santidade em que estava colocado e abre um vácuo que somente o sangue do Homem Deus poderia encher. De nada, porém, nos serviria essa redenção de Jesus se não fosse possível aproveitarmo-nos de seus méritos infinitos. Daí a justificação que purifica as manchas da alma e converte o pecador em amigo de Deus; os sacramentos, lances de amor, sete fontes de graça que regam e fecundam os espíritos, depositando neles germes de virtude e anelos puríssimos de perfeição; a glorificação do corpo e da alma, fim último da redenção. E como a encarnação tinha por objeto salvar a humanidade em todos os tempos e lugares, e Cristo não havia de permanecer sempre visivelmente na terra, funda a Igreja, sociedade visível que continua sua missão, a Igreja que brota do lado de Cristo, dispensadora de suas graças e órgão infalível da verdade. Cristo revela e explica os dois problemas mais profundos da ordem teológica; a criação, a redenção e a Igreja; é causa da criação, autor da redenção e fundador da Igreja.


Cristo é a verdade na ordem filosófica. Jesus não é um sábio que raciocina suas teorias e erige escolas públicas de discussão e doutrinas; é o Mestre por excelência que restaura as verdades filosóficas, incorporando-as de novo ao patrimônio da investigação racional. Já vimos como os filósofos amontoaram escombros sobre escombros, e os gênios mais esclarecidos não lograram desprender-se daquele emaranhado de erros que infestava tudo.


Deus e o homem, as relações mútuas que os enlaçam; a religião e a ordem, os deveres que se impõem às criaturas, a alma, a vida, o direito, a justiça, a autoridade, a liberdade, são conceitos que Jesus iluminou com os raios da sua sabedoria, depurando-os da vil escória do paganismo. Os que rechaçaram as influências de Cristo caíram nos abismos do erro; só os que acatam seus ensinos possuem uma concepção íntegra da verdade filosófica.


Cristo é a verdade na ordem histórica. De sua fronte brotam raios de luz que ao projetar-se sobre a inteligência humana engendram nela um mundo de idéias, vivificando as ciências, banhando-as com os resplendores de sua divindade, com as luzes radiantes de seu verbo. A inteligência de Jesus opera constantemente sobre a inteligência cristã, todos os sábios procuram inspiração nas suas luzes. A inteligência de Jesus, diz Gibier, é o que anima a eloqüência de São Paulo, a dialética de Orígenes, a erudição de Jerônimo, a ciência de Santo Agostinho, a unção de Santo Ambrósio. Ela move a pena de São Leão e São Gregório, faz dos lábios de São Basílio uma lira harmoniosa e lábios de ouro dos lábios de São João Crisóstomo [11]. Os pensamentos místicos de São Boaventura, as profundas concepções de Santo Tomás de Aquino, o gênio de Bacon, os deslumbramentos de Lúlio, brotaram ao calor da inteligência de Jesus, farol luminoso das ciências e dos sábios. Onde senão nesse sol divino incendiaram seu astro João da Cruz e Luiz de Leõn, Zorrilla, Galan e tantos vates da Espanha Cristã? Não foi essa chama ardente que iluminou a Teresa de Jesus para escrever suas Moradas e inspirou a Cano seus lugares teológicos e a Soarez suas profundas «Disputaciones Metafísicas»?



Quem senão Cristo inspirou A Cidade de Deus, a Suma Teológica, o Discurso sobre a História Universal, o Protestantismo comparado ao Catolicismo e outras obras imortais, monumentos do saber humano? Não foi o ideal cristão que formou em nossos dias as inteligências robustas de Balmes e Donoso, de Lacordaire e Ozanan, de Secchi e Pasteur, de Pidal e Menendez Pelayo?


5. E se do campo da ciência passamos ao das artes, Cristo se nos apresenta como o protótipo da beleza, da ordem e da poesia. A beleza, dizia Platão, é o esplendor da verdade, o esplendor da ordem, segundo outros filósofos, algo de imaterial que imprime na própria matéria um selo de espiritualidade encantadora. E sendo Jesus Cristo a verdade essencial, por necessidade tem que ser a beleza. A beleza intelectual de Cristo não tem limites, porque é a mesma verdade; sua beleza moral não reconhece fronteiras, Cristo é a mesma santidade.


E que diremos de sua beleza física, de sua pessoa, de sua fisionomia?


«O Verbo, diz Nicolas, poesia de Deus na eternidade, é o poeta da criação no tempo; o mundo é seu poema» [12]. Pois bem; todas essas belezas, reflete-as Jesus na sua humanidade sacratíssima, expressão viva e sensível de sua divindade.


Dir-se-ia que sua alma santíssima assoma-lhe aos olhos, aos lábios, ao rosto, ao corpo todo, banhando-o nas cores do céu. No estábulo de Belém como na cruz do Calvário, na oficina de Nazaré, no deserto, no Tabor, no templo, em sua vida toda. Jesus é o mais belo dos filhos dos homens [13].


A majestade de sua fronte, o candor de seus olhares, a doçura de suas palavras, a formosura de sua face, tudo revelava que Ele era o ideal da beleza, da poesia e do amor. Os artistas esforçaram-se por reproduzir figura tão excelsa, porém, fracassaram em suas tentativas. Impossível exprimir nas telas e nos mármores a vasta inteligência que revela a fronte do Senhor, representar seus olhares com aquela expressão que lhe dava a penetração de profeta, a autoridade de Mestre, a ternura de amigo; nos seus lábios a bondade infinita de sua alma, a generosidade de seu coração, pródigo de consolo, esperança e perdão; nos rasgos de sua fisionomia a firmeza de seu caráter, a plenitude de dons e virtudes que ornavam seu belíssimo espírito. Sempre o original ficou a uma altura imensamente superior à cópia; a beleza de Cristo arrebata e seduz, porém, não pode a língua humana descrevê-la ou explicá-la. Inspirou, porém, às artes as suas mais belas concepções, enriqueceu-a com quadros brilhantes de luz, com horizontes de harmonia, com poemas heróicos, com epopéias sublimes; idealizou a matéria infundindo-lhe um sopro de espiritualismo cristão. Cristo é o manancial da beleza como o é da verdade.


6. A inteligência de Jesus não só brilha sobre a fronte do sábio, iluminando as altas regiões da ciência; desce também às inteligências tenras e inexperientes, aos espíritos puros e humildes, comunicando-lhes a ciência das maiores verdades religiosas. Mediante essa comunidade de princípios, de idéias fundamentais, Cristo criou a unidade intelectual do mundo, cujos Dogmas, livremente aceitos por toda classe de inteligências, deram origem a uma sociedade espiritual e indivisível que funda no mesmo ideal os indivíduos, as raças e os povos. A unidade de doutrina é privilégio exclusivo da doutrina cristã; daí nasce sua força, sua eficácia e sua autoridade.


Admiramos as lutas espantosas que essa religião sustentou na história para conservar incólumes seus dogmas e os triunfos que alcançou de todos os seus inimigos. O segredo da vitória consiste em sua unidade doutrinal. Em discussão contínua com os sofistas, em luta permanente contra o erro, ensinando publicamente suas doutrinas para que todos as examinem e discutam, a Igreja atravessou dezenove séculos sem retroceder jamais, sem contradizer-se nunca, sem mudar uma vírgula dos seus dogmas, sem mutilar a verdade. Fato portentoso, explicável unicamente se se admite que a verdade da Igreja é a verdade de Cristo, e Cristo é a verdade imutável, indivisível e eterna.


Os pensadores mais ilustres sonharam com a idéia de associar as inteligências humanas mediante uma comunhão de princípios e crenças. Tentaram também esta unidade mental os legisladores, estadistas e guerreiros. Porém, quem logrou êxito em sua empresa? Quem conseguiu infundir tal entusiasmo por suas doutrinas de maneira que elas permanecessem inalteráveis contra a ação destruidora da paixão e do tempo? Ninguém.


Perguntai a Aristóteles pelos dogmas de Platão, e vereis como Ele os combate e refuta; exigi de Anaxágoras uma profissão dos princípios filosóficos de Tales, e o encontrareis como um rebelde da escola jônica; buscai em Pitágoras o eco de seus mestres, e vos oferecerá um sistema original, calcado na harmonia e no numero. O fenômeno se repete na história moderna. Descartes, Kant, Cousin, Moleschot, Spencer, Fouillé e outros mestres do racionalismo recrutaram multidão de prosélitos, de discípulos entusiastas de suas teorias e sistemas, porém, nenhum logrou impor-se às sociedades estabelecendo um credo comum para as inteligências. Se das escolas racionalistas passamos às heterodoxas veremos os mesmos esforços e os mesmos fracassos. Ario no século IV encontrou estabelecida esta unidade de crenças e quis rompê-la apoiado no tríplice poder da força, da ciência e da autoridade. A missão aparentemente era fácil; o Evangelho mesmo viria em auxílio do grande heresiarca.


Logo se convenceram seus partidários da impossibilidade da empresa.


A resistência foi enorme, invencível a dificuldade; a Igreja expulsou do seu seio o presbítero apóstata, demonstrando com isto, que é impossível a unidade espiritual baseada no erro, longe de Cristo. Lutero, no século XVI, repetiu o ensaio; pretendeu fundar uma Igreja nova com dogmas e leis comuns.


Agitou-se a Europa, moveu-se o mundo, porém, o resultado de tantos trabalhos é hoje conhecido; em três séculos de tal maneira a Reforma multiplicou e modificou seus símbolos e confissões, que ninguém se põe de acordo com os princípios de Lutero, pois que mais de quinhentas seitas diferentes nasceram no seio da Reforma.


Porque este fracasso de todos os que ensaiaram fundar uma república intelectual, unindo os entendimentos pela profissão dos mesmos dogmas, crenças e doutrinas? Porque não há outra verdade que o Cristo, e esta verdade está unicamente na Igreja; porque não pode haver unidade fundamental onde não há idéias fundamentais, dogmas imutáveis, livremente aceitos e comuns a toda sorte de inteligências; e esta universalidade, esta imutabilidade própria da verdade radica em Deus, que é o Cristo, Salvador do mundo e Redentor do gênero humano. Os sistemas dos sábios se desmoronaram porque eram construções sem fundamento, organismos sem vida, ilusões do homem, não criação de Deus. Jesus Cristo fundou essa unidade intelectual; suas doutrinas são hoje ensinadas, e acatadas com o mesmo respeito, com a mesma fidelidade que tiveram seus primeiros discípulos.


Prega-se em todos os países o seu Evangelho sem aumentar nem diminuir um til; seus dogmas nós os admitimos como saíram dos lábios de Cristo, sempre imutáveis, sempre os mesmos; milhões de fiéis repetem diariamente o símbolo dos apóstolos, o mesmo que recitavam os mártires diante do tirano, os ascetas no deserto, os fiéis nas catacumbas; cremos o que creram Inácio e Policarpo, Irineu e Justino, Basílio e Crisóstomo, Ambrósio e Agostinho; nossa fé é idêntica à de Pedro e à de todos os santos. E esta fé e esta doutrina é a que ensinou sempre a Igreja em suas escolas e concílios, e os Pontífices em suas bulas e encíclicas, a mesma que ensinam hoje e propagam os Bispos e sacerdotes, os doutores e fiéis, todos os cristãos sem exceção alguma. A mesma fé, idênticos dogmas, idênticos sacramentos... Eis aí a verdadeira unidade espiritual estabelecida por Jesus Cristo, sinal certo e indubitável de que só Ele é a verdade, e somente em sua Igreja e em seus ensinos podemos encontrá-la.


7. Assim se explica como em torno de Jesus se uniram as ciências e as artes para render-lhe vassalagem; como unicamente à sombra da cruz florescem as inteligências, e afastadas de Cristo caem nas mais densas trevas.


(...) A verdade de Cristo, que é a verdade católica, tem a seu favor a autoridade das mais poderosas inteligências da humanidade. Não só as ciências eclesiásticas lhe pertencem por completo; nas próprias ciências físicas conta Jesus como uma plêiade brilhantíssima de sábios eminentes que creram nele e afirmam sua verdade. Físicos tão ilustres como Volta e Ampère, Röntgen e Brandly; químicos tão distintos como Lavoisier e Berzellius, Liebig e Dumas; astrônomos tão célebres como Copérnico e Galileu, Kepler e Newton; matemáticos como Leibnitz e Cauchy; Geólogos como Lapparent; Naturalistas como Linneu, e tantos outros cujos nomes seria ocioso enumerar e que figuram escritos com caracteres de ouro na história do pensamento humano. Todos esses grandes homens, diz Canet, a glória e a luz do seu século, firmaram com sua vida e com seus imortais escritos a crença no símbolo dos apóstolos [14]. Acreditaram em Cristo e confessaram que foi Ele quem trouxe ao mundo a luz, a redenção e à vida.


8. Esta luz nova, limite das revelações divinas; esse espírito de verdade comunicado ao homem por Cristo, longe de eclipsar a luz da razão natural, a embeleza e aumenta de um modo extraordinário, visto que estende seus domínios a um mundo de verdades reveladas que jamais poderia descobrir por si mesma.


O erro capital do racionalismo, o vício essencial da filosofia moderna, diz Orti y Lara, consiste na identificação desses dois Verbos na absurda e ímpia pretensão de atribuir à razão humana a virtude suprema e absoluta de entender a verdade, virtude própria da inteligência divina do Verbo eterno de Deus [15]. Para os racionalistas, o espírito humano não é o sujeito que percebe a verdade, mas a própria verdade percebida; não é uma potência determinada pelo objeto inteligível, mas o fundamento da verdade, a medida das coisas.


Quando se afirma, como fazia Kant, que a verdade é pura emanação da mente, e as leis da natureza, formas internas do nosso entendimento; quando se atribui ao pensamento humano o poder de criar a realidade dos seres, fazendo o objeto inteligível produto exclusivo do «eu» pessoal, como opina Fichte; quando, avançando um passo mais, se quer fundir em um elemento comum essências contraditórias, identificando em um princípio absoluto naturezas distintas, como desejava Schelling, ou coroando essa série de negações com uma negação definitiva, se nos propõe a idéia hegeliana como síntese suprema da ciência, espécie de zona neutra, onde se confundem o ser e o não ser, a potência e o ato, o efeito e a causa; quando se admite «a priori» um princípio gerador das coisas, fonte de toda a verdade, que tudo explica e produz deste o átomo até Deus, chame-se esse princípio Inconsciente (Hartmann), Vontade (Schopenhauer), Atividade (Wundt), Idéia — Força (Fouillée), Esforço Vital (Bergson), ou como se quiser; quando se afirma tudo isso, parece que se estabelece diversidade de princípios, quando em rigor é idêntico o fundamento comum, a origem dessas aberrações monstruosas. No fundo dessas doutrinas palpita o mesmo pensamento. A filosofia, do «eu» erigindo-se em mestra do gênero humano, a razão individual emancipada de toda autoridade, o verbo interior do nosso espírito suplantando o Verbo divino, o orgulho do homem usurpando a Deus suas prerrogativas e excelências. Todos os que proclamam a emancipação do pensamento e negam a Jesus Cristo o direito de reinar sobre as inteligências, partem de uma premissa errônea. Crêem que a razão é causa da verdade, regra do dever, quando pelo contrário, a verdade preexiste nas coisas como uma irradiação da mente divina que as concebe e procria.


9. A razão não cria a verdade, descobre-a; a verdade não é uma concepção livre do entendimento nem produção espontânea do espírito; a razão investiga, busca o que é, não o que pode ser; inquire a realidade que é causa da verdade em nós. «O ser mesmo das coisas, diz o doutor Angélico, causa a verdade no entendimento» [16]. A verdade é reprodução, reflexo do exterior; os objetos que existem fora de nossa alma despertam a atividade natural da potência cognoscitiva e constituem a medida da verdade que encerram seus atos.


«Está impressa, Senhor, sobre nós, dizia Davi, a luz de teu rosto»[17].


Esta luz não pode operar sem o concurso do objeto que a determina e atua. Nosso entendimento é uma atividade potencial que necessita ser excitada pelo influxo dos fantasmas sensíveis; é como um espelho em que se refletem os objetos com perfeita fidelidade, sem acrescentar-lhes nem tirar coisa nenhuma. Essa atividade intelectual não é como a de Deus. Esta é essencial, que engendra a inteligibilidade dos seres; criadora que produz a verdade eterna, cuja luz, depois de iluminar com clarão infinito os seios misteriosos da Trindade beatíssima, reverbera palidamente nas criaturas; soberana, onde têm sua origem os possíveis, que sem sair de si mesma contém a plenitude do ser com todas as suas perfeições.


A verdade ontológica é a realidade das coisas, «id quod est», como diz Santo Agostinho [18]; e esta verdade essencial possuem as coisas por sua conformidade com o entendimento divino que as criou. A verdade lógica ou formal deriva da anterior; é como diz Santo Tomás, a adequação do entendimento com a coisa [19]; e ainda que esta verdade resida no entendimento, depende também do objeto, porque essa relação que medeia entre ambos não é arbitrária; as coisas são o que são, independentemente do sujeito pensante, e ainda dado que este desaparecesse, a verdade das coisas subsistiria, porque são essencialmente verdadeiras no entendimento divino, no qual têm seu princípio e sua razão, sua norma e sua medida, seu ser e sua existência. Assim como a visão sensível se verifica com submissão a leis invariáveis, independentes de nossa vontade, assim também a visão intelectual se produz obedecendo a leis fixas e constantes. O olho é livre para olhar ou não um objeto visível; porém, uma vez que o contemplou, se o encontra convenientemente iluminado e situado a devida distância, a visão se verifica necessariamente. O olhar não cria nem influi na realidade; percebe-a e a reproduz tal qual aparece no exterior. Do mesmo modo a razão se move num círculo vastíssimo, voa por regiões imensas; porém ela não fez esses mundos nem pode modificá-los à sua vontade; reflete unicamente a luz que os ilumina, o esplendor que irradia o Verbo de Deus sobre os objetos, os quais de um modo intencional, porém positivo e eficaz, determinem nossa mente ao conhecimento dos mesmos.


A verdade se nos impõe de uma maneira irresistível; é objetiva, não mera emanação de nossas faculdades.


Daí se infere quão irracionalmente procedem aqueles que defendem como um dogma a liberdade de pensar, eximindo o entendimento de toda lei na investigação da verdade. O livre pensamento é um absurdo que nos rebaixa ao nível dos brutos, porque nega a mesma razão que não pode conhecer a verdade sem sujeitar-se a leis imutáveis, cuja infração leva consigo o erro.


A idéia não se engendra sem o fantasma sensível; assim como o coração não é independente do bem que o cativa e atrai, tampouco o entendimento da verdade que o ilustra. Um pensamento livre é um absurdo, uma contradição; tudo na natureza tem suas regras e suas leis; e não as terá o pensamento que é a causa mais nobre e excelsa no homem? Nossa potência intelectual pode receber em si todas as formas, é uma participação da luz divina, porém, finita e limitada, e, portanto dependente de Deus. Por íntimas que sejam as analogias do Verbo teológico e do Verbo filosófico, distinguem-se ambos pela diversidade de natureza a que devem sua origem.


Deus, compreendendo sua essência, forma e produz em si mesmo uma concepção inegável, que é seu Verbo. Do mesmo modo que quando nós pensamos ou concebemos um objeto, formamos uma concepção da coisa pensada, e essa é nosso verbo. Porém entende de uma maneira muito mais perfeita que o homem, e daqui nasce a superioridade do seu Verbo sobre o nosso.


Deus conhece a realidade vendo-se a si mesmo como realidade infinita e perfeitíssima; e como em Deus o entender é a substância do sujeito inteligente, Deus entendendo-se a si mesmo, diz Santo Tomás, produz uma concepção em que Ele mesmo se repete [20]. A produção do Verbo em Deus é uma geração verdadeira, e o Verbo pelo mesmo fato que é Verbo, é realmente uma hipóstase subsistente, seu Filho, igual ao Pai, em que está representado o existente e o possível, por quem foram feitas todas as coisas, as visíveis e invisíveis.


A produção do verbo no homem é uma geração imperfeita, porque nem o entender em nós é nossa substância, nem a concepção engendrada pela mente é uma reprodução substancial do sujeito pensante, senão uma forma ideal, um fenômeno intencional do espírito. Nosso verbo é semelhante, não idêntico ao verbo divino, imagem do objeto entendido, nem sempre representação inteligível dele, como sucede no Verbo divino, cuja idéia procede unicamente do Pai.


10. A distância que separa os dois verbos é imensa, a mesma que separa a inteligência finita e a infinita. O Verbo é a imagem adequada e perfeita da ciência perfeitíssima de Deus, é o mesmo pensamento divino compreendendo a essência própria e suas perfeições infinitas. O verbo humano é a expressão ou imagem das coisas que em ato entendemos, não das que podem ser entendidas, muitas delas impenetráveis aos olhos do homem. O Verbo divino como imagem perfeita e adequada da substância do Pai, é Deus mesmo, a verdade mesma ideal e real, a fonte de toda entidade. O verbo humano sendo imagem de uma realidade finita e imperfeita, é por necessidade, finito e imperfeito, verdade participada; não é causa das coisas nem medida do ser, mas deve ser medido por elas para determinar-se ao ato e engendrar mentalmente a visão da verdade real. Não é um original, mas uma cópia maculada, pálido reflexo do sol que fulgura na mente do Altíssimo engendrando o Verbo divino desde toda a eternidade. Este verbo augusto é substancial, incriado, Deus de Deus, luz de luz, pensamento que esgota a inteligibilidade dos seres pela absoluta compreensão dos mesmos; o verbo humano é acidental, criado, circunscrito a uma esfera determinada, distinta da potência que o engendra.


Aquele procede sempre por intuição, é esplendor sagrado que deslumbra e subjuga, nossa inteligência; esta procede por demonstração, deduz ou induz com submissão às leis do espaço e do tempo, desce dos princípios às conclusões ou ascende dos fatos ao conhecimento dos princípios universais por uma multiplicidade de atos que declara sua imperfeição intrínseca. Não conhece senão abstrata e indeterminadamente; logo não pode ser princípio de verdade, nem origem da sabedoria humana, o que é próprio somente de Deus, do Verbo encarnado, que se chama Jesus Cristo.


Basta o que ficou dito para destruir pela sua base o criticismo kantiano, ponto de partida da filosofia moderna, em que as inteligências modernas beberam o vírus da impiedade. Se o verbo filosófico é por si uma entidade finita e imperfeita, uma luz débil e trêmula que reflete parcialmente a verdade oculta nos fenômenos sensíveis, é impossível levantar sobre tão fraco fundamento o edifício dos conhecimentos humanos. A razão não pode ser autônoma, a esfera de nossos conhecimentos não pode limitar-se ao campo de nossas afeições subjetivas; existem horizontes mais amplos cujos limites nos são desconhecidos. A verdade não está em nós: está em Deus, que a reflete sobre o mundo; reside em Cristo, trono da sabedoria e fonte das ciências humanas”.

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[1] Santo Tomás, Contra Genti., lib. I, cap. 62; III, cap. 57; I, q. XIV, art. 4.
[2] Sess. III, c. 2.
[3] João, XIV, 6.
[4] Ibid. XII, 46.
[5] Ibid. VIII, 12.
[6] Ibid. VIII, 25.
[7] Ibid. XIV, 6.
[8] Ibid. XVIII, 37.
[9] Ibid. XIII, 13.
[10] Colos., II, 3.
[11] Jésus-Christ, t. I, pg. 336.
[12] Estúdios filosóficos sobre el Christianismo, t. IV, pg. 310.
[13] Ps. XLIV, 3.
[14] La liberté de penser et la libre pensée, pg. 55.
[15] El Racionalismo y la humanidad, pg. 77.
[16] I, q. XVI, art. 1.
[17] Ps. IV, 7.
[18] Soliloq., II, cap. 5.
[19] I, q. XVI, art. 2.
[20] I, q. XXVII, art. 2.