Sidney Silveira
No final do texto em que fazíamos alusão à utopia laica de Thomas More, afirmávamos haver duas coisas inconciliáveis: o seu ecumenismo* teórico e a morte em odium fidei com que Deus o premiou — pois esta última representa, na prática, uma veementíssima negação daquele. Em resumo: se, como diz More num dos capítulos de sua Utopia, cabe a cada um escolher a religião que lhe aprouver, e o Estado não deve meter-se nestas questões (pois uma das leis fundamentais de sua Ilha utópica garante a liberdade religiosa para todos os indivíduos, sem nenhuma exceção), por que diabos não aceitar que o rei Henrique VIII abandonasse a Igreja e fundasse uma nova religião? Para ser coerente com os princípios de que partia em seu mau livro, condenado por séculos pelo Magistério eclesiástico — até o momento em que a Igreja aboliu o Index, com Paulo VI —, More deveria simplesmente dar de ombros e aceitar a “reorientação” religiosa do rei que fez a Inglaterra apostatar. Mesmo tendo Henrique VIII como motivação, pura e simplesmente, a luxúria**.
No final do texto em que fazíamos alusão à utopia laica de Thomas More, afirmávamos haver duas coisas inconciliáveis: o seu ecumenismo* teórico e a morte em odium fidei com que Deus o premiou — pois esta última representa, na prática, uma veementíssima negação daquele. Em resumo: se, como diz More num dos capítulos de sua Utopia, cabe a cada um escolher a religião que lhe aprouver, e o Estado não deve meter-se nestas questões (pois uma das leis fundamentais de sua Ilha utópica garante a liberdade religiosa para todos os indivíduos, sem nenhuma exceção), por que diabos não aceitar que o rei Henrique VIII abandonasse a Igreja e fundasse uma nova religião? Para ser coerente com os princípios de que partia em seu mau livro, condenado por séculos pelo Magistério eclesiástico — até o momento em que a Igreja aboliu o Index, com Paulo VI —, More deveria simplesmente dar de ombros e aceitar a “reorientação” religiosa do rei que fez a Inglaterra apostatar. Mesmo tendo Henrique VIII como motivação, pura e simplesmente, a luxúria**.
Muitas vezes, é verdade, as pessoas só têm a dimensão das idéias errôneas que defendem quando deparam com uma situação limítrofe. Quando deparam com uma urgência inarredável. Com uma situação existencial dolorosa. Então sim, elas conseguem extrair os corolários acertados das premissas de que partiam, pois são fulminadas pelas evidências. Nestes casos, de duas uma: ou permanecem cegamente obstinadas e se perdem para o bem e para a verdade, ou, purgando os seus erros, revêem (não sem sofrimento) os falsos princípios em que haviam atolado a própria vida, muitas vezes por causa de conveniências ou favores. Thomas More, embora não tivesse tido tempo para abjurar da Utopia que escreveu, deu em seu julgamento um exemplo de que o bem espiritual comum deve prevalecer — e o poder do Papa está acima de quaisquer potestades políticas, em matéria de fé e costumes. Mas também em matéria política, quando esta se afasta da lei evangélica custodiada pela Igreja e da lei natural. Caso evidente de Henrique VIII.
Considerar Thomas More, como querem os católicos liberais, uma espécie de modelo de defesa da consciência individual contra o poder tirânico é um absurdo. É de uma má-fé sem tamanho! Em primeiro lugar porque as idéias pelas quais ele foi condenado e martirizado não eram propriamente suas, mas doutrinas proclamadas solenemente pela Igreja desde, no mínimo, Bonifácio VIII. Não foi, portanto, a liberdade individual o que ele defendeu, mas a primazia das leis da Igreja sobre todas as consciências individuais. Não se tratava de uma defesa da liberdade da pessoa frente ao poder político, como afirmou o Papa João Paulo II no Motu Proprio pelo qual proclamou More como “patrono dos governantes e políticos”***, mas de uma defesa da verdade cristã, católica e apostólica, contra os abusos de um tirano maníaco — ensandecido pelos próprios pecados e crimes.
Nenhuma lei iníqua pode alcançar cidadania. Mas se numa situação maléfica isto vem a acontecer, como na época de Henrique VIII, devemos dizer o mesmo que São Pedro e São João no Sinédrio, quando lhes pediram que se calassem e não pregassem o Evangelho. Non possumus. “Não podemos” (At. IV, 19-20). E devemos dizê-lo mesmo sob o risco de o poder tirânico massacrar-nos, o que na atual condição de natureza caída só é possível com a Graça — que superabundou na alma do jurista inglês na hora de dizer a verdade contra tudo e contra todos. Superabundou na hora de ele mostrar ao mundo o seguinte: os poderes material e espiritual, embora distintos, não são estanques e incomunicáveis entre si, pois o espiritual superior pode e deve julgar o material inferior.
A tese da separação entre estas duas ordens, condenada com toda a solenidade pela Igreja, esperaria muitos séculos, depois da Utopia de Thomas More, para ganhar definitivamente a Igreja, a partir do Concílio Vaticano II. E esperaria dois teóricos, particularmente: Jacques Maritain, com o seu Humanisme Intégral, e o seu amigo e Cardeal Charles Journet, autor de La Jurisdiction de l’Eglise sur La Cité. As teses de ambos os livros passaram a ser assumidas pela Igreja como suas, mesmo contrariando dois milênios de Magistério. Mas esta é uma conversa para outro dia.
* Ecumenismo e liberdade religiosa são irmãos siameses, duas faces de uma mesma realidade. Em suma, se a todos deve ser declarada como "direito fundamental" a liberdade de consciência (expressão equívoca, como mostramos em vários textos do blog), obviamente uma religião proselitista, excludente, parecerá a mais absurda das tiranias. Algo inconcebível. Não existe, num ambiente desses, nenhuma religião melhor, nenhuma religião verdadeira com exclusão das demais — mas todas devem ser toleradas, até mesmo para não ferir susceptibilidades. É paradigmático o trecho da Utopia ("Livro Segundo. Das Religiões da Utopia") em que More adverte o pobre cristão que defendera publicamente a sua religião. Lê-se ali: "Apenas um dos nossos neófitos foi preso em minha presença. Recém-batizado, pregava em público, não obstante os meus conselhos, com mais zelo do que prudência. Arrebatado por seu ardente fervor, não se contentava em elevar ao primeiro plano o Cristianismo, e condenava todas as outras religiões (...). Tal neófito, depois de ter deblaterado neste tom durante muito tempo, foi preso, não sob prevenção de ultraje ao culto, mas por ter provocado tumulto junto ao povo. Foi a julgamento e condenado ao exílio". Aqui, dirijo uma pergunta aos católicos liberais que acham isso bom: será que vocês não vêem que defender isto é jogar no lixo toda a História da Igreja? Jogar no lixo os anátemas? Jogar no lixo o dogma extra ecclesiam nulla salus?
** Na IIª-IIª da Suma Teológica (questão 153), Santo Tomás trata do vício da luxúria. Não é aqui o lugar de aprofundar o tema, mas apenas sumariar o que conclui o Santo Doutor naquele trecho de sua magnífica obra. No artigo I, mostra ele que os prazeres venéreos são a matéria própria da luxúria; no II e no III, que pode haver pecado neles, mas não necessariamente, pois eles podem ordenar-se pela recta ratio e não excluir nenhum dos fins implicados em sua atualização, por parte do homem; no IV, que a luxúria é vício capital, pois acarreta uma série de outros vícios e hábitos maus; no V, que as filhas da luxúria são a) a cegueira mental; b) a inconsideração; c) a inconstância; d) a precipitação; e) o egoísmo; f) o ódio a Deus; g) o amor exagerado à vida presente; e h) o horror e desespero pela vida futura. Na questão 154 dessa mesma parte da Suma, o Aquinate aborda as espécies de luxúria — entre as quais classifica as seguintes: a simples fornicação, o adultério, o incesto, o estupro, o rapto e os vícios contra naturam.
*** Não se escandalizem aqui as almas cândidas, pois não se trata de um documento pertencente ao Magistério infalível, pois nele não se cumprem todas as quatro condições estabelecidas no Concílio Vaticano I, e, por isso, não exige uma adesão irrestrita por parte dos fiéis. E o mesmo se pode dizer da última Encíclica do Papa Bento XVI, Caritas in Veritate, em que se propõe um poder político mundial ao modo do De Monarchia de Dante.