quarta-feira, 31 de março de 2010

A prova da existência de Deus em Santo Tomás (III)


Sidney Silveira
Após evidenciar-se a absurdidade de remontar ao infinito as causas essencialmente ordenadas na ordem do ser — verdadeira contradictio in terminis, em sua própria formulação —, vale aduzir outros argumentos, desta vez pinçados não da obra de Duns Scot, como fizemos, mas da Suma Teológica de Tomás.

Antes, porém, reiteremos o fato de que, nas cinco vias, ficara patente a absoluta transcendência da causa primeira em relação a todas as causas segundas, o que põe por terra qualquer espécie de panteísmo, de confusão entre o Ser e os entes, entre Deus e o mundo (entendido este como todo o universo criado).

O seguinte quadro ilustra bem o caminho percorrido na aludida prova:

a) Dos entes móveis, moventes e movidos à transcendência do Ente Imóvel que se encontra fora e além da série de movimentos;
b) Dos entes eficientemente causados e causantes à transcendência da Causa Não Causada que está fora e além da série de causal;
c) Dos entes contingentes à transcendência do Ente Necessário que está fora e além de todas as contingências, e é na verdade o horizonte possibilitante destas;
d) Dos entes que são mais e menos na ordem do ser à transcendência do Ente que é Grau Sumo de Ser e está fora e além de todas as gradações, dada a sua infinitude, de que falaremos abaixo;
e) Dos entes naturais desprovidos de conhecimento que obram por um fim à transcendência da Inteligência Suprema que está fora e além de todos os fins naturais logrados, e é na verdade o fim último ao qual se destinam todos os fins específicos.

Em resumo, a omniperfeição do Próprio Ser Subsistente identifica-se com a sua transcendência em relação a todas as perfeições específicas que observamos nos entes — e ressaltemos, neste ponto, que “perfeito”, na definição do Aquinate, é o totalmente acabado ou feito (totaliter factum). Noutras palavras: a algo perfeito não lhe falta nada para ser o que é. Assim, um homem é perfeitamente humano quando todas as notas distintivas de sua essência se dão plenamente nele, mesmo no caso de haver alguma imperfeição acidental, como por exemplo uma pessoa cega que, malgrado a cegueira, continua essencialmente homem. Ocorre que não sendo Deus algo feito (factum), isto nos leva a uma dificuldade: parece que a perfeição não seja algo predicável a Ele, pois, como dizia São Gregório Magno, citado por Tomás, “expressamos as coisas de Deus balbuciando como podemos (balbutiendo ut possumus), mas efetivamente o que não é feito (factum) não pode em rigor chamar-se perfeito (perfectum)”. A isto responde o Aquinate dizendo que, de fato, não chamamos as coisas de ‘perfeitas’ até que tenham passado da potência ao ato; portanto, Deus, sendo Ato Puro e não tendo nenhum acidente, é não apenas perfeito, mas o maxime esse perfectum do qual todas as perfeições específicas dependem para ser (Cfme. Suma Teológica, I, q. 4, a.1 resp. e ad. 1).

Pois muito bem: a suma perfeição identifica-se com a omnimoda simplicitas que apontamos anteriormente, e a simplicidade, por sua vez, identifica-se com a infinitude. Vejamos os porquês.

Infinito é o que não tem limites de nenhuma ordem. Mas considerando que o ente se divide em ato e potência, podemos muito bem abordar o infinito numa dupla perspectiva: infinito atual e infinito potencial. Ora, o infinito potencial é o que não tem limites em sua potencialidade e, por conseguinte, em sua imperfeição. O mal, neste sentido, pode ser dito potencialmente infinito. Por exemplo: 2 + 2 = 4; portanto, qualquer outra resposta poderá ser errônea ao infinito. Apliquemos isto às séries de causas ordenadas por essência, e chegaremos à conclusão de que elas podem ser potencialmente infinitas, sim, por ser possível multiplicá-las o quanto quisermos. Mas isto não invalida a prova da existência de Deus, que diz que as causas não podem ser atualmente infinitas, pois o infinito, em sentido formal, só pode ser dito do Próprio Ser. Ou melhor: o infinito atual, diferentemente do potencial, não tem limites em seu ato formal, que é ser em sentido absoluto, e, portanto, máxima perfeição transcendente em relação a todas as perfeições formais e materiais.

Considerados todos estes pontos, impõe-se a conclusão de que nenhuma coisa, exceto Deus, pode ser infinita por essência (Cfme. Suma Teológica, I, q. 7. art.2). Se se considera o aspecto potencial-material, as coisas podem ser ditas infinitas em certo sentido (secundum quid), como nos casos acima citados. Não trataremos, neste texto, do outro tipo de infinitude secundum quid para Santo Tomás, pois isto foge ao escopo do presente texto: os anjos e a alma humana*. Por fim, se se considera o aspecto formal-entitativo, vale o seguinte: se algo não tem limites de nenhuma ordem (nem material, nem formal, nem potencial, nem atual, nem essencial), é portanto infinito em sentido absoluto (simpliciter).

Portanto, fica de vez resolvida a objeção que propunha uma série atual infinita de causas essencialmente ordenadas, pois o infinito em ato só cabe propriamente ao Próprio Ser Subsistente.
* Sobre a natureza angélica, já mencionada aqui, falaremos com mais vagar noutra oportunidade.

(continua)