quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Sobre as coisas políticas (II)

Sidney Silveira

No Livro das Sentenças, de Pedro Lombardo, texto comentado pelos principais pensadores medievais a partir do final do século XII, um dos problemas subjacentes às questões compiladas pelo notável magister catedralício da escola de Notre Dame era saber o que o homem deve usar e o que deve gozar. Em resumo, o uso está para o gozo assim como o instrumento do talhador está para a madeira; o pecado estaria justamente em inverter esta ordem, ou seja, gozar o que é para usar, e usar o que é para gozar. A propósito, um dos artigos do Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo escrito por Santo Tomás começa assim: Deus usa o homem ou goza com o homem?

Deixemos a resposta a este instigante problema para outra ocasião, pois interessa-nos por ora a aplicação do princípio de causalidade instrumental às coisas políticas, para seguir o que se prenunciou no texto anterior: a política é, em relação ao fim último do homem, um simples meio. Noutras palavras, o homem deve usar das coisas políticas com o intuito de gozar da bem-aventurança perfeita que o espera, no céu. Sendo assim, enxergar em qualquer âmbito da Pólis o ápice da realização dos anseios humanos é esquecer-se de Deus, preterir a Cristo em favor de Barrabás, subjugar o espírito à matéria, a qualidade à quantidade.

Pois muito bem, nestes tempos de contornos apocalípticos, entre católicos amantes da Tradição é grande o risco do milenarismo, essa louca esperança de uma felicidade perfeita na terra. E isto num duplo viés: milenarismo político e milenarismo religioso. O primeiro é bastante encontradiço entre católicos de formação liberal que vêem o bem político como algo autônomo ou, na melhor das hipóteses, apenas acidentalmente subordinado ao fim último do homem: Deus. Haveria, para estas pessoas seduzidas pela hidra liberal, uma separação entre os poderes espiritual e material, e nisto são elas herdeiras distantes das obras como De Monarchia, de Dante, e Utopia, de Thomas More — durante séculos constantes do Index Librorum Prohibitorum.

Por sua vez, o milenarismo religioso é mais comumente encontrável entre católicos que, apesar de sua melhor formação doutrinal — não contaminada pelo espírito do Concílio Vaticano II —, esperam com inabalável convicção o ressurgimento da Cristandade no mundo, como se lessem nas entrelinhas dos desígnios da Providência o que está selado para os tempos atuais. Parecem esquecer-se da terrível pergunta de Cristo: “Quando vier o filho do Homem, acaso encontrará a fé sobre a terra?” (Lc. XVIII, 8). Não aprofundaremos este último tipo de milenarismo, pois o foco no momento são as coisas políticas, mas vale remeter os nossos leitores a um trecho do escrito Reflexões sobre o Apocalipse, originalmente publicado no blog católico A Casa de Sarto e traduzido pela Permanência. Ali se ensina, entre outras coisas, que o milenarismo espiritual é a materialização da esperança, ou seja, o retirar da Esperança cristã o seu caráter sobrenatural.

É verdade de fé que, desde o pecado original, o mundo pertence ao Maligno, que para perder as almas se aproveita da desordem instaurada por três grandes seqüelas decorrentes da queda de Adão: a concupiscência da carne (tendência à luxúria), a concupiscência dos olhos (amor às riquezas) e a soberba da vida (desobediência, proveniente do orgulho). Tendo isto em vista, Santo Agostinho afirmava que, desde Caim, fundaram-se no mundo apenas Cidades do Amor Próprio, as quais viriam a ser combatidas com a manifestação, na plenitude dos tempos, da verdade do Evangelho, que, por intermédio da Igreja militante, procurará estabelecer entre nós uma prefiguração da Cidade de Deus. Não à toa afirmava, em tom de lamento, Leão XIII, na Encíclica Immortale Dei: “Houve um tempo em que a filosofia do Evangelho pairava sobre as nações”.

Aqui chega-se ao ponto nevrálgico da questão: ou as sociedades pagarão ao Criador o seu débito de justiça, dando-Lhe o culto público devido, ou legislarão totalmente à margem de Deus, conformando-se assim às Cidades do Amor Própio de que falava Agostinho, onde os homens são carniça do demônio. Ora, legislar à margem de Deus será exatamente o que farão as sociedades modernas instigadas pela reação da carne às duras exigências do espírito cristão. Com elas se inaugura, na prática, o Estado ateu, ou melhor, um tipo de ateísmo oficial camuflado, que, sob o demagógico pretexto de respeitar as liberdades individuais, propugna — com o Estado laico — uma neutralidade em relação às questões que desde sempre foram a base da civilização.

O que muitos ingênuos não percebem é que o Estado laico moldado pela intelligentzia maçônica dos séculos XVIII e XIX — e consagrado no século XX como verdade pétrea das constituições mundo afora, a pretexto de respeitar as consciências individuais — foi a brecha para o surgimento do Estado ateu; este não existiria se não tivesse havido aquele, pois o comunismo e todos os seus matizes socialistas são filhos robustos do liberalismo antieclesiástico. Na verdade, o comunista e o liberal são como o sádico e o masoquista: odeiam-se por se mostrarem complementares em suas patologias. O sádico perderia todo o seu prazer ao inflingir dor a quem sente prazer na dor; e algo semelhante pode-se dizer do masoquista.

Se por desgraça a Igreja já não age apostolicamente para converter o mundo à verdade evangélica, pois o discurso oficial, na melhor das hipóteses, aborda questões relativas à lei natural (ou seja: colocar-se contra o aborto; contra a política gayzista; contra o ateísmo; etc.), dado o ecumenismo em que jazem as autoridades; se ela já não propõe nenhum remédio a ser aplicado no plano político, para conformar as sociedades à lei do Evangelho; se ela já não se assume como a única religião verdadeira; tudo isso não implica que:

a) o mundo não precise ser convertido;

b) a Igreja não deva intrometer-se nas coisas políticas, inoculando nos costumes a caridade evangélica e condenando os erros contra a fé no seio da Pólis (e não apenas intra Ecclesiam) que possam interpor-se entre os homens e Deus;

c) o catolicismo não seja a única verdadeira religião, fundada por Deus Encarnado.

Antes de encerrar este segundo texto da presente série, vale indagar: entre os nossos presidenciáveis há, ainda que palidamente, alguém cujo grupo político represente a defesa dos princípios aqui arrolados? Há, de fato, do ponto de vista da fé, o menos pior? Concedo que pode haver o menos pior (mas não muito, diga-se) de uma perspectiva meramente política — mas de uma política que só pode ser assim chamada por uma analogia de atribuição extrínseca. Isto porque, em sua verdadeira acepção, a política acabou.

E acabou porque os valores sem os quais não há sequer resquício de civilização estão enterrados. Não sabemos até quando.

(continua)