sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Relações Igreja-Estado (IV): o infernal “De Monarchia”, de Dante



Sidney Silveira
Relendo vários textos sobre a tão propalada encíclica Caritas in Veritate, na qual o Papa Bento XVI propõe, com todas as letras, o estabelecimento de uma autoridade política mundial com poder efetivo sobre todas as nações, a pretexto de garantir a cada uma a segurança (nº 67), ocorreu-me retomar o tema das relações entre a Igreja e o Estado. E fazê-lo tendo como parâmetro o autor de um erro, literalmente, dantesco: nenhum outro senão o próprio Dante Alighieri, que perpetrou no escrito De Monarchia um compêndio de teses antieclesiásticas da pior cepa, dada a sua sutileza. Durante séculos esse livro constou do Index Librorum Prohibitorum, e poderia jazer, muito bem, no oitavo círculo do Malebolge, aquela parte do inferno onde o famoso poeta florentino pôs os falsificadores de doutrinas — eternamente atormentados por furiosa sede.

Nessa obra, contrariando o mais elementar bom senso, Dante propõe uma chefatura política suprema para todo o gênero humano, espécie de império universal ou, em suas palavras “Principado único com poder sobre todos os poderes temporais” (De Monarchia, I, 2). Vale dizer que, como preâmbulo “intelectual” para a defesa de algumas teses de sua filosofia política, o florentino se apóia em quimeras mitológicas romanas, como a travessia do rio Tibre por Clélia* e o combate entre Enéias e Turno** (De Monarchia, II, 4), entre outros eventos lendários nos quais crê firmemente.

Mas tais fantasias de poeta são de somenos importância. O pior é que, fazendo uso de teorias vigentes entre os grandes pensadores da Cristandade medieval — como a correlação entre a lei divina, a lei natural e a lei positiva humana —, Dante acaba por distorcê-las para adaptá-las a suas teses humanistas. Sob o pretexto de que a paz universal (uma paz uma meramente humana, diga-se!) é o melhor de todos os meios ordenados à nossa felicidade (pax universalis est optimum eorum quae ad nostram beatitudinem ordinantur), ele nos aponta para a necessidade de haver um Príncipe único no mundo, que deve submeter todos os homens a um só querer (De Monarchia, I, 14). O detalhe é que esse Príncipe todo-poderoso nada tem a ver com Deus ou com a Igreja, e muito menos com o Papa, Vigário de Cristo, pois Dante simplesmente separara as ordens espiritual e material, abrindo entre elas um abismo intransponível. Trata-se de um Príncipe do mundo, no mundo e, em tese, para o mundo.

Não pelo Principado político universal, mas pela separação entre os poderes espiritual e material (que durante quase dois mil anos foi solenemente condenada pela Igreja), Dante hoje seria aclamado com estrépito por gente que — por mil e um meios políticos, e valendo-se de vultosos recursos financeiros — inocula em algumas elites de jovens talentosos o pior do humanismo católico. Mas na época em que a Igreja, por ordem expressa de Cristo, chamava para si a responsabilidade de fazer reinar sobre todos os povos a lei evangélica, certamente tal humanismo, sobretudo oriundo de um homem católico, não poderia ser tolerado. Daí o De Monarchia de Dante ter entrado no Index, em cujo pórtico se poderia muito bem colocar a famosa frase de sua "Comédia" que se lê na entrada do inferno: Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate. E veremos os porquês.

A lei única sob a qual os principados particulares (ou seja, todas as nações) devem obedecer ao dantesco Monarca universal tem como conteúdo, tão-somente, aqueles pontos comuns que, hipoteticamente, interessariam a todos os homens (De Monarchia, I, 14). Alguma semelhança do Principado dantesco com a ONU? Alguma semelhança com as teses dos nossos ecumenistas católicos contemporâneos, que jogam para debaixo do tapete a Verdade revelada para falar apenas de tópicos atinentes à lei natural, como se estes fossem o fundamento último da paz entre os homens? Na verdade, tal semelhança é quase uma identidade absoluta, pois, num e noutro caso, consideram-se as coisas escatológicas supratemporais e as humanas temporais como pertencentes a duas cidades absolutamente distintas e intocáveis entre si.

É claro que, como toda doutrina nefasta, esta também precisa valer-se de alguns slogans publicitários palatáveis — e Dante põe água na boca dos seus leitores, ao dizer que, em sua filosofia política, os governantes são senhores dos governados apenas com relação aos meios, mas, com relação aos fins, os governados é que seriam os senhores dos governantes, e, dentre todos, o Monarca universal seria o que, em tese, serviria altruisticamente a todo o gênero humano... Que alma boazinha a desse Príncipe! Deus do céu: se não fosse o autor de tal disparate o grande poeta do Trecento pré-renascentista, poderíamos dizer que esta é apenas uma piada de mau gosto. De toda forma, de que doutrina se valeria esse Monarca supremo, de acordo com Dante, para impetrar os seus atos de governança mundo afora? De alguma verdade sublime? Da Sagrada Escritura? Não. Dos escritos filosóficos (phylosophica documenta). Como se vê, estamos aqui muito próximos da República platônica, na qual o governo caberia aos filósofos, mas com uma diferença específica: os filósofos dantescos poderiam, no máximo, servir de conselheiros ao Mega Imperador mundial.

A sociedade civil, em si mesma, é considerada por Dante como o meio necessário para promover a civilização humana. Mas qual seria o ápice dessa civilização? Algo referido, pelo menos instrumentalmente, ao fim último que é Deus? Não. Pura e simplesmente o conhecimento humano. Este, sim, seria o fim gnóstico de toda a sociedade humana, como se frisa no Livro I desse tremendo De Monarchia. Mas que conhecimento seria esse por meio do qual os homens, reunidos em grupo, lograriam o seu fim? Pois muito bem: aqui entra em cena um absurdo teórico sem tamanho, que é a aplicação da tese averroísta da unidade do intelecto possível à ordem política (De Monarchia, I, 5). Para Dante, somente o trabalho da humanidade inteira poderia levar ao ato a potência desse único intelecto possível (De Monarchia, I, 7). E tal coisa se tornaria possível sob o influxo político do poder do Monarca universal, que ajudaria toda a espécie humana a chegar a essa plenitude.

Neste ponto, para deixar as coisas mais claras, façamos um apontamento: em síntese, Aristóteles conceituara o “intelecto possível” (ou “passível”: o noûs pathetikós) como a potência do intelecto para atualizar todos os inteligíveis. Ou seja, trata-se da pura e simples capacidade que possui cada ser humano, individualmente, de atualizar toda a sorte de conhecimentos. Em resumo, cada um de nós tem o seu noûs pathetikós particular, o que se comprova quando passamos a saber, em dado momento de nossa trajetória individual, o que antes não sabíamos. Mas, de acordo com a tese de Averróis que fez Santo Tomás perder as estribeiras***, haveria um só intelecto possível para toda a humanidade —, tese abstrusa refutada pelo Aquinate no magnífico De Unitate Intellectus Contra Averroistas. Ora, se houvesse um único intelecto partilhável potencialmente por toda a humanidade, isto implicaria dizer que o homem não pensa, mas é pensado, o que é absurdo. Isto o gênio filosófico do Doutor Comum não poderia aceitar, assim como vários outros corolários da tese averroísta****.

Pois bem: Dante tenta aplicar a noção averroísta ao plano político para justificar a sua tese com uma espécie de analogia. Ora, da mesma forma como haveria, para a humanidade inteira, uma só operação própria (a partir do intelecto possível exterior a todos os homens individuais), assim também há de haver um reino superior a todos, por cuja atuação se alcance uma felicidade a que nenhum reino particular poderia chegar. “A missão do Imperador é conduzir o gênero humano à paz, submetendo-o a seu querer único” (De Monarchia, I, 14).

O mais diabólico da tese dantesca está no fato de que, nela, o poder temporal não recebe do espiritual nem o seu ser, nem a sua autoridade, nem o seu exercício. No máximo, o Monarca supremo deveria algum tipo de reverência política ao Papa, mas apenas isto. A sua humana autoridade imperial pende, imediata e diretamente, de Deus (De Monarchia, III, 13), razão pela qual não se justifica dobrar-se a nenhuma outra autoridade, ainda que seja a Autoridade participada à Igreja pelo próprio Deus. Perceberam o que isto implica? Nada menos do que uma mal disfarçada divinização do homem pelo viés político, além da recusa a obedecer ao primado espiritual superior. Haveria, pois, segundo Dante, dois fins últimos para o homem: por um lado, a felicidade perfeita que se logra nesta vida pelo exercício da virtude; e, por outro, a beatitude que se logra pela Graça, na outra vida (De Monarchia, III, 16). Como se vê, o princípio católico de que “a Graça aperfeiçoa a natureza” — expresso na lapidar fórmula Gratia non tollit naturam, sed perficit — neste contexto, torna-se inaplicável, porque entre a Graça e a natureza estabeleceu-se um hiato. Ou seja: a natureza humana já pode ser feliz nesta vida pelo exercício da virtude, apenas, razão pela qual não precisa da Graça aqui e agora. A única coisa de que precisam os homens da Pólis dantesca é do Príncipe do mundo — que, de acordo com Jesus, não é outro senão Satanás*****.

Mas do que um non serviam individual, trata-se de um non serviam coletivo universal.

* De acordo com a lenda, Clélia seria uma Virgem romana que, segundo Tito Lívio, atravessou a nado o rio Tibre e, com este feito olímpico verdadeiramente impressionante, fez com que o rei etrusco Porsena desistisse de invadir Roma.
** Na mitologia romana, Turno é o comandante dos exércitos que se aliaram aos rútulos para expulsar Enéas e os troianos que, com a queda de Tróia, seguiram o destino de fundar uma cidade no Lácio, que mais tarde dominaria o mundo.
*** Como é notório entre os estudiosos da obra de Santo Tomás, um dos poucos momentos de ira em toda a vida do Angélico aconteceu quando deparou com a tese do único intelecto possível, defendida pelo averroísta Siger de Brabante.
**** Diz Tomás de Aquino: “É claro, pois, que o intelecto é aquilo que há de principal no homem e se serve de todas as potências da alma e dos membros do corpo ao modo de instrumentos. (...) Portanto, se o intelecto de todos é único, segue-se necessariamente que só há um a pensar e um só a utilizar, pelo arbítrio de sua vontade, todas as coisas em que os homens se distinguem uns dos outros” [o que é absurdo] (De Unitate Intellectus, IV, nº 87).
***** “Eu vos deixo a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá. Não se perturbe o vosso coração nem se atemorize. Ouvistes o que vos disse: Vou e volto para vós. Se me amardes, certamente haveis de alegrar-vos, pois vou para junto do Pai, porque o Pai é maior que eu. Eu disse-vos essas coisas agora, antes que aconteçam, para que creiais quando acontecerem. Já não falarei muito convosco, porque vem o príncipe deste mundo, mas ele não tem parte comigo”. (Jo XIV, 27-30). “Agora é o juízo deste mundo; agora será lançado fora o príncipe do mundo” (Jo, XII, 31). “(...) Ele [o Paráclito] convencerá [o mundo] a respeito do juízo, que consiste em que o príncipe deste mundo já está julgado e condenado” (Jo XVI, 11).

Em tempo: Nunca é demais lembrar que todo e qualquer pecado é, de alguma forma, um espelho do pecado de Lúcifer e, depois, do de Adão: o de buscar uma felicidade autonôma em relação a Deus. Exatamente o que Dante pretende para toda a humanidade: uma felicidade terrena perfeita, sem a necessidade da Graça divina — mas que se vale, isto sim, de um despótico império humano.

(continua)