Sidney Silveira
A tentativa de prova pela tendência natural do homem à felicidade
Gallus M. Manser, um dos grandes tomistas do século XX, traz uma bela refutação, em seu livro A Essência do Tomismo, dos argumentos em favor da prova da existência de Deus a partir do anelo de felicidade que há no coração do homem. Enumeremos duas dessas teses em forma de silogismo, para torná-las bem claras:
1- Todo anelo natural supõe a existência real da coisa anelada. Ora, o homem tem o anelo natural de unir-se a Deus, onde está a sua felicidade e o seu fim próprio. Logo, Deus existe.
2- Deus é o objeto formal especificante tanto da inteligência quanto da vontade. Pois muito bem: toda potência supõe a realidade do objeto formal que a especifica. Logo, Deus existe.
O primeiro desses argumentos supõe o axioma “na natureza nada se faz em vão” (natura non agit frustra, ou então natura nihil facit frustra). Ocorre que esta máxima se aplica às coisas naturais, e Deus está absolutamente acima de todas as naturezas. Pergunta-se, então, o grande metafísico: pode porventura afirmar-se que tudo na natureza — no mundo, enfim — é proporcional ao fim último? A resposta é “não”, embora com ela não se invalide o axioma natura nihil facit frustra, pois este tem valor universal relativo às coisas naturais, até mesmo quando individualmente a finalidade se frustra, como é o caso das disteleologias que observamos nas monstruosidades em alguns indivíduos: um homem nasce sem a perna; outro sem o braço; um bebê é anencefálico, etc. Não obstante, tais realidades materializadas em indivíduos não frustram o fim da espécie humana.
Manser mostra o seu engenho filosófico ao referir-se a essas monstruosidades que frustram a natureza em alguns indivíduos, e, com isto, parecem invalidar o princípio acima aludido. Aponta ele simplesmente o seguinte: na natureza também existe o casual, o acidental que só pode ser suficientemente explicado à luz de um princípio superior. No caso de que se trata, o tomista dominicano nos remete ao fato de que tais disteleologias, tais finalidades malogradas, se explicam por inserir-se no contexto da Providência divina — que permite o mal nos indivíduos em ordem ao bem maior das espécies (não entro, por ora, no tema do mal no homem). E, com grande argúcia, ele nos lembra ainda que sempre, ao aplicar este princípio, Santo Tomás supõe como já demonstrada a existência de Deus. Daí ser absolutamente improcedente falar em “prova” da existência de Deus a partir deste princípio. Pode até ser um argumento razoável, mas jamais probante.
Já com relação ao segundo silogismo acima citado, Manser (a meu ver muito acertadamente, e contra uma série de respeitados tomistas: Garrigou-Lagrange, Gredt, Lehmen-Beck, etc) nega a premissa maior. Ou seja: não é válido dizer que Deus é o objeto formal especificante tanto da inteligência como da vontade. Vejamos o argumento.
É verdade que toda potência está ordenada, por necessidade natural, ao seu objeto formal especificante. E justamente aqui entra o argumento de outros tomistas em favor da prova da existência de Deus a partir das premissas deste silogismo: sendo Deus o objeto formal especificante da inteligência e da vontade, se Ele não existisse, não existiria a vontade nem a inteligência. Mas é evidente que a vontade e a inteligência existem; logo, Deus existe.
A isto responde Manser: o que o homem quer por necessidade natural não é Deus, mas a felicidade em geral, in comuni (e nisto reproduz o que diz o Aquinate em De Veritate, XI, q. 2). A Deus o homem elege livremente, e não por necessidade natural. Em suma, pode-se dizer que o homem apetece a Deus indiretamente, a partir do bem em sentido geral. Portanto, Deus não pode ser o objeto formal especificante nem da vontade, e nem inteligência — já que a vontade é apetite intelectivo do bem. Ademais, não sendo Deus o primeiro que se conhece aqui na terra pelo homem, tampouco será Ele o primeiro que se deseja naturalmente.
Em resumo, se a felicidade em geral, ou seja, o boni in comuni, é o objeto especificante da vontade humana como potência, torna-se inadimissível admitir um segundo objeto formal especificante para a mesma vontade. Diz Manser:
“Se considerarmos a vontade humana unicamente em sua atividade terrena (in ordine actus eliciti), nem a vontade tende naturalmente a Deus em primeiro lugar, nem muito menos é Deus o objeto formal da vontade na ordem natural”.