quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Sobre as coisas políticas (I)

Sidney Silveira

Recebi email indignadíssimo de um leitor nosso que, pelo visto, não aceita de forma alguma que anulemos, eu e o Nougué, o voto nestas eleições presidenciais. Antes de tudo, vale dizer que não me ofendem o tom exaltado e a superioridade pontifical do referido email deste nosso amigo, movidos decerto por uma justa ira em relação à desgraça política nacional, e nem o fato de o seu texto chamar-nos de “omissos”, citando como apoio o excelente teólogo Jean Ousset (que, segundo o missivista, pediria “ação” diante da presente situação do país) e fazendo referência ao princípio da “escolha do mal menor”, nas coisas humanas.

Não pude, contudo, ao ler esta mensagem, deixar de lembrar-me do que diz o Pe. Calderón: o tema da política foi o que mais suscitou erros no pensamento católico.

Vale, pois, remeter-nos a alguns princípios, antes de apresentar a razão de anularmos o voto (observe-se, porém, que não fazemos apologia do voto nulo, pois esta é uma matéria opinável a ser decidida por cada um, de acordo com a sua consciência. Com exceção, obviamente, dos casos em que votar neste ou naquele candidato implica ir diretamente contra as leis de Deus, e omitir-se torna-se então pecado grave. Veremos adiante que não há propriamente um mal menor, no atual quadro da política brasileira, do ponto de vista da fé).

Subordinação do temporal ao espiritual

O princípio reitor da ação católica nas coisas políticas, de acordo com a doutrina tradicional da Igreja, é o da subordinação da ordem temporal à espiritual. Em resumo, o espiritual está para o temporal:

> assim como a alma está para o corpo;

> assim como a graça está para a natureza, na alma do homem justificado;

> assim como a fé está para a razão, na teologia.

Quando precisa explicar a intervenção do poder espiritual nas coisas temporais, Santo Tomás — lembra-nos Calderón, no livro El Reino de Dios — recorre às três analogias acima. Mas adverte o Santo Doutor: não há nenhuma usurpação se porventura a Igreja se intromete nas coisas temporais naqueles assuntos em que o poder secular lhe está submetido. Em suma, de fato não cabe ao poder espiritual imiscuir-se na arrecadação fiscal, na engenharia de tráfego, etc. Mas ele pode, por direito divino inusurpável, meter-se nas coisas temporais em todas as ocasiões em que este se transforme num empecilho à consecução do fim espiritual superior custodiado pela Igreja, o que na verdade pode acontecer em inúmeras ocasiões, sobretudo quando Deus e a religião são banidos do Estado na forma da lei.

No livro De regimini principum (lib. I, cap. 15), o Aquinate afirma: “O juízo que se faz sobre o fim do homem deve fazer-se, igualmente, sobre o fim de toda a sociedade” (idem oportet esse iudicium de fine totius multitudinis et unus). Daí formular ele este maravilhoso princípio que o Nougué escolheu para pôr no pórtico da sua apresentação ao livro A Política em Aristóteles e Santo Tomás, do filósofo Jorge Martínez Barrera:

“(...) E, dado que o homem, ao viver segundo a virtude, se ordena a um fim ulterior, que consiste na fruição divina (...), é necessário que o fim da multidão humana, que é o mesmo do indivíduo, não seja viver segundo a virtude, mas antes, por meio de uma vida virtuosa, chegar à fruição divina”.

Comentando esta passagem, diz Calderón: “A argumentação de Santo Tomás é impecável. Dotado de natureza e tendo recebido a graça, o homem tem um único fim — não imanente, mas transcendente, não natural, mas sobrenatural —, e todos os bens de sua natureza devem estar subordinados ao movimento da graça, de modo que ele não busque a saúde, a riqueza, a ciência ou a virtude, etc., senão enquanto lhes servem para salvar a alma. Afinal, de que adianta ganhar o mundo e perder a alma? (cfme. Mt. XVI, 26)”.

Nas passagens citadas e em outras, em que faz uso de argumentos preciosos, Santo Tomás nos demonstra que a política é tão-somente um fim intermediário instrumental em relação ao fim último, e, ademais, deve estar dirigida pelo poder espiritual em todas as coisas em que lhe esteja naturalmente sujeita. Não custa aqui lembrar o que diz Leão XIII na Encíclica Immortale Dei, no tópico intitulado Princípios Fundamentais da Doutrina Católica. 44. Sobre a Autoridade da Igreja, pois adiante este trecho nos será útil: “Os depositários do poder não devem pretender escravizar e subjugar a Igreja, nem lhe diminuir a liberdade de ação na sua esfera, nem lhe tirar nenhum dos direitos que lhe foram conferidos por Jesus Cristo (grifo nosso!)”.

Neste ponto, vale destacar que o poder espiritual não pode lograr o seu fim sem a cooperação do secular, da mesma forma que a alma não consegue atualizar suas potências mais excelentes senão em conjunção com o corpo, que lhe serve de instrumento nos atos da inteligência e da vontade.

Estabelecidos estes princípios, é conveniente frisar ainda que a política não se restringe ao poder, mas abrange um grande conjunto de relações sociais a que hoje chamaríamos infrapolíticas.

(continua)