quarta-feira, 5 de novembro de 2008

A liberdade liberal (I)

Sidney Silveira
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, gestada por liberais libertários da primeira fase da Revolução Francesa, proclamava o seguinte, em seu artigo 4º: A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique o próximo (La liberté consiste à pouvoir faire tout ce qui ne nuit pas à autrui).Voltaire, por estes tempos, dizia o seguinte: La liberté est le pouvoir de faire ce que je veux (A liberdade é o poder de fazer o que quero). E Rousseau: L’homme est né libre et partout il est dans les fers (O homem nasceu livre e, em toda a parte, se encontra agrilhoado).

Observemos algumas coisas, nestes textos:
a) Na menção à ordem externa ao indivíduo livre, põe-se vagamente como único limite da sua liberdade — limite acidental, mas não essencial — o fato de não prejudicar o próximo [na declaração dos revolucionários];
b) Está pressuposto que a liberdade se autodetermina [na definição de Voltaire, mas também nas demais]. Contudo, se de alguma maneira a liberdade se autodeterminasse, seria um dos transcendentais do ser*, o que noutra ocasião veremos ser impossível;
c) O indivíduo livre é oprimido pela ordem externa [na definição de Rousseau].

Antes de dar mais um passo, não custa lembrar que, em toda a história do liberalismo, não existe nenhuma definição de liberdade que seja minimamente satisfatória, do ponto de vista ontológico, metafísico, gnosiológico, teológico ou psicológico. Solicitamos aos nossos adversários que apresentem uma, umazinha sequer. Nada. Trata-se, na prática, de simples idéias, de asserções afirmativas, de meros slogans desfraldados como a quintessência da verdade — mas slogans são para a retórica dos políticos e para quem põe a sua esperança nestes. E, como o Nougué mostrou noutro texto, o que nasce de uma idéia e a ela fica circunscrito (sem jamais alcançar as coisas reais) não é senão ideologia. E toda ideologia engendra uma monstruosidade, tanto para os indivíduos como, sobretudo, para as sociedades. À luz deste princípio, podemos afirmar com segurança que este é o caso de Descartes: o seu Cogito é um beco sem saída nascido de uma idéia autofágica, como apontamos em outro texto.

Essa artificiosa contraposição entre o indivíduo livre e a coletividade “opressora” (presente nos protoliberais revolucionários, mas também em vários ideólogos do liberalismo, desde então até os dias atuais) será decisiva, no plano histórico, para pôr a perder, de uma vez por todas, a idéia de que a lei é um bem em si. E o é na medida em que é uma regra da reta razão espelhada na lei eterna, sendo esta também a regra para toda e qualquer natura — já que, como mostramos, o conjunto da natureza não existiria se não houvesse algo além de todas as naturezas que lhes doasse o ser.

Após a Revolução Francesa, entre a liberdade e a lei se estabelecerá uma tensão irresolvível, totalmente oposta à idéia cristã — paulina, mas também referendada pelo Magistério e por Doutores da Igreja como Santo Agostinho — de que a caridade (o mais livre dos atos) é a plenitude da lei. E também de que a liberdade tem como coluna fundamental a verdade. Ora, pois se a lei se transformou em algo totalmente "extrínseco" ao homem, e não apenas não lhe diz respeito, mas ainda lhe põe amarras de toda a ordem...

O fato é que essas quimeras fundamentais do liberalismo acirrarão a noção contratualista da lei (tão cara aos liberais de todas as cores, até hoje): desde que se respeitem os contratos entre as partes, e que estes estejam de acordo com a lei, tudo vale. Os indivíduos podem tudo porque são “livres”, e nenhuma autoridade externa tem o direito de coibir tal “liberdade”, salvo nos casos excepcionais em que o prejuízo ao próximo seja evidente. Neste contexto, vale lembrar outra definição de liberdade — igualmente lastimável para a história humana, por suas conseqüências tremendas. É a de Hobbes (outro precursor do liberalismo) no Leviatã: “A liberdade é a ausência de impedimentos externos, os quais muitas vezes tiram o poder de cada um de fazer o que quiser”.

(prossegue)

* Uma das tentativas de fazer da liberdade um transcendental do ser foi a do espanhol Leonardo Polo, na sua Antropología Transcendental. A idéia de Polo era estender o número dos transcendentais (ente, coisa, algo, uno, bom, verdadeiro e [para alguns] belo), incluindo entre estes a liberdade. Mas a tentativa naufraga, pelas razões que ainda veremos no blog.