terça-feira, 21 de setembro de 2010

As relações entre a inteligência e a vontade (VI): o pecado (1)

Sidney Silveira

O tomista R. Bernard, O.P., em artigo intitulado Le Peché, publicado em 1951, dizia que o pecado realiza-se numa atmosfera em que o espírito deblatera-se contra si mesmo. Não se trata, no caso, de uma simples ausência de pensamentos, ou da angustiosa coexistência de idéias contraditórias na alma, mas da falta dos verdadeiros e soberanos pensamentos que norteiam a vida humana e imprimem o seu caráter próprio. Em síntese, solicitado pelos apetites sensíveis, que são instrumentais em relação à vontade, o homem escolhe mal, quer dizer: escolhe contrariamente à regra da reta razão e à lei divina — da qual a lei natural é speculum.

É verdade que nem sempre a má-escolha decorrente de uma vontade corrompida provém dos apetites sensíveis; nos pecados mais graves, a vontade encontra-se em tal estado de hediondez que escolhe mal por simples vício espiritual. A inveja e a soberba são exemplos típicos desses pecados que se dão na parte superior da alma e não têm quase nenhum concurso com o corpo. A propósito, num espírito mais ou menos são, a inveja jamais poderá ser o impulso primeiro do apetite intelectivo, como quer-nos fazer crer bizarramente René Girard, com a “teoria” do desejo mimético, uma idéia dos infernos.

A psicologia do pecado refere-se, pois, à dinâmica relação entre os apetites naturais, sensitivos e intelectivos que há em nós. Faço a devida vênia ao fato de que me refiro aqui ao homem que já traz em si a mácula do pecado original, pois em Adão (como vários tomistas importantes sempre ensinaram, seguindo o Doutor Comum) o pecado aconteceu na esfera do espírito, dado que no chamado estado de inocência original todos os apetites sensitivos do homem estavam perfeitamente subordinados às potências superiores da alma. Em suma, não foi a apetecibilidade da maçã o que seduziu Adão, mas o querer ser como Deus. Portanto, tratou-se fundamentalmente de um pecado de soberba, e não de sensualidade.

Nascemos, pois, em pecado, com a liberdade diminuída e também com grande dificuldade para praticar o bem e conhecer a verdade. Decerto a vontade continua tendendo ao bem do espírito, mas os apetites sensitivos são atraídos de forma desordenada* aos seus fins imediatos. É claro que estou dando esta premissa por pressuposta, pois do contrário teríamos de mudar o foco do assunto; mas, como dizia Chesterton com o seu humor típico, a única coisa cientificamente comprovada de forma inequívoca é o pecado original, ou seja, essa tendência universal dos homens às mais inimagináveis barbaridades.

Pois bem: se o telos da inteligência é mesmo a verdade, e o da vontade é o bem, o pecado pressupõe uma deficiência nas relações entre a inteligência e vontade. Mas que deficiência seria esta? Seria anterior ao ato pecaminoso ou concomitante com ele? Seria voluntária ou involuntária? Tal deficiência seria já pecado? Todas estas questões foram abordadas por Santo Tomás em diferentes obras, e ele acabou encontrando uma deficiência anterior ao pecado atual no homem decaído — ou, noutros termos, potencial em relação ao pecado, embora ainda não seja, em si, pecaminosa.

O raciocínio parte da seguinte idéia: numa série de princípios subordinados entre si, a perfeição do princípio inferior depende da perfeição do princípio ativo superior (pois agens enim secundum agit per virtutem primi agentis). Ora, sendo o agente superior perfeito — e tome-se por perfeito o conceito de algo que, para ser o que é, não lhe falta nada —, o inferior também o será. Assim, se a vontade age sob a moção da inteligência quando esta lhe propõe o bem próprio, a ação será reta. Ocorre que a inteligência pode errar na consideração do bem apreendido, e a isto os melhores teólogos tomistas chamaram falso bem: o superestimar um bem em detrimento de outro mais excelente, em dado contexto. Neste caso, o pecado adviria porque a vontade seguiu a razão, como é natural suceder, mas seguiu-a naquilo em que ela simplesmente errava. Aqui a desordem do pecado é ex ignorantia, e não cum ignorantia: a primeira delas é a ignorância que não é pecado, mas induz a ele, e a segunda é a ignorância em si mesmo pecaminosa, relativa às coisas que o homem pode e deve saber.

Como se vê, a deficiência na inteligência (anterior à vontade que adere ao mal) é a ignorância involuntária, como nos leva a concluir o Aquinate em seu Comentário à Ética de Aristóteles, Livro III. Aqui, a ignorância é causa acidental do pecado. Por exemplo: o sujeito vê um líquido colorido e imagina que é um licor, mas se trata de um veneno. Toma-o ignorando a verdade, e se dá mal. Ele bebe o líquido simplesmente porque não sabe tratar-se de um veneno. Se soubesse, a beleza da cor não excitaria o apetite de beber, como diz o dono deste exemplo (o tomista português Celestino Pires, S.J.), no estupendo Inteligência e Pecado em S. Tomás de Aquino. Neste caso, a causa acidental indireta foi a ausência da regra da razão, coisa que a propósito não acontecia com Adão, cuja inteligência chegava muito mais perfeitamente à posse dos inteligíveis que a nossa; além do mais, possuía ele o dom da ciência infusa com que Deus o cumulou.

(continua)

* A ordem é a disposição das coisas aos seus fins próprios, e a desordem, obviamente, a perda dessa orientação teleológica. No caso do homem que já nasce com a mancha do pecado original, os apetites sensitivos não mais se ordenam à realização do optimum do espírito: conhecer a verdade e querer o bem. Logram, portanto, os seus fins imediatos sem nenhuma ordem ao fim último.