terça-feira, 11 de agosto de 2009

Relações Igreja-Estado (V): ainda o “De Monarchia” de Dante


Sidney Silveira
Na belíssima edição bilíngüe (italiano/latim) do livro De Monarchia, de Dante, de 1843, digitalizada pela Universidade de Toronto, no Canadá, e disponibilizada na internet, lê-se o seguinte trecho, na introdução intitulada Considerazioni Filosofico-Critiche, assinada por Giovanni Carmignani — eminente jurista italiano da virada dos séculos XVIII para o XIX (autor, entre outros, do tratado Iuris Criminalis Elementa e de uma Teoria della Leggi della Sicurezza Sociale):

“Il Monarca dell’Allighieri non è il principe nuovo dell’Machiavelli: non è il Leviathan dell’Hobbes; un despota il quale fa pesare uno scetiro di ferro sopra un mucchio di schiavi: non è un uomo inebriato del suo potere e della sua forza, il quale ne abbia fatto il suo solo criterio, e dica, come un fastoso monarca giá disse: — Io stato son io. Il Monarca dell’Allighieri non è niente piú che un magistrato supremo in una repubblica di più stati indipendenti tra loro. In fatti egli chiamó repubblica la forma que egli proponeva alla Monarchia. Il Monarca governa con leggi fondamentali ed è il ministro di tutti”.

A esta benévola interpretação do Prof. Carmignani podemos dar um pequeno desconto: como homem da primeira metade do século XIX, ele não viu os ideais do liberalismo maçônico se apossar de todo o Ocidente, após a Revolução Francesa; não viu o comunismo, filhote histórico do liberalismo; não viu a ONU, cuja atuação, pelo menos em tese, se aproxima do que seria a do supermonarca de Dante; não viu a débâcle do Magistério da Igreja, que hoje em algo se assemelha a esse imperador (magistrato supremo che solo governa con leggi fontamentali), pois abriu mão de pôr às claras as primícias doutrinais que recebeu do próprio Cristo, restringindo-se à função de reitor de um “diálogo” que apenas discute pontos concernentes à lei natural, e, quando fala da lei divina custodiada pela Igreja, muitas vezes é para equipará-la à de outras religiões; etc.

Eu disse um “pequeno desconto”, e me explico. Por outro lado, tinha o Prof. Carmignani séculos de documentos do Magistério eclesiástico à mão, para saber que, desde Gelásio I (papa de 492 a 496)*, a autonomia do poder material em relação ao poder espiritual sempre fora publicamente condenada pela Igreja, de forma solene, inequívoca — pois representaria, analogamente, algo como a separação entre o corpo e o princípio superior que o sustém (bem diz o Padre Calderón, num de seus livros: “A Cidade sem a lei de Cristo é pasto de demônios santarrões”); conhecia o Prof. Carmignani os porquês filosóficos e teológicos da inclusão do livro de Dante no Index; tinha o Prof. Carmignani instrumentos suficientes para saber que o reinado político do Monarca universal dantesco — autônomo em relação ao gládio espiritual da Igreja — jamais poderia ser altruísta, como nos quer fazer pensar Dante, mas, ao contrário, transformar-se-ia no mais despótico de todos os reinados (e aqui, para não misturar as estações, nem é preciso aduzir como elemento corroborante a natureza decaída pelo pecado original; basta o simples bom senso); etc.

Ao contrário do que parecia pensar o Prof. Carmignani, há, entre o De Monarchia de Dante, O Príncipe de Maquiavel e o Leviatã de Hobbes um parentesco muito maior do que, a princípio, se poderia imaginar: à sua maneira, cada um deles forja uma ética anticristã — baseada ora no mais tosco contratualismo secularista (Hobbes), ora num pragmatismo político laicista (Maquiavel, para quem no máximo convém ao Príncipe fingir ser piedoso), ora num imperialismo mundanizado, de cunho naturalista, que firmemente diz “não” à ordem sobrenatural da Graça (Dante).

O racionalismo no qual Dante funda a sua Civitas (ver De Monarchia, III) representa, na prática, uma frontal recusa à autoridade espiritual — aquela que, nas lapidares palavras da Igreja, frisava o seguinte, tendo como base a Sagrada Escritura: Omnis potestas a Deo venit.

* As modernas interpretações liberais da Carta de Gelásio I ao Imperador Atanásio I — importantíssima fonte histórica e magisterial — distorcem totalmente a letra e o espírito daquele magno documento papal. Querem convencer-nos de que o papa separou os poderes espiritual e temporal simplesmente por tê-los identificado com clareza. Na edição do De Monarchia que tenho comigo, por exemplo, o apresentador do texto chega a dizer que Dante, ao separar os poderes espiritual e material... recuperou a doutrina de Gelásio I!!!!. Pelo amor de Deus!

Veja-se o que ali diz o papa:

“Há dois poderes, augustíssimo Imperador, pelos quais está regido o mundo: a sagrada autoridade pontifícia e o poder régio. Deles, o primeiro é muito mais importante, pois os homens, inclusive os reis, prestarão contas perante o Tribunal Divino. Pois saiba, clemente filho nosso, que embora ocupes o lugar da mais alta dignidade entre os homens, em tudo deves submeter-te fielmente àqueles que têm a seu cargo as coisas divinas e defendê-los, tendo em vista a tua salvação”. (Patrologia Latina Migne, t. LIV, col. 42).