sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A verdade: o modo próprio de adequação entre a inteligência e as coisas

Sidney Silveira

A verdade é a adequação entre a inteligência e as coisas, diz Santo Tomás na esteira do filósofo Isaac Israeli. Mas o que se quer dizer exatamente com isto? Bem, neste trecho de aula frisava eu que a verdade:


a) é uma relação ontológica;

b) é uma relação categorial;

c) pressupõe um ente real extra mentis;

d) está primordialmente nas coisas, como fonte;

e) está formalmente na inteligência;

f) é o objeto [no caso, formal terminativo] dos movimentos da inteligência.


Noutras palavras, a verdade na inteligência tem como causa material o ser das coisas. Sendo assim, pode-se perfeitamente dizer, com a escola tomista, que a verdade deve-se considerar em duplo aspecto: transcendental, no ente; e formal, na inteligência. Com relação à verdade transcendental, que não é outra coisa senão o ente real mesmo, vale dizer que ela é anterior à verdade no intelecto humano, e posterior à verdade no intelecto divino — que é o seu modelo, a sua causa exemplar. Em suma, o intelecto humano, para laborar, precisa alimentar-se do ser das coisas, que por sua vez provém do intelecto divino. Tendo isto em vista, Santo Tomás nos presenteia com este achado: “A verdade está propriamente no intelecto, seja humano ou divino, assim como a saúde está no corpo do animal” (De Veritate, I, a.4)


Remetamo-nos agora ao que diz o Aquinate sobre o conceito de idéia, pois é a propósito do que se afirmou da causa exemplar e do que se dirá abaixo: “O que em grego se chamou idéia, em latim se chama forma; daí que entendamos por idéia a forma das coisas existente fora das coisas mesmas. E a forma de uma coisa existente fora da coisa pode ter duas funções: ser modelo (exemplar) daquilo de que é forma; e ser princípio de conhecimento, e assim se diz que a forma do cognoscível está no cognoscente” (Suma Teológica, I, Q,15, art. 1, resp).


Por esta razão afirma Juan Cruz Cruz em sua ótima apresentação a um trecho do Cursus Theologicus de João de Santo Tomás (I, q. 22), publicado recentemente pela EUMSA, que a verdade transcendental tem uma dupla relação de conformidade: uma vertical, de dependência direta do intelecto divino, ou seja, das idéias na mente de Deus; e outra horizontal, de conveniência com o intelecto humano, na medida em que dá a este o seu insumo elementar. Diz a propósito o filósofo espanhol: “A relação de adequação que as coisas criadas mantêm com o intelecto divino corresponde a uma conformidade passiva, no sentido em que recebem dele a norma, a medida e a causalidade, donde brota uma relação de intrínseca dependência interna”. E podemos nós completar ressaltando que a relação de adequação que elas possuem com o intelecto humano é de identidade formal.


Reiteremos, para gravar bem o conceito: no intelecto humano, a verdade é a forma (species) inteligível imaterial da coisa conhecida, abstraída das propriedades da coisa; e, no intelecto divino, é a causa exemplar dos entes, a idéia divina sem a qual as coisas sequer existiriam. Neste contexto, não custa frisar que, para o Aquinate, Deus quando pensa, cria a coisa pensada; o homem quando pensa, abstrai; o anjo quando pensa, intui; e os animais irracionais, não tendo potências intelectivas, não conseguem transcender à materialidade das coisas, e, por esta razão, embora existindo entre coisas verdadeiras (verdade transcendental), não têm acesso à ratio veritatis (verdade formal).