sexta-feira, 7 de novembro de 2008

A liberdade liberal (II)



Sidney Silveira
Apontamos, no texto anterior, algumas características dos conceitos de liberdade e de lei na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 (primeiro grande rebento “legislativo” da nova ordem estabelecida pela Revolução Francesa), como, por exemplo, a pressuposição de que a liberdade humana se autodetermina — e, justamente por esta razão, será considerada pelos liberais como o princípio e o fim da vida em sociedade*. Ponhamos, pois, a lupa nalguns outros artigos desse primeiro "decálogo" da liberdade moderna — o tão esperado catecismo cívico de Rousseau (espécie de secularização dos mandamentos divinos que o autor do Contrat Social não viveu para ver aclamado), o qual foi divulgado, premeditadamente, com uma clara imitação das sagradas “tábuas da lei”, como a que vemos acima —, e avisemos desde logo: qualquer semelhança, de forma ou de perspectiva, com o que os liberais defendem hoje sobre este tema não é mera coincidência.

No artigo 6º desse monumento político àquilo que se presume ser a liberdade humana, lê-se o seguinte:

A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através de seus representantes, para a sua formação” [“sua” da lei, diga-se].

Aqui, vemos já uma radical inversão: a lei transformou-se em expressão da vontade (e não da razão!!), e a vontade passou a ser concebida como um poder. (“A liberdade é o poder de fazer o que eu quero”, dizia Voltaire, outro ícone do período). Neste horizonte, a vontade geral de que fala o documento não é outra senão a vontade da maioria dos indivíduos consagrada na forma da lei. Assim, se a maioria for a favor do aborto, por exemplo, este se transformará em lei. Se a maioria for a favor do casamento entre homossexuais, este se transformará em lei. Aqui, cabe dizer: quanta diferença em relação à concepção tomista de que a lei é um produto da razão (e não a expressão da vontade!!), e a razão é a régua (do lat. regula) que mede o que se deve ou não se deve fazer em vista do melhor, que é um bem! Nesta última visão, o aborto, que a razão nos mostra ser intrinsecamente mau, jamais poderá transformar-se em lei (sendo esta uma medida da razão), ainda que a absoluta maioria da população seja a favor dele. Na visão liberal, o bem e o mal objetivos, materializados nas ações humanas — como por exemplo no que se refere à prática do aborto —, são postos de lado em favor da vontade da maioria. E é esta última que deve ser respeitada, em detrimento de quaisquer outras coisas; afinal, as pessoas são intocavelmente livres na expressão das suas vontades.

E é isto mesmo: os indivíduos cuja maioria dará forma à lei não podem ser “coagidos”, como se lê no artigo 11º da Declaração: “A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do Homem [com “H” maiúsculo mesmo, no original francês!]; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever e imprimir livremente, respondendo todavia pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei”. E no artigo 10º: “Ninguém pode ser molestado em suas opiniões, incluindo as religiosas, desde que a sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei”. Ora, se quiséssemos fazer aqui uma brevíssima pesquisa nos sites dos liberais tupiniquins, encontraríamos, com diferentes formulações, essas mesmas idéias da Declaração. Idéias, a propósito, também defendidas pela maçonaria há 200 anos.

Assentadas tais bases, o jogo da política não poderá ser outro senão o da luta intestina pela conquista da opinião da maioria dispersa e disforme por minorias organizadas e intelectualizadas, as quais têm objetivos claramente definidos. E, a partir de então, dois lados historicamente mostrarão as suas garras: os comunistas e os liberais, ambos inimigos mortais da Igreja; ambos condenados solenemente por seu Magistério.

(prossegue)

* No estupendo livro “A Política em Aristóteles e Santo Tomás”, o filósofo Jorge Martínez Barrera mostra que a liberdade não pode ser formulada como o fim, numa sociedade que se queira moralmente aperfeiçoadora, pois, se fazemos dela o ideal da comunidade política, esta se põe em situação de perpetuamente mudar as leis — independentemente da sua bondade ou maldade intrínsecas.
Em tempo1: Nas sociedades antiga e medieval, a idéia de liberdade jamais esteve conceitualmente apartada da de dever. E não poderia ser diferente, pois a lei não era concebida como a expressão da vontade, mas sim da razão em vista do bem comum, que, na visão liberal, inexiste.
Em tempo2: O verdadeiro e o bom (dois dos transcendentais do ser, alcançáveis pela inteligência e pela vontade, respectivamente) jamais voltarão a ser, após o advento do liberalismo propagandeado pela Revolução Francesa, o fundamento das leis, seja na teoria ou na prática. A única autoridade intocável, no plano político, passará a ser a vontade da maioria.
Em tempo 3: No decorrer da presente série e também da série Pensamento mágico e bom senso, que o Carlos está escrevendo, veremos se a frase (atribuída por alguns a Churchill, outro ídolo dos liberais) “a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais” faz algum sentido.
Em tempo 4: Repararam o símbolo maçônico posto acima destas clássicas "tábuas das leis" liberais? A título de mera curiosidade, é o mesmo olho do Grande Arquiteto do Universo que está, também, na nota de 1 dólar... A propósito, que Voltaire e Rousseau eram maçons (ou no mínimo "simpatizantes ativos", o que, para alguns, era o caso específico de Jean-Jacques) é algo que os biógrafos sérios de ambos os iluministas não negam. E Montesquieu, idem.