Sidney Silveira
“Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo”, diz São Paulo na Epístola aos Filipenses (III, 17). Com esta simples frase remete-nos o Apóstolo a uma grande verdade: no que tange às operações de suas potências superiores (a inteligência e a vontade), o homem precisa de modelos para aperfeiçoar-se. Em resumo, ninguém se faz sozinho, nem mesmo os gênios — razão pela qual tanto as virtudes intelectuais como as morais precisam de um esteio seguro, de um ponto arquimédico onde apoiar-se. Um grande matemático, por exemplo, não chega ao seu ápice sem conhecer o melhor da ciência que estuda, e, portanto, do que produziram os grandes matemáticos; um homem virtuoso não chega a sê-lo se não teve um modelo, em algum momento de sua vida. Afinal, que temos nós que não tenhamos recebido?
Tendo isso em vista, o seguinte raciocínio pode ser proposto: ou a formação intelectual e moral dos povos se dará a partir dos exemplos de virtude, ou, excluindo-se estes do horizonte, não se lhes restará senão a barbárie, em suas mais loucas e plurifórmicas manifestações. É neste contexto que vale a máxima “a corrupção do ótimo gera o péssimo” (corruptio optimi pessima est). Os ótimos, aqui, são justamente a elite espiritual que deve servir de espelho para o desenvolvimento da sociedade humana. No caso do mundo cristão, o ótimo não é outro senão a suma perfeição de Cristo, e, por derivação, a dos santos que O imitaram. É a Boa Nova projetada sobre a comunidade humana, que a orienta à excelência.
A propósito, esta é, basicamente, a diferença entre os Espelhos de Príncipes, estupendo gênero literário que educava os governantes para as virtudes, durante a Idade Média, e o Príncipe de Maquiavel, compêndio de diabólicos conselhos que ensinavam o governante a mentir para manter-se no poder a qualquer custo. Um tentava preservar o ótimo; outro o degenerou em péssimo. Se, pois, a política atual transformou-se numa invencível porcaria, onde a virtude é simplesmente impossível no plano social, é porque mesmo os melhores e mais capazes políticos são maquiavélicos, e o são, entre vários outros fatores (que não há como abordar neste breve texto), porque a democracia tende à demagogia como a seu fim próximo imediato. Corruptio optimi pessima est. Infelizmente, no mundo atual, seja à direita ou à esquerda, ninguém tem coragem de confrontar a deusa democracia, fundada numa falsa — e liberal — noção de liberdade.
Não havendo, pois, regime de governo perfeito neste mundo, dada a nossa condição de pecadores, de homo viator, de peregrinos à Pátria Celeste, é conveniente ao católico aderir a um que pelo menos não se transforme num empecilho para a realização do bem comum, tomado não apenas em sua dimensão meramente material, mas também noético-espiritual (de acesso às verdades naturais mais importantes e, também, às verdades sobrenaturais). E aqui, como se trata daquilo que os grandes teólogos da Igreja chamaram de matéria opinável — ou seja, a princípio não sujeita ao rigor do Dogma —, cada um pode muito bem apresentar as razões de sua anuência a este ou a aquele regime político. No meu caso, por princípio adiro à premissa de que apenas a Monarquia católica pode aproximar-se, embora assintoticamente, da realização de um bem comum político que sirva de instrumento para o Bem perfeito (ao qual todos nós tendemos, consciente ou inconscientemente): Deus. E se a Monarquia católica hoje tornou-se impossível no mundo, este é outro assunto. Lembro que estamos falando de princípios; a sua aplicabilidade, ou não, em dado contexto histórico é coisa distinta da que tratamos aqui. Já a abordamos em outros textos no blog.
Na Monarquia católica, o governante bem formado pelo Catecismo e pela doutrina magisterial do Evangelho custodiada pela Igreja saberá que o poder político tem os homens como mera causa material instrumental, e Deus como causa formal, pois aprendeu que “todo poder provém do Alto” (cfme. Jo., XIX, 11). O rei católico pode sem dúvida dramaticamente cair, pode corromper-se até a hediondez, por não seguir os preceitos evangélicos, o que certamente trará reflexos imediatos para o seu governo; mas ainda nestes casos saberá que peca, o que lhe deixará uma brecha para emendar-se e, assim, reorientar os atos do seu governo. É claro que estou dando aqui por pressuposta a tese de que, no homem, a corrupção dos hábitos operativos da alma (à qual Santo Tomás chama vício) acarreta um duplo declínio nas ações oriundas da razão prática: declínio ético e, por conseguinte, político*. Para provar a tese seria preciso um curso inteiro de filosofia política, em que todas as premissas fossem explicitadas, e delas extraídos os seus corolários necessários.
Certamente estamos falando de um plano ideal, eidético. De um modelo para o melhor governo possível. Um modelo que não impeça, em hipótese alguma, a educação para a virtude e a conseqüente imitação do bem — tendo este último como causa exemplar os homens que buscam a santidade. Um regime que não dê às costas ao que diz o Apóstolo, com perfeita ciência das implicações de sua afirmação: "Sede meus imitadores". Ou seja: que propicie a imitação do bem na maior escala possível, com o intuito de evitar o caos social e o aumento da maldade em progressão geométrica, fatos a que hoje assistimos atônitos.
* Nunca é demais registrar que esta premissa está a zilhões de anos-luz do leitmotiv liberal, segundo o qual a ética e a política estão formalmente separadas, como paralelas que nem mesmo no infinito se encontram. Na visão clássica de Aristóteles — seguida neste ponto de perto por Santo Tomás —, uma pessoa não se torna política para, depois, tentar ser ética, mas ao contrário: o exercício da política já pressupõe a posse habitual das virtudes éticas. Como costuma dizer o Prof. Carlos Nougué, uma Comissão de Ética no Senado, como a que há em nossa Casa Legislativa, por exemplo, só poderia tornar-se realidade num mundo loucamente liberal, para o qual a ética é questão de foro privado e a política se refere tão-somente ao exercício do poder, e das coisas a ele relacionadas.
Em tempo: Quando friso ser monarquista por princípio, quero dizer com este itálico que mesmo neste regime não creio ser possível a realização do bem comum se não se derem algumas precondições fundamentais. Um exemplo dos escolhos a evitar: sabemos que a Monarquia brasileira teve, desde sempre, ligações com a maçonaria (vejam-se os casos de Pedro I e Pedro II, e de alguns próceres dos seus respectivos governos), o que explica o fato de desde os seus primórdios trazer ela o gérmen da própria dissolução, pois embora parte da maçonaria fosse, no começo do século XIX, a favor de uma Monarquia constitucional, a outra, mais forte, era a favor da proclamação da República; esta última tinha a seu lado o peso de uma verdadeira conspiração internacional contra o Estado católico. Nisto, a propósito, consistiu a Revolução Francesa, como se pode ver nesta aula magna do Prof. Fedeli.
Quando, pois, digo Monarquia católica, refiro-me com a expressão a uma forma de governo que segue os ditames da Igreja, sem concessões a seus inimigos materiais ou espirituais.