terça-feira, 24 de março de 2009

Predestinação à salvação (III)

Sidney Silveira
Noutro mini-artigo
desta série — iniciada a pedido de uma amiga portuguesa de Braga —, a predestinação à salvação ficou muito bem enquadrada no plano da Providência Divina, como um dos modos desta. Mas é importante frisar que se trata do modo mais elevado da Providência, pois na predestinação se realizam os dois atos supremos da vontade divina: a justiça e a misericórdia. Assim, se alguns se perdem é porque Deus quis manifestar um bem maior (a Sua justiça), e se alguns se salvam é porque Deus quis manifestar outro bem maior (a Sua misericórdia). Como diz Garrigou-Lagrange no estupendo La Synthèse Thomiste, Deus quer, como fim, manifestar a Sua bondade — e julga e escolhe os meios adequados a esse fim superior. E isto se dá ao modo de imperium, ou seja, pressupõe dois atos eficazes livres e imperiosos da vontade divina: a intenção e a eleição. De acordo com Santo Tomás, a predestinação — modo mais elevado da Providência Divina — consiste formalmente nesse imperium em dois atos (leia-se, entre outros, Suma Teológica, I, q. 22, 1, ad. 1). A propósito, o Aquinate observa reiteradas vezes em sua obra que Deus, desde a eternidade, escolhe, por dileção, quem será salvo. E como a Sua vontade se cumpre infalivelmente** — e Ele tem a presciência dos contingentia futura —, também conhece o Criador o exato número dos inscritos no Livro da Vida, assim como dos réprobos que, neste mundo, morreram e morrerão na chamada impenitência final.

Algo que os teólogos modernistas não suportam, pois a visão de mundo liberal já os impregnou com o seu bafio nauseante, é isto: não há, em sentido estrito (simpliciter), méritos humanos em ordem à salvação. Ou, noutras palavras: a salvação é anterior aos méritos humanos, não obstante Deus queira a nossa colaboração com a Graça — mas não a quer, diga-se, como uma espécie de precondição ontológica necessária prévia, pois o mais não depende do menos para realizar os seus atos próprios. Ademais, se assim fosse, só os que foram justos e corretos nesta vida se salvariam (e, como já se disse no blog, o Bom Ladrão seria o primeiro a estar fora desse plano salvífico). Em resumo, tudo o que há no homem orientado para a salvação já é efeito da predestinação (incluída aí a disposição para a humana colaboração com a Graça).

Não obstante isto, de acordo com Santo Tomás, as orações dos homens santos e as boas obras podem ajudar no cumprimento da predestinação. Diz o Aquinate: “Deve-se dizer que, no tocante à predestinação, precisamos ter dois aspectos presentes: a predestinação mesma e os seus efeitos. Com respeito ao primeiro aspecto, a predestinação de nenhum modo pode ser ajudada pelas orações dos santos, pois, pelas orações não se consegue que alguém seja predestinado por Deus. Com relação ao segundo modo, deve-se dizer que a Providência é ajudada pelas orações dos santos e pelas boas obras, porque a Providência — da qual a predestinação é parte — não anula as causas segundas, senão que provê seus efeitos de tal forma que inclusive as causas segundas entram em Sua Providência”. (cfme. Suma Teológica, I, q. 23, a. 8, resp.)

Em síntese: na perspectiva do predestinante (Deus), não há méritos humanos em ordem à salvação; na perspectiva dos predestinados (nós, homens), há méritos, sim, mas apenas ao modo de causas instrumentais segundas já inseridas na causa primeira: a eleição divina que subministra, infalivelmente, todos os meios da Graça eficaz.

** Ao escrever que a vontade de Deus se cumpre infalivelmente, nunca é demais relembrar a distinção entre Graça suficiente (que depende da vontade divina antecedente ou condicional) e Graça eficaz (que depende da vontade conseqüente, absoluta e não-condicionada). A primeira é
possibilitante e a segunda, necessitante. Sem a compreensão desses dois modos da Graça e de seus correspondentes na vontade divina, não se pode nem sequer chegar a este problema teológico. De toda forma, também cumpre dizer que se trata de um mistério — em si mesmo — impenetrável e irresolvível nesta vida. Dele poderemos, no máximo, ter uma aproximação assintótica e imperfeita. Toda vez, na história da Igreja, que alguém tentou ir além do que a razão pode efetivamente alcançar, caiu em heresia.
(continua)