quarta-feira, 18 de agosto de 2010

A circunstância da recusa às evidências


Sidney Silveira
Em Teologia Moral, chama-se “circunstância” ao que literalmente circunscreve o ato humano — denotando com isto ser algo extrínseco a ele. Noutras palavras, moralmente a circunstância é acidental e, por isso, muitas vezes não especifica o ato. Assim, nada muda se alguém mata pelas costas uma pessoa vestida de branco ou de azul, nesta rua ou naquela, pois tais circunstâncias não alteram a espécie hedionda do ato. Noutras vezes, porém, embora o seu influxo seja ab extrinseco, a circunstância não apenas muda a espécie do ato, mas o piora. Assim, quem atira num coelho e mata um homem, mesmo sem intenção de fazê-lo, comete homicídio (culposo), e quem subtrai para si um objeto sagrado por causa do ouro comete não apenas furto, mas também sacrilégio. No De Malo (q, II, art. 8, sed contra), afirma Santo Tomás que a circunstância está para o pecado assim como o acidente está para o seu sujeito, e, em resumo: ela pode ser agravante ou não; pode especificar o ato ou não.

O ato propriamente humano, realizado pelas duas potências superiores da alma (inteligência e vontade), pode ser bom, mau ou indiferente. Isto dependerá tanto do objeto que o move, como das circunstâncias em que esse movimento se dá. Fazer exercícios regularmente para preservar a boa saúde, embora seja algo intrinsecamente bom para o homem, moralmente é um ato indiferente, pois o não fazê-lo de forma regular, sobretudo se as circunstâncias de vida não permitem, não é em nenhum sentido condenável. No entanto, fazer exercícios em quantidade exagerada para tornar-se sexy muda a espécie do ato por duas razões: tanto pelo objeto que move à ação, como pela circunstância (no caso, material) que faz uma pessoa ficar horas e horas exercitando hedonisticamente o corpo. A propósito, muitas vezes esses tipinhos fortões têm os neurônios esquálidos, por falta de uso...

A coisa, como se vê, é complexa. Há incontáveis matizes que especificam os atos humanos, mas também há as circunstâncias que os agravam ou atenuam, que os fazem melhores ou piores.

Pois muito bem. No plano moral, a atitude dos católicos em relação à crise doutrinal que hoje acomete a Igreja pode ser boa, má ou indiferente (falaremos apenas das duas últimas). Depende não apenas do que os move a agir desta ou daquela maneira, mas também das circunstâncias — e uma em particular: o grau de conhecimento com que se leva a ação a cabo. Por exemplo: um católico que não teve a oportunidade de adquirir boa formação básica (refiro-me à doutrina tradicional) certamente não tem culpa moral disto — neste caso, a culpa é dos homens da Hierarquia eclesiástica —, embora esteja ele na mesma circunstância dos que tiveram alguma formação e preferiram embarcar no modernismo: ambos estão correndo risco maior de perder-se por não darem anuência à integralidade da fé, pois o veneno não muda a sua eficácia se alguém o toma pensando que é remédio ou se o toma querendo matar-se. Mas o fato é que a adesão de cada um deles ao modernismo é, do ponto de vista moral, muito distinta.

Por sua vez, o católico a que chamamos neoconservador, que estuda o Magistério, que estuda filosofia e algo de teologia (esta última, desde que não agrida a susceptibilidade liberal-ecumenista contemporânea), mas ainda assim prefere dizer que nada mudou essencialmente — o chamado "hermeneuta da continuidade" —, comete um ato moralmente mau na medida em que não quer aceitar algo evidente, mesmo quando a inteligência o demonstra eloqüentemente ao aplicar o indeclinável princípio da não-contradição.

Muitas vezes, o neoconservador tem dois discursos: um externo, em que afirma que nada mudou; e outro interno (dentro do grupo católico a que pertence, seja qual for), em que fala abertamente dos absurdos atuais, mas sem querer ver a sua relação com a mudança no essencial da doutrina.

É o sujeito que possui todas as evidências, tem todas as premissas, mas recusa-se a completar o silogismo. Prefere a atitude do “não quero saber e tenho raiva de quem sabe”.

P.S. Fiz menção acima ao De Malo e informo o seguinte: graças às pessoas que, nestas duas semanas, adquiriram alguns livros da Sétimo Selo, estamos fazendo a reimpressão desta obra, e na próxima semana voltaremos a atender aos pedidos por ela. É claro que falta muito, muitíssimo, para o projeto ter a velocidade que a sua importância civilizatória exige. Por isso reitero: continuem comprando os livros, amigos católicos, para que esta iniciativa não morra por inanição...