terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Um sombrio arremedo: ainda Girard

Sidney Silveira
A intimidade de uma pessoa é constituída por um amplo universo psíquico interior que inclui, entre outros aspectos (como por exemplo a rememoração dos fatos passados, a imaginação de futuros possíveis, etc.), a autoconsciência e a consciência das coisas. Esses dois atos conscientes dão-se, segundo Santo Tomás, graças à capacidade do intelecto humano de fazer a “volta completa”, ou seja: conhecer e conhecer-se num só ato da inteligência. Em linguagem tomista, a alma, entendendo uma coisa qualquer, entende-se a si mesma (se ipsam intelligit); reconhecendo algo, reconhece-se e reconhece, também, o ato pelo qual é capaz de reconhecer. No caso humano, trata-se, portanto, de consciência reflexa (uma ida às coisas e um retorno a si mesma), e jamais “autônoma”, como querem alguns liberais — e na verdade nem poderia ser diferente, pois, para ser “autônoma”, a consciência precisaria emancipar-se totalmente das coisas, dos entes reais, o que é uma pretensiosa quimera, e não uma teoria para ser levada a sério por filósofos dignos deste nome. A experiência torna evidente que, ao conhecer qualquer ente, o homem identifica-se como diferente dele, no ato. Em suma, trata-se de um ato consciente no qual — como diz o filósofo espanhol Juan Cruz Cruz, num ótimo livro — há dois pólos: autopresença e presença de algo.

Todas as coisas que queremos, queremo-las como boas em si e porque esse “em si” é bom para nós, de algum modo. Neste ato da vontade estão implicadas tanto a autoconsciência como a consciência direcionada ao exterior. E assim são as pessoas psicologicamente saudáveis: querem algo bom em si, e o querem para fruí-lo da melhor forma. Por aí já se começa a vislumbrar que a liberdade não se pode dar na consciência, e sim na vontade, da qual a consciência é apenas o invólucro. Assim, ter consciência disto ou daquilo é um fato, mas querer isto ou aquilo, escolher, é muito mais: é um ato do nosso livre-arbítrio — o qual é potência da alma, como demonstra Santo Tomás na questão de seu monumental De Veritate intitulada De Libero Arbitrio (art.4). Vejamos um exemplo prosaico: ter consciência e pleno entendimento de que o futebol é um jogo com tais ou quais regras, é uma coisa; querer jogá-lo, escolher jogá-lo, é outra mui diversa. No primeiro caso, ao tomar consciência de quais são as regras do jogo, não sou livre para ter consciência de que sejam de outra maneira, porque elas são o que são independentemente de eu ter ou não consciência delas. Não há, aqui, liberdade em sentido estrito, mas somente atualização de uma potência da alma racional. Dito assim, parece tão simples que nos espanta ver como homens presumivelmente inteligentes, como David Hume, não conseguiram enxergar esse óbvio ululante*.

A consciência é apenas um dos aspectos da intimidade de uma pessoa; e é íntima por ser imaterial. Mas este não é o único aspecto da nossa intimidade, nem o mais elevado. A nossa riqueza interior consiste em atos muito mais nobres do que simplesmente o de ter consciência de nós mesmos e das coisas. E o mais nobre, proveniente de nossa mais recôndita intimidade, não pode ser outro senão o ato do amor, ato libérrimo porque é pura e simples doação. A propósito, esse ato humano mais nobre é, também, o que nasce na região mais íntima do nosso ser: a vontade, que, neste caso, em seu ato mais perfeito, se move numa espécie de êxtase, num sair de si arrebatador em direção à coisa e/ou pessoa amada, livre. Caminhemos com os exemplos, para ir clareando o caminho: ver um sujeito indigente na rua e ter consciência de sua condição miserável é uma coisa; compadecer-se de sua situação e ajudá-lo é algo muito, mas muitíssimo superior. Por aí se vê que a consciência não pode ser o fim da ação propriamente humana (que implica as nossas potências intelectiva e volitiva), mas apenas a bitola, o trilho pelo qual as ações propriamente humanas se dão — já que todas elas são conscientes, ou seja: tudo o que entendo e tudo o que quero se dá de forma consciente, em algum grau, mas nem tudo de que sou consciente move a minha vontade. A consciência individual (tão idolatrada por liberais de todas as cores!) é, pois, um instrumento da ação humana, mas nunca, jamais, o seu fim ou a sua razão de ser.

Querer algo apenas como imitação do que invejamos, na presunção de que a posse dessa coisa querida nos transformará em pessoas diferenciadas, aos olhos das demais, como quer René Girard, só pode ser uma patologia porque perverte o movimento natural da vontade: o de ser movida por algo entendido como bom em si, para fruí-lo de alguma forma. Alguém na triste situação descrita por Girard seria capaz, por exemplo, de comer caviar mesmo odiando tal iguaria (a ponto de vomitar tudo depois), apenas porque julga que comer caviar pode fazer com que pareça importante ou diferente aos olhos das pessoas**. Um pobre-diabo em tal situação tem a consciência das coisas — e a sua conseqüente valoração — obliterada ou atrofiada, por ter uma consciência de si hipertrofiada. E hipertrofiada a tal ponto que parece ser ou estar independente do mundo real. “Autônoma”.

Não espanta que Girard seja divulgado ou propagado por "liberaiszões" ou "liberaiszinhos". A sua teoria do desejo mimético é a extata descrição do querer de um ego doentiamente inflado — mas com um detalhe: tido como algo “natural” em nós. É a descrição da liberdade que se transformou num sombrio arremedo, pela recusa de reconhecer o valor real de coisas e pessoas. Valor este que é proporcional à participação delas, em grau específicos, na ordem do ser.

* Ocorreu-me o famoso exemplo de Hume que, em seu ataque ao conceito tradicional de causalidade, diz-nos uma coisa incrível: quando uma bola de bilhar bate em outra, o homem não é capaz de identificar, no ato, que o movimento da segunda foi causado pelo da primeira, mas apenas perceber o choque entre elas. Se a base de sua gnosiologia fosse realista, ele jamais poderia dizer tal barbaridade. Mas, como bom construtor de um pensamento mágico, Hume prefere abandonar a realidade e buscar argumentos para a “conclusão” da qual de antemão partira. Por isso perpetra idéias como a seguinte: o anterior e o posterior não estão na realidade, mas apenas na mente do homem. Pindamonhangaba! Imaginemos um cirurgião cardiologista que acreditasse nisso: o entupimento de uma artéria que tivesse causado um infarto não estaria na artéria real do paciente, mas em sua cabeça...
** Aqui se faz necessária uma breve explicação acerca de como a vontade se movimenta, de acordo com a doutrina de Santo Tomás (a melhor que conheço, neste tópico). No caso que nos interessa, a primeira distinção a fazer é entre o objeto especificativo da vontade e o exercício dos atos voluntários. Pois bem: no tocante ao objeto que especifica a vontade, a total primazia é do intelecto — pois a vontade tende aos objetos apreendidos intelectivamente. Assim, se tal coisa é entendida como boa, a vontade tende a ser movida a essa forma de bem subministrada pela inteligência. Na prática, na maior parte das vezes a vontade não delibera sobre os fins, mas quer os meios para alcançar determinados fins. Por isso, os diversos atos do querer são todos determinados ou especificados pelos objetos a que se movem, entendidos como bons. De outra parte, com relação ao exercício dos atos voluntários, a vontade impera sobre si mesma, sobre o entendimento e sobre todas as demais potências, e esta é a região onde propriamente exerce a sua liberdade. Em termos simples, a vontade é de fato livre para querer ou não querer isto ou aquilo. Reiterando: é livre no exercício do querer. Mas, mesmo aqui, a liberdade é especificada pela forma de um bem (seja um bem real ou aparente, verdadeiro ou falso, mais ou menos digno, na ordem do ser). Assim, um suicida, embora cometa um mal contra si mesmo, comete-o sob a forma de um bem, que é a idéia de pôr fim aos seus tormentos; um assaltante que mate alguém para roubar, embora cometa um ato mau, tem a sua vontade movida pela forma de um bem: o dinheiro. O que essas pessoas não conseguem é aquilatar minimamente os bens e dar-lhes uma ordem que condiga com o grau de ser de cada um deles.

Um dos problemas da tese de Girard — dentre tantos que temos apontado! — é fazer dessa triste incapacidade para aquilatar os bens reais (na verdade, uma doença espiritual) algo intrínseco à nossa natureza, transformá-la num motor “natural” da vontade.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Sedevacantismo, ou uma conclusão à procura de premissas (II)

Carlos Nougué
Como disse no artigo anterior, “um aspecto desta série de artigos sobre o sedevacantismo é de minha exclusiva responsabilidade: o vinculá-lo ao que chamo 'pensamento mágico'
por qualquer inversão entre mente e realidade, entre causa e efeito, entre antecedente e conseqüente ou entre premissa e conclusão”. Mais que isso, porém: é sobretudo por este ângulo que tratarei o assunto, até porque o outro aspecto da série não só não é nem de longe de minha responsabilidade, mas está inteiramente contido em obras do Padre Juan Carlos Ceriani e do Padre Álvaro Calderón.

* * *

Diz Rubén Calderón Bouchet em El espíritu del capitalismo (Buenos Aires/Santander, Nueva Hispanidad Académica, 2008) que, quando o homem, “impelido pela soberba, se divorcia das evidências imediatas que o atam à realidade [...], inicia o caminho de uma separação que se irá tornando cada dia mais abismal e completa. A realidade toda acaba por ser absorvida pelo pensamento, e em seu lugar [ou seja, em lugar da realidade] cresce com a força de um vício o gosto pela quimera” (pp. 371-372). Em nossos termos (ver os primeiros artigos da série “Pensamento mágico e bom senso”), à força de tanto inverter causa e efeito ou antecedente e conseqüente, o pensamento mágico acaba por desfazer-se de toda e qualquer causa, ainda que equivocada ou ilusória, para ter por referência única a própria vontade. É essa a gênese das ideologias, cujo objetivo, como já vimos, são quimeras nos dois sentidos principais da palavra: puros produtos da imaginação soberba e verdadeiras monstruosidades, como, com efeito, o são o comunismo e a democracia liberal.

O que chamo de “reconstrução ideal da história” tem gênese algo diferente. Seu ponto de partida é uma conclusão que deriva de fato de uma premissa, mas uma premissa tênue: trata-se antes de uma espécie de impressão, resultante do choque de um ou mais dados da realidade contra determinadas convicções demasiado simplistas. Como porém tal premissa, por tênue, não pode satisfazer nem sequer aquele mesmo que a formula (para não falar dos demais), ele sai em busca de uma ou mais premissas mais sólidas para aquela conclusão, digamos, já pré-tirada. Ora, como toda essa operação é já, de per si, redutora da realidade, sucede que o formulador de tal conclusão pré-tirada não buscará em sua investigação mergulhar na complexidade do real, mas se aferrará como um náufrago à tábua de salvação de uma ou poucas coisas que lhe parecerão ser o centro, o eixo mesmo da realidade, ou seja, que lhe parecerão ser as sólidas premissas que buscava.

Naturalmente, não raro esta espécie de pensamento mágico está mesclada com outra ou outras. Assim, no pensamento liberal típico se misturam a inversão entre causa e efeito, a quimera e a reconstrução ideal da história. Com efeito, para o liberal típico a história se divide em dois períodos principais: a.L. e d.L, ou seja, antes da Liberdade e depois da Liberdade (propiciada pela revolução francesa e similares), assim como para o comunista a história se divide em três períodos principais (com algum sabor de ciclicidade): a sociedade sem classes primitiva, a sociedade de classes e a futura sociedade sem classes, que representará o fim da história e a instauração do paraíso terrestre. Como se vê, no primeiro caso a “luta pela liberdade” é o eixo em torno do qual a história sempre girou, gira e girará, enquanto no segundo a “luta de classes” é o motor que sempre impeliu e impele a história na direção inexorável de uma enteléquia imanente. Mas argüir-se-á: vocês, os católicos, também não reduzem a realidade a uma só coisa, ou seja, a Deus? Não e sim segundo o aspecto por que se olhe: não enquanto para nós Deus é absoluta transcendência e não uma imanência ao modo panteísta; mas sim enquanto Ele é o Ser por si mesmo subsistente, a Causa Primeira, a Causa das Causas, que como tal está presente em todos os seus efeitos, isto é, em tudo quanto é ente ou tem ser por participação do Ser.

Mas diga-se desde já que o tipo de reconstrução ideal da história que nos ocupa, o sedevacantismo, absolutamente não se confunde com o liberalismo nem com o comunismo, que são por essência anticatólicos, ao passo que o sedevacantismo, se se me permite um paradoxo à Chesterton, é “demasiado católico”... Ademais, o sedevacantismo não se constitui de mescla tão complexa quanto o liberalismo e o comunismo (embora seitas sedevacantistas claramente cismáticas como o “Palmar de Tróia” e a “Igreja Latina de Toulouse” pareçam ter também caráter messiânico e, pois, quimérico). Ele se restringe (ou quase, como o veremos) ao que se disse mais acima a respeito de uma conclusão em busca de premissas mais sólidas. Vejamos agora, porém, dois outros tipos de reconstrução ideal da história, mais simples, os quais por isso mesmo nos facilitarão o entendimento do tortuoso universo mental do sedevacantismo.

● Parece inequívoco que nenhuma forma musical se iguala ao canto gregoriano, e isso por três motivos principais: a) ele serve diretamente à liturgia católica, e, como diz Santo Tomás, aquilo que serve a algo que está mais próximo do fim último é superior simpliciter; b) tal porém tem um pressuposto, qual seja, o canto gregoriano é verdadeira arte, e verdadeira arte litúrgica; c) mas é mais adequado a seu fim que qualquer outra forma de verdadeira arte musical litúrgica. Uma coisa, todavia, é reconhecê-lo sem hesitação, e outra, muito diversa, é concluir, como o faz o grande escultor católico francês Henri Charlier (1883-1975) em L’Art et la pensée (Jarzé, Dominique Martin Morin, 1972), que o canto gregoriano é a “única” forma musical boa. Impressionado que está com o choque das demais formas musicais contra a sua convicção exclusivista da superioridade do canto gregoriano, sai em busca, para a sua conclusão, de premissas mais sólidas que aquela impressão e “encontra” uma, à qual se aferrará como a um suposto eixo único da realidade que o ocupa: o canto gregoriano é não só superior a todas as demais formas musicais, mas efetivamente é a “única” forma musical boa, por ser constituído de pura melodia, sem harmonia, e portanto por não estar limitado por nenhum esquema rítmico fixo. Passa-se então, conforme a esse eixo único, à reconstrução ideal da história da música ocidental: a partir do Renascimento, e especialmente durante o Barroco, a música naufragou por causa da invasão da harmonia e das amarras rítmicas. Mas ter-se-á esquecido Henri Charlier que toda a música anterior e concomitante ao canto gregoriano (a grega, a religiosa cortesã da Cristandade, etc.) não era composta de pura melodia, mas também de harmonia, e também era limitada por esquemas rítmicos fixos? Talvez ele não tivesse notícia das belíssimas Cantigas de Santa Maria, do Rei Afonso X, o Sábio. Ainda assim, contudo, não haveria como esquecer duas coisas que, todavia, nosso grande católico francês esquece: a) que o canto polifônico de Palestrina, Tomás Luis de Victoria, etc., reconhecido pelo Concílio de Trento e por tantos papas posteriores como umas das duas formas musicais litúrgicas próprias da Igreja (ainda que inferior ao gregoriano), já não era pura melodia, contando com harmonia precisamente pelo fato de ser polifônico; b) que o canto gregoriano (assim como o polifônico), arte verdadeira, e arte litúrgica verdadeira, é propriamente oração, e por isso se destina propriamente ao interior da igreja, à missa, aos ofícios das horas, etc. Ora, se assim é, seria ilícita a apreciação de música não litúrgica, quer a que louva a Deus mas não é própria para o interior da igreja, quer a que visa meramente, como dizia Bach, a recrear a alma dentro de justos limites? Seria ruim, em outras palavras, toda e qualquer música não litúrgica? Parece óbvio que não. Uma coisa é superioridade, outra exclusividade.

● Negar que a civilização cristã do Medievo foi o ponto alto da Cristandade é próprio dos modernistas. Sim, porque salta aos olhos que foi na Idade Média que mais os governantes se submeteram ao poder espiritual da Igreja; que mais a variedade das atividades humanas estava ordenada de alguma forma ao fim último do homem; que mais solidamente se desenvolveu a teologia e a filosofia, sobretudo com Santo Tomás de Aquino; que mais brilharam as virtudes naturais do homem, precisamente porque mais se conformaram às virtudes sobrenaturais ou teologais, infundidas por Deus mesmo; que mais efetivamente se combateram as heresias e se superaram as diversas formas de paganismo; etc., etc., etc. Uma coisa, porém, é reconhecê-lo sem hesitação, outra, muito diferente, é dizer ou que foi no Medievo que se deu a “verdadeira” Cristandade (e a Cristandade da Roma imperial, e a do período jesuítico pós-tridentino, e a do Império espanhol, etc., não serão manifestações da mesma Cristandade?), ou que o Medievo foi uma espécie de mítica idade de ouro do Cristianismo (e as quase ininterruptas lutas de reis contra a Igreja? e a constante luta desta contra arraigadas remanescências do paganismo bárbaro, como as justas, o direito de guerra, o ordálio, etc.? e a multidão de heresias? e a própria simonia? e o próprio nicolaísmo?). Estas são conclusões que se tiram de impressões semelhantes à que acabamos de ver com respeito à música, e que igualmente vão em busca de premissas mais sólidas. Neste caso, contudo, embora sempre se incorra no reducionismo típico desta espécie de pensamento mágico, são variados os resultados da busca. Atenhamo-nos a um deles – o que reduz a realidade da Cristandade posterior ao século XIII a uma suposta substituição progressiva, na alma dos católicos, do senso da fé por um senso de obediência de corte kantiano –, porque este resultado já conduz diretamente a uma forma de sedevacantismo, a qual, por um lado, é muito mais sofisticada e erudita que as mais conhecidas, mas, por outro, ainda mais radicalmente reconstrói de modo ideal a história.

(Continua.)

domingo, 28 de dezembro de 2008

René Girard, na terminologia tomista

Sidney Silveira
Costumo dizer o seguinte, para quem quer saber efetivamente algo sobre a natureza humana, quanto aos vícios e às virtudes: estude, na Prima Secundae da Suma Teológica, os tratados sobre os atos humanos (questões 6 a 21), sobre as paixões da alma (questões 22 a 48) sobre as virtudes em geral (questões 55 a 67) e principalmente o magistral tratado sobre os vícios e pecados (questões 71 a 89). Há ali uma condensação, um resumo das estruturas da psique humana incomparavelmente mais profundo do que muitas psicologias reducionistas hoje nos propõem. Nossas tendências e apetências naturais e seus desvios mais típicos estão ali descritos de forma milagrosamente precisa.

Apliquemos um pouco dessa teoria à tese do desejo mimético de René Girard. Sim, àquela que nos diz o seguinte: é da natureza do desejo ser movido não pelos bens objetivos com os quais o espírito se relaciona, mas pelo fato de uma coisa ser objeto do desejo de outras pessoas (na pressuposição de que, pela posse de tal coisa, esse “eu” desejante se diferenciará dos outros, e assim se tornará também ele mais “desejável”). Em suma: só desejaríamos algo como imitação do que invejamos.

A SOBERBA
Santo Tomás segue a divisão de vícios capitais feita pelo grande papa São Gregório Magno: vaidade, inveja, ira, acídia, avareza, gula e luxúria. E, acima desses sete, como vício supracapital, põe a soberba — fonte de todos os demais.

Trata-se de uma enfermidade psíquica (aegritudo animalis) definida pelo Angélico Doutor como o apetite desordenado da própria excelência. Um estado mórbido que destrói todo o organismo das virtudes, ou pior: destrói a possibilidade de qualquer virtude, pois a soberba contraria a todas, radicalmente. E tal destruição provém de o soberbo se propor um fim último fictício (justamente o sobressair-se aos olhos das pessoas) em detrimento do fim último efetivo, que é Deus — atitude que, como não poderia deixar de ser, tem ressonâncias físicas identificáveis. Uma delas, segundo Santo Tomás, é que o soberbo tem habitualmente o olhar elevado, altivo (extollentia occulorum), signo da sua falta de reverência e de temor.

Esse pendor narcísico é um traço distintivo do soberbo — afã de autodivinização, como dizia Adler. E autodivinização (diga-se) à custa de depreciação das pessoas e/ou teses que sejam um empecilho para a afirmação desse fim fictício que o soberbo se propôs: a entronização do próprio umbigo. Na prática, essa atitude doentia tem conseqüências diretas para a nossa dinâmica psíquica, segundo Santo Tomás. A primeira delas é a emergência de outro vício tremendo: a vaidade, que busca a glória vã do reconhecimento do mundo. Assim, se o soberbo quer imoderadamente a própria excelência, o vaidoso quer a manifestação pública da própria excelência. Na prática, quer uma “glória” humana vazia — sem importância, na escala dos valores reais. Sendo assim, o vaidoso busca aparecer exteriormente, sobressair, chamar a atenção dos demais sobre o “alto” valor da sua pessoa. Quer ser honrado e louvado pelos outros, ainda que tais louvores e honrarias não correspondam a uma excelência realmente possuída.

Por fim, a vaidade — essa filha da soberba que busca a vanglória — acaba por acarretar outros vícios: desobediência, jactância, hipocrisia, contenta, pertinácia, discórdia e presunção de originalidade (novitatum praesumptio). Todas essas são filhas da inveja, para o Doutor Comum, e constituem uma escadinha ontológica que nos leva aos meandros mais terríveis, a buracos psicológicos verdadeiramente sem saída. Isto porque a vaidade acaba por conduzir a uma insegurança radical (ainda que o soberbo a esconda dos olhos do mundo), porque leva alguém a se apoiar apenas em si mesmo, em seus próprios supostos méritos, e isto não lhe pode trazer mínima estabilidade. Daí Santo Tomás dizer sabiamente que “se chama ‘vão’ o que não tem firmeza nem estabilidade” (Suma Teológica, II-II, q. 132, a.5).

Isto posto, vale dizer o seguinte: desejar algo apenas para diferenciar-se dos outros, apenas para parecer melhor que os outros (por inveja) é literalmente o que Santo Tomás chama de soberba: um apetite (desordenado) da própria excelência! Eis aí exposta, com terminologia distinta, a “tese” de René Girard, com a diferença de que o autor francês quer convencer-nos de que essa inveja “fundamental” é a fonte dos nossos desejos, enquanto Santo Tomás a coloca como uma grave doença do espírito — um desequilíbrio que, se continuado, pode tornar-se incurável.

A propósito: a inveja, para o Angélico, é outra filha da soberba.

Em tempo1: A verdadeira marca do idiota é a pertinácia no erro. Um erro que quer propagar irresponsavelmente, sobretudo se o fará parecer diferente, presumir-se “original”...
Em tempo2: A tese de Girard, na prática, se casa perfeitamente com a idéia liberal de que a consciência individual é “autônoma”. A afirmação do próprio "eu" em detrimento dos outros, presente na teoria girardiana, representa essa vontade de autonomia, esse desligar-se dos outros (coisas e pessoas) elevando-se artificiosamente.
Em tempo3: Terá Deus posto no coração do homem essa inveja fundamental? Estará o homem condenado a sempre querer algo invejando? Já lembramos aqui, noutro texto, que a tese girardiana, se levada às últimas conseqüências, parece descrever o estado de espírito luciferino: a inveja ao próprio Deus, por pura soberba.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Tempo de Natal

Carlos Nougué e Sidney Silveira
Caros amigos e leitores,

Este é o primeiro Natal desde que começamos o blog “Contra Impugnantes”, e não poderíamos deixá-lo passar em brancas nuvens. Para tal, nada melhor que deixar falar a própria liturgia.

Que tenham todos um Natal católico e feliz, dessa felicidade que tem os olhos postos no Altíssimo.


1) Intróito do Quarto Domingo do Advento

Derramai, ó Céus, lá das alturas, o vosso orvalho, e que as nuvens chovam o Justo; abra-se a Terra, e brote o Salvador. Sl. Os Céus proclamam a glória de Deus, e o Firmamento anuncia as obras de suas mãos.

2) Evangelho (segundo S. Lucas, III, 1-6) do Quarto Domingo do Advento

No ano XV do imperador Tibério César [...] o Senhor falou a João, filho de Zacarias, no deserto. Percorreu ele toda a zona do Jordão, pregando o batismo do arrependimento para a remissão dos pecados [...]. Uma voz clama no deserto: Preparai os caminhos do Senhor, e endireitai as suas veredas: que todos os vales subam, e que todos os montes e colinas se abaixem; que os maus caminhos se tornem direitos, e que os escarpados se aplanem [...].

3) O Evangelho (segundo S. Mateus, I, 18-21) da Vigília do Natal

[...] eis que um Anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos, dizendo: José, filho de Davi, não temas receber Maria como tua esposa, porque o que nela foi concebido é obra do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus, porque Ele salvará o seu povo dos seus pecados.

4) Pós-Comunhão da Vigília de Natal

Concedei-nos, Senhor, que respiremos com o nascimento do vosso Filho Unigênito, cujo celeste mistério nos dá o alimento e o refrigério.

5) Coleta da Missa da Meia-noite de 25 de dezembro

Ó Deus, que fizeste resplandecer esta noite com a claridade da verdadeira Luz, concedei-nos que, depois de conhecermos na Terra os mistérios dessa Luz, gozemos também no Céu das suas alegrias.

6) O Evangelho (segundo S. Lucas, II, 1-14) da Missa da Meia-noite

Naquele tempo [Maria] deu à luz o seu Filho [...]; enfaixou-O e reclinou-O numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem. Ora, naquela mesma região, uns pastores velavam e faziam de noite guarda ao seu rebanho. E eis que apareceu junto deles um Anjo do Senhor, e uma claridade divina os cercou, e tiveram grande temor. Porém o Anjo disse-lhes: Não temais, pois vos anuncio uma grande alegria, que o será também para todo o povo: nasceu-vos, na cidade de Davi, o Salvador, que é o Cristo Senhor. Será isto o que vos há de servir de sinal: encontrareis um menino envolvido em panos, e deitado numa manjedoura. Subitamente, apareceu, com o Anjo, uma multidão da milícia celeste, louvando a Deus, dizendo: Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos homens, por benevolência divina.

7) Ofertório (Salmo 95, 11, 13) da Missa da Meia-noite

Alegrem-se os Céus e exulte a Terra ante a face do Senhor, porque Ele chegou.

8) Secreta da Missa da Meia-noite

Seja-Vos agradável, Senhor, nós Vo-lo pedimos, a oblação da presente festividade, para que, com o auxílio da vossa graça, e por intermédio destes sacrossantos mistérios, nos tornemos conformes Àquele no qual a nossa substância está unida a Vós.

9) Comunhão (Salmo 109, 3) da Missa da Meia-noite

Gerei-Te do meu seio nos esplendores da glória, antes de haver dia.

10) Pós-Comunhão da Missa da Aurora

Conforte-nos sempre, Senhor, a novidade natalícia deste sacramento – d’Aquele cujo nascimento singular afastou a humana velhice. Pelo mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo.

Amém.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

É nesta terça-feira (23/12)...

Sidney Silveira
...o lançamento do livro Atualidade do Tomismo, que está saindo pela Sétimo Selo. Estarão lá o presidente da Sociedade Internacional Tomás de Aquino – S.I.T.A. (Seção Brasil), Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira, que assina o “Prefácio” da edição, e Paulo Faitanin (da UFF e do Instituto Aquinate), que assina — com Enrique Alarcón, da Universidade de Navarra, coordenador da Opera Omnia — a “Introdução” e a “Bibliografia tomista contemporânea em língua portuguesa” (com menção a 700 trabalhos). Eu, o Nougué e outros amigos e colegas, amantes da filosofia de Santo Tomás de Aquino, também lá estaremos.

O evento será na Livraria da Travessa do Centro Cultural Banco do Brasil – CCBB, na Rua 1º de Março, 66, Térreo, Centro, Rio de Janeiro. A partir das 18h.

Todos estão convidados.

O Cogito cartesiano, ou o pensar como causa do ser (VI e final)

Carlos Nougué
Como vimos ao longo desta série, o Cogito cartesiano, por um lado, não é um primeiro princípio nem um transcendental, nem, por outro, é um juízo, mas é efetivamente um entimema, apesar da afirmação em contrário do próprio Descartes. Se assim é, qual a sua verdadeira premissa maior? Aquela que dissemos desde o princípio, a saber: “Para ser, é preciso pensar”? Se não, qual?

Antes de concluirmos, porém, é preciso ainda refutar uma coisa: a afirmação do próprio Descartes de que seu Cogito é uma espécie de intuição, o que não é refutado explicitamente, em termos próprios, nem sequer por Tomás Melendo.

Mas veja-se que ante um pensamento como o cartesiano devemos ter a postura firme de não lhe atribuir coerência absoluta (às vezes, nem sequer relativa a seus próprios termos). Com efeito, como atribuir tal coerência a alguém capaz de negar que seu Cogito tenha por premissa maior “para pensar, é preciso ser”, assim como o tão referido silogismo de Santo Agostinho, cuja premissa menor era “ora, eu me equivoco” e cuja conclusão era “logo, eu sou”, tinha por premissa maior “para equivocar-se, é preciso ser”? Estamos naquele mesmo terreno “psicopatológico” de que falava Étienne Gilson ao referir-se ao pensamento moderno – psicopatológico e, pois, em nossos termos, perfeitamente mágico. De fato, no Discurso do Método Descartes diz ter por objetivo único combater o cepticismo com relação a Deus e ao real; mas combate-o de modo tal, que seu mesmo raciocínio conduz em outros escritos, como diz Melendo, à conclusão de que “o pensamento não exige previamente, com prioridade de natureza, a existência ou o ser. Ao contrário, seria o próprio pensar, ou a consciência em qualquer de suas manifestações, o que confere realidade ao pensado. Só de tal modo o pensamento (e, em geral, a subjetividade) se alça como princípio primeiro não fundamentado, como princípio sem princípio, de qualquer realidade posterior: do eu, de Deus, do mundo material, dos três enquanto pensado-existentes”. E, por mais que nos custe crer que alguém possa chegar a tal conclusão, é efetivamente o que faz Descartes, inaugurando com isso, como afirmava o insuspeito Heidegger, “toda a metafísica moderna, Nietzsche inclusive”, a qual “se mantém na interpretação do existente e da verdade que parte de Descartes” (Die Zeit des Weltbildes, em Holzwege, Frankfurt am Main, 5a. ed., 1972, p. 80, apud Tomás Melendo, ibid.). E, efetivamente, “com maior ou menor consciência, e de maneira mais ou menos involuntária, Descartes lança as sementes destrutivas que, após torná-la irreconhecível, haverão de acabar com a [própria] metafísica, arrastando em sua queda a imagem teórica e a realidade do homem, e os princípios e a práxis genuinamente morais”, afirma Melendo (idem) de forma justa e precisa, ainda que em contradição com uma das premissas de seu próprio trabalho (ver o artigo IV desta série).

Por outro lado, é patente que ninguém poderia levar às últimas conseqüências práticas um pensamento desse tipo; nem sequer quem padeça esquizofrenia o pode fazer. Com efeito, se se levassem às últimas conseqüências práticas a afirmação de que o pensar é a causa do ser, tal impediria, simplesmente, o próprio viver: como passar por uma parede? como saber que não devemos comer pedra? como não correr de um vaca furiosa com os chifres apontados para você? Efetivamente, nem um esquizofrênico, cuja doença é propriamente a cisão de uma alma que foge de um real insuportável, pode abandonar, sem acabar com a própria vida, a certeza dada pelo próprio e antecedente real de que qualquer ente humano não pode voar ainda que o pense e queira. Pois é precisamente por tal impossibilidade que o “sistema” de Descartes não comporta coerência absoluta nem, por vezes, relativa: nenhuma forma de psicopatologia pode comportá-la.

E por isso também importa dizer aqui, ainda com Melendo, que “a pretensão do filósofo francês se aproximaria da insânia” se pressupusesse “um pensamento não existente capaz de agir e dar origem à sua própria existência e a todo um universo… entendidos todos eles ao modo pré- ou extracartesiano” (idem). Não, o que se sustenta aqui, outra vez com Melendo, é que Descartes é mais sutil (demasiadamente mais sutil, agrego): “o chamado pai do racionalismo obriga a consciência, em suas múltiplas manifestações, a ocupar o lugar que corresponde ao ser. Ou seja, faz do cogito a consistência primeira de tudo o que é [de tudo o que é ente e do próprio Ser, precise-se]. [...] daí, do pensamento como pensamento (ou das idéias nele incluídas), extrairá Descartes Deus e o mundo enquanto existente-pensados ou pensado-existentes”. Até aqui seguimos com Melendo; mas já não podemos seguir com ele quando diz que “a inversão das relações entre ser e consciência [em Descartes] não deve ser interpretada como se o [sum, eu sou] fosse um ‘efeito’ do pensamento”. Ora, se em Descartes o pensar ocupa o lugar do ser, é porque causa inversamente o que na realidade o ser causa, e, se é evidente que na realidade o pensar é efeito do ser (ou ato de ser, ato dos atos), é igualmente evidente que em Descartes o ser será forçosamente efeito do pensar. Por que, porém, incorre o penetrante Melendo em tal patente equívoco?

Porque de algum modo aceita que, conquanto equivocadíssimo, o Cogito cartesiano é uma intuição, tal como dizia o próprio Descartes. Mas o que é intuição? O modo de pensar próprio dos Anjos! Com efeito, as criaturas puramente espirituais que são os Anjos, graças às espécies inteligíveis que infundiu Deus mesmo em seu intelecto, compreendem tudo, cada realidade, num só, digamos, “lance de vista” – numa intuição. É uma forma de conhecimento imediata, muito diferente da forma de conhecimento humana, que é diacrônica (vai do conceito ao silogismo, passando pelo juízo), além de supor a intervenção prévia dos órgãos corporais que são os sentidos externos e internos. A forma humana de conhecimento é propriamente discursiva, nunca intuitiva. Ora, a concessão tácita de Melendo à “intuição” cartesiana pode até não passar disso, de uma concessão tácita, a qual, porém, por nunca se esclarecer, gera mais confusão que luz; mas para o próprio Descartes a intuição era algo efetivo, até porque o Francês via o homem justamente como uma espécie de anjo “preso” ao corpo pela glândula pineal, assim como em Platão a alma humana estava no corpo como numa prisão. Platão, contudo, nunca dotou a alma humana de propriedades intuitivas angélicas, ao passo que Descartes, sim. E com isso podemos agora, finalmente, concluir esta série.

Com efeito, ainda que o quisesse Descartes, é óbvio que o homem é incapaz de intuição, e por não sê-lo, e pelas numerosíssimas razões que expusemos ao longo desta série, é que o Cogito cartesiano é um entimema, e um entimema que se revolve efetivamente no seguinte silogismo:

● O pensar é a consistência, o fundamento, a causa, o ato do mundo (ou seja, de tudo o que é);
● Ora, eu penso;
● Logo, eu sou (ou seja, o próprio eu se funda no pensar).

Naturalmente, repito, não se busque nisso nada coerente simpliciter (nem secundum quid se se considera o conjunto da obra de Descartes). Mas busque-se nisso uma origem de todas as vertentes do pensamento mágico moderno,* que, sim, se encontrará. Afinal, para nos limitarmos a apenas um exemplo, não é o liberalismo uma forma de pensamento que funda a realidade no pensar e querer de seus próprios propugnadores?

Para terminar, fiquemos com a expressiva analogia a respeito do Cogito cartesiano proposta por David Kelly (cf. The Evidence of the Senses: A Realist Theory of Perception, Louisiana State University Press, Baton Rouge, 1986, p.12). Imagine-se o pensar como um filme de cinema com seu projetor. O projetor não é uma lanterna, que ilumina objetos independentes da lanterna; ao contrário desta, ele emite um feixe de luz que mostra na tela objetos constituídos ou criados pelo filme. Se o filme se deteriora, tais objetos também deixam de ser.

* Digo que o cartesianismo é apenas “uma origem de todas as vertentes do pensamento mágico moderno” porque, em verdade, podemos encontrar para esse pensamento origens, fontes mais remotas: o voluntarismo de Duns Scott, o “nominalismo” de Guilherme de Ockham, etc.

sábado, 20 de dezembro de 2008

Natureza, ordem ao sobrenatural (II)

Sidney Silveira
Num outro texto, dizíamos nós que não há cisão entre natural e sobrenatural, mas ordem de um a outro. E mais: dávamos ali o conceito de “natureza” segundo Aristóteles (na Física, Livro II, 1, 192b, 10ss) e a importantíssima correção metafísica que lhe fez Santo Tomás — num formidável comentário. Pois bem: como li algures umas confusões entre “natureza divina” e “sobrenatural”, acho que vale a pena aprofundar um pouco o tema, tendo como base o Doutor Comum da Igreja. Tais precisões, penso eu, são úteis para todos os que cremos.

Em diferentes pontos de sua obra, o Angélico Doutor nos diz que o termo “sobrenatural” indica, antes de tudo, o que transcende — na ordem do ser e na do agir — toda a natureza criada. E, como ressalta Battista Mondin no seu bom Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d’Aquino, o sobrenatural é “intrinsecamente, originariamente e absolutamente Deus”. Este, por bondade, concede à criatura racional uma participação em Sua vida divina, que está muito além das possibilidades de qualquer natureza. Lembra ainda Mondin que, para Santo Tomás, tal dádiva pode dar-se seja no plano operativo (com as virtudes teologais e os dons do Espírito Santo), seja no plano ontológico (com a Graça santificante).

E se o sobrenatural transcende, ontologicamente, a todas as naturezas, nem por isso deve dizer-se que se contraponha a elas (nunca é demais recordar o famoso axioma que diz: “A Graça aperfeiçoa a natureza”). No seu comentário aos Nomes Divinos, obra do Pseudo Dionísio, Tomás define o sobrenatural como “o que ultrapassa todas as potências da natureza” (XI, lect. 4). Mas há maneiras muito distintas de manifestar-se a sobrenaturalidade, para o grande teólogo.

Assim:

a) A fé é uma luz sobrenatural;
b) A visão beatífica da essência divina é o fim sobrenatural;
c) A Graça é um dom sobrenatural;
d) Os milagres são sinais sobrenaturais;
e) A Teologia é o estudo dos mistérios sobrenaturais (de supernaturalibus mysteriis); etc.

Certas correntes teológicas — péssimas! — dos últimos 50 anos acabaram dando aparente validez ao chamado naturalismo, contrariando frontalmente o Magistério da Igreja. Ora, se a fé não se refere a um plano além das possibilidades da natureza (inclusive a humana), para que então a fé? Bastar-nos-ia a razão natural, que neste caso deixaria de ser preambula fidei para transformar-se ela mesma na consumada “explicação” da fé. Nessa perspectiva, o mistério de Maria semper Virgini, por exemplo, teria um esclarecimento racional acabado. Mas, na prática, como isto é formalmente impossível para a ciência dos homens, teólogos naturalistas escrevem coisas formidáveis na tentativa de “explicar” o inexplicável para a razão natural humana (que deveria ser crido com fé sobrenatural católica, como a Igreja sempre ordenou aos fiéis por meio do seu Magistério). Lêem-se coisas saídas da pena de alguns modernos teólogos naturalistas — em dicionários de Mariologia! — como a seguinte:

“(...) A virgindade de Maria não se apresenta como privilégio [ah, não?] individualista e distintivo [sic], mas como a afirmação prototípica da qualidade esponsal que a humanidade — por graça e redenção — assume em relação ao Esposo que vem, (...) como a forma integralmente receptiva e, portanto, plenamente ativa [?] que a humanidade assume diante da vinda de Deus para a carne humana”.

Alguém entendeu o xarope? Pois é, e o autor do verbete (de que só transcrevo uma ínfima parte, pois ocupa páginas e páginas em letra miúda) vai além e diz que

“(...) justamente por causa da pujança do símbolo [agora ficou claro: a virgindade perpétua era em sua opinião um símbolo] que em Maria-sempre-virgem abrange o espírito e o corpo, o apelo às exigências da aliança com o único Senhor, antes da condição criatural, se torna claro e indispensável”.

Ora, pelotas: lemos isto num dicionário de Mariologia!! E não me venha nenhum liberal agora pedir-me para citá-lo, porque só o li por acaso e ele hoje pertence ao meu particular Index librorum prohibitorum, pois acho que a sua leitura exaustiva não deve ser recomendada a ninguém (a propósito, vocês já perguntaram a um católico liberal o que ele acha de a Igreja — por anos e anos sem fim!! — ter tido um Index de livros proibidos?). Voltando ao verbete, assinalo o seguinte: quanta diferença entre esse texto empolado, resvaladiço e quase incompreensível e Santo Tomás de Aquino! Este não perde tempo em dizer, simplesmente, que a virgindade perpétua de Nossa Senhora é um milagre da onipotência divina (cf. Suma Teológica, III, q. 28, a 2).

Os exemplos de como a perda da noção de “sobrenatural” é daninha para o fiel católico são incontáveis. São exemplos práticos de como cair no racionalismo e enfraquecer a fé. Poderíamos enumerá-los à exaustão.

Não vale a pena.

O que vale é pedirmos, insistentemente, a Deus que nos dê a Graça (dom sobrenatural santificante), não obstante a nossa falta de méritos. Sobretudo nesta época natalina. Amém.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Sedevacantismo, ou uma conclusão à procura de premissas (I)

Carlos Nougué
Nota prévia:
Deveria ter escrito, antes deste artigo, o prometido fim da série “O Cogito cartesiano, ou o pensar como causa do ser”. Sucede porém que, em primeiro lugar, estou assoberbado pela tradução de importantíssimo livro que será talvez o próximo da editora Sétimo Selo; e, em segundo lugar, muitos amigos me vinham pedindo que começasse logo a escrever sobre o sedevacantismo, sobretudo depois de o Sidney ter abordado o tema tão agudamente em “Sedevacantismo, um erro capital”. É o que faço agora, deixando para amanhã ou depois de amanhã a escrita do final do “Cogito”.

Preâmbulos
1) Um aspecto desta série de artigos sobre o sedevacantismo é de minha exclusiva responsabilidade: o vinculá-lo ao que chamo “pensamento mágico” por qualquer inversão entre mente e realidade, entre causa e efeito, entre antecedente e conseqüente ou entre premissa e conclusão. Por esse ângulo, como veremos, o sedevacantismo inclui-se entre os tipos de determinada espécie de pensamento mágico: a “reconstrução ideal da história”. O outro aspecto desta série, todavia, nem de longe é de minha responsabilidade: o provar o engano do sedevacantismo do ângulo teológico e canônico. E não o é por dois motivos: a) não me sinto com luzes de teólogo nem de canonista; b) como quer que seja, adiro integralmente às investigações e conclusões de dois grandes teólogos com respeito ao assunto: o Padre Juan Carlos Ceriani (em seus estudos “Dificultades que entraña la opinión sedevacantista” e “Contra papólatras y papoclastas”)* e o Padre Álvaro Calderón (em seu livro La lámpara bajo el celemín). Se assim é, porém, por que tratar neste blog do assunto? Especialmente porque nos preocupa muito a simpatia que vem despertando o sedevacantismo (que, como veremos, é pernicioso em si e por seus efeitos deletérios: afastamento dos sacramentos, perda da fé, etc.) entre jovens que se escandalizam com tanta coisa emanada da própria hierarquia eclesiástica atual; e porque cremos poder intervir positivamente para ajudá-los a afastar-se disso que, como diz o Padre Calderón, é uma “vertigem”, mostrando que a vertigem do sedevacantismo é a mesma que, mutatis mutandis, resulta de qualquer “reconstrução ideal da história”.

2) Mais uma vez, vejo-me obrigado a pedir aos leitores que se armem de paciência, e neste caso de grande paciência: a série é bem longa. A verdade a respeito deste assunto requer uma aproximação sucessiva que, na medida do possível à razão humana, não deixe nada de fora. Não só, aliás, esta verdade: nenhum conhecimento sobre nenhuma realidade essencial se faz de forma fácil nem imediata. Como disse a um amigo, de que nos adiantaria gritar algo aos quatro ventos se traíssemos a complexidade do real e não convencêssemos entranhavelmente a inteligência das pessoas? Os sedevacantistas têm o hábito, típico de sua forma de pensamento mágico, de se agarrar a uma só coisa da realidade (para muitos sedevacantistas, a Bula Cum ex Apostolatus Officio, do Papa Paulo IV) como à premissa de uma “conclusão” já tirada e repetida de modo hipnótico: “O papa não é papa, o papa não é papa, o papa não é papa...” Não devemos fazer o mesmo de jeito nenhum, nem sequer para combater um erro. Ainda assim, porém, e para tranqüilizar alguns amigos que por justos motivos andam algo angustiados com o assunto, adiantarei alguns dados que farão parte do longo desenvolvimento conducente às conclusões desta série, mas servirão desde já, creio, para advertir os leitores sobre a imprudência e precipitação do sedevacantismo em geral, e de algumas de suas correntes em particular. São eles:

a) Em 6 de abril de 1560 (ou seja, pouco mais de um ano depois da referida Bula), Pio IV, sucessor imediato de Paulo IV, emitiu um documento que modificava algumas medidas disciplinares daquela. Com efeito, lê-se na História dos Papas de Ludovico Pastor (apud P. Juan Carlos Ceriani, “Contra papólatras y papoclastas”): “Em clara referência a Paulo IV, [o Papa Pio IV] publicou uma declaração segundo a qual todos os que haviam incorrido em alguma censura, em excomunhão ou outra condenação por causa de heresia podiam submeter outra vez sua causa a uma nova averiguação judicial, não obstante todas as sentenças de seus predecessores”.

b) Lê-se ainda na História dos Papas de Ludovico Pastor (apud ibid.) que o mesmo Pio IV publicou, em 9 de outubro de 1562, uma Bula destinada a legislar sobre o Conclave para a eleição pontifícia, a qual também alterava disposições disciplinares da Bula de Paulo IV. Dizia o documento de Pio IV: “Ninguém pode ser excluído da eleição sob pretexto de que está excomungado ou incorreu em alguma censura”, ou seja: “não obstante as sentenças de Paulo IV, os condenados (por exemplo, depostos) e os excomungados ou censurados (incluindo Cardeais depostos) podiam ser eleitos no Conclave” (P. Ceriani, ibid.).

c) A referida Bula de Paulo IV “foi ab-rogada pelo Código de Direito Canônico [o de São Pio X/Bento XV], incorporando-se a este [apenas] parte do que aquela legislava” (idem).

d) A eleição do Romano Pontífice, ao contrário do que querem fazer crer os sedevacantistas, rege-se atual e unicamente pela Constituição de Pio XII de 8 de dezembro de 1945 e pelas “legítimas reformas” (idem) que ela sofreu posteriormente.

Mas de modo algum se vejam nesses quatro dados duas coisas:

● nenhuma infração ao princípio de contradição, dado tratar-se, como veremos aprofundadamente, do uso legítimo de um princípio do direito positivo humano e eclesiástico (que, suposta a necessária convergência essencial com a lei natural e a lei divina positiva, é sempre variável segundo circunstâncias espaciotemporais): uma lei disciplinar pode ser ab-rogada por alguém do mesmo nível daquele que a instituiu, especialmente se tal se faz conforme à prudência e à busca do bem comum. Com efeito, “um antigo adágio lembrado por Inocêncio III nos Decretales diz que o sucessor tem um poder não só igual mas idêntico ao de seu predecessor” (“Dicionário de Direito Canônico”, org. Naz, entrada “ab-rogação da lei”, apud P. Ceriani, ibid.);

● uma resposta às teses sedevacantistas, uma vez que, como já dito, tais dados efetivamente não são mais que isto: breves antecipações de um longo desenvolvimento.

(Continua.)

* Ambos os termos “papólatras” e “papoclastas” são neologismos. O primeiro constrói-se sobre o modelo de “idólatra” (gr. eidololatres,ou, “adorador de ídolos”, pelo lat. idololatra ou idololatres,ae), enquanto o segundo se constrói sobre “iconoclasta” (“que ou aquele que destrói ou derruba imagens religiosas”, como os que, nos séculos VIII e IX, participaram do movimento contrário às imagens nas Igrejas cristãs do Oriente, ou como os protestantes em seu ataque geral à Igreja Católica). Assim, “papólatra” = “adorador de papas” e “papoclasta” = “derrubador de papas”.

Em tempo: Ambos os citados textos do Padre Juan Carlos Ceriani, “Dificultades que entraña la opinión sedevacantista” e “Contra papólatras y papoclastas”, estarão disponíveis em breve. Mas o primeiro já pode ser lido integralmente no site “Stat Veritas” (http://www.statveritas.com.ar/Varios/SedeRomana2.htm).

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Lançamento do novo livro da Sétimo Selo


Sidney Silveira
Convido todos os amigos residentes no Rio de Janeiro e adjacências a comparecer, na próxima terça-feira (23/12), a partir das 18h, à Livraria da Travessa no Centro Cultural Banco do Brasil – CCBB (Rua 1º de Março, 66, Térreo, Centro, Rio de Janeiro), onde a editora Sétimo Selo fará o lançamento do livro Atualidade do Tomismo.

Na ocasião, eu e o Nougué lá estaremos, assim como alguns professores integrantes da Sociedade Internacional Tomás de Aquino S.I.T.A. (Seção Brasil), como Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira (presidente da entidade e professor da Universidade Católica de Petrópolis - UCP) e Paulo Faitanin (professor da Universidade Federal Fluminense - UFF e criador do Instituto Aquinate). Os demais integrantes da S.I.T.A. Brasil também estão todos convidados.

A estrutura da ação humana em sua completude (XI)

Sidney Silveira
Retomo agora a série “A estrutura da ação humana em sua completude”, depois de algum tempo sem atualizá-la. Peço desculpas aos leitores, mas é que, nestes últimos dois meses, outros assuntos acabaram entrando na pauta do blog.

Falávamos no último artigo sobre a virtude (na perspectiva da metafísica de Santo Tomás) como uma força que auxilia determinada potência a atingir o fim específico ao qual naturalmente tende — lembrando, na ocasião, que o fim próximo de uma coisa é atualizar todas as potências que lhe são distintivas, ou seja: o fim para o qual está ordenada a virtude dessa coisa. Daí que, no caso do homem, alcançar a virtude significa ter desenvolvido as potencialidades mais importantes em seu nível de excelência.

Pois bem, retomemos agora o caminho falando da prudência, a virtudes das virtudes humanas. Virtude supracapital, como diz Tomás de Aquino, que é para todas as outras virtudes uma nascente.

A PRUDÊNCIA

Já vimos, no decorrer destes textos, que o intelecto é o princípio reitor da personalidade humana, o epicentro do caráter, na medida em que tem influência decisiva não apenas sobre a vontade, mas sobre toda a afetividade sensitiva, conforme salienta Martín Echavarría, autor da obra-prima La praxis de la psicología y sus niveles epistemológicos según Santo Tomás — cujas pegadas seguimos de perto, nesta série de textos. E, dentre todas as virtudes, há uma que aperfeiçoa o intelecto e o leva a ordenar as paixões e condutas: a ela o Aquinate chama prudentia, que, por suas características, é também nomeada por ele como a reta razão no agir.

A prudência é uma virtude intelectual, pois o seu sujeito principal é o intelecto. A matéria da prudência é a ética, a sabedoria nas coisas humanas (sapientia in rebus humanis, dirá Santo Tomás, repetindo neste ponto Aristóteles), porque busca conduzir-nos a alcançar o fim último de toda a vida humana — fim ao qual também nos referimos no último texto —, a partir de meios adequados para lográ-lo. A prudência versa, portanto, sobre os meios. E, embora seja uma virtude prática, a prudência é essencialmente intelectual porque é o intelecto que, na prática, capta a proporção entre meios e fins. É nele que se encontra a razão de fim, que um bichano, por exemplo, não tem: o bichano simplesmente come e bebe, mas não sabe que tem de comer e beber para viver.

Diz ainda Echavarría que, de certa forma, a prudência consiste nos sentidos internos, pois é a partir da memória — um dos quatro sentidos internos — que se chega a um julgamento dos fatos particulares experimentados (cf. Suma Teológica, II-II, q. 47, a.3 ad. 1), aos quais a prudência se refere. A isto chama Santo Tomás experimentum, que é o produto final da ação conjunta da cogitativa e da memória. Assim, muitas coisas recordadas constituem um experimentum. Ora, a experiência é absolutamente necessária para a prática humana, em qualquer ordem de coisas, e a formação dessa experiência supõe a atividade de todas as nossas potências cognoscitivas, razão pela qual o experimentum da prudência não se adquire somente pela memória, mas sobretudo pelo exercício do preceituar retamente (cf. Suma Teológica, II-II, q. 47, a. 14, ad. 3). E esse preceituar retamente supõe um conjunto orgânico de imagens intencionalmente laboradas, ou seja: imagens unidas a juízos do intelecto. Em termos técnicos, trata-se da conexão entre a vis cogitativa e as distintas intentiones. Assim, entre lembrar de um fato, simplesmente, e lembrar dele ajuizando-o (por exemplo, como algo que não se deva fazer outra vez) há uma distância tremenda. É o que, entre outras coisas, distingue a ação humana da ação dos outros animais da escala zoológica, coisa que absolutamente escapou ao liberal Von Mises em sua Human Action, livro ao qual voltaremos no final da série.

Uma pessoa com dificuldade para ajuizar as imagens (ou seja: dar-lhes uma intenção, uma diretriz) está tendo, na prática, o seu acesso à realidade impedido ou então, para dizer pouco, grandemente dificultado. Segundo Echavarría, alguém numa situação dessas só poderá obter uma cura (no sentido literal da palavra) a partir da dissolução das falsas imagens, pondo fim à rede de representações mentais que, durante longo tempo, fez de si mesmo e das coisas e pessoas em torno — representações essas que não correspondem à realidade real. Neste contexto, não nos devemos esquecer de que a memória é também receptáculo de juízos falsos. Ah, e quantas pessoas são psicologicamente destruídas porque a sua dinâmica psíquica ergueu-se sobre falsas imagens (ou seja: imagens mal ajuizadas) de si e dos demais! Como se vê, acreditar no erro é uma tragédia para a psique humana.

Esse reto juízo sobre as coisas particulares, nota distintiva da prudência, não nos vem por um passe de mágica, pois só pode haver prudência onde há retidão das inclinações — tanto intelectivas como sensitivas. Estas, se desvirtuadas dos fins para os quais naturalmente tendem, só podem se reordenar a partir de uma transformação de toda a afetividade, por um ato da vontade (que é apetite intelectivo do bem). Não basta, para Echavarría, uma dissolução “analítica” dos complexos, como na psicanálise de cunho freudiano; é preciso alcançar a verdade, acerca de nós mesmos e das coisas. Neste caso, alcançar querendo, ou seja, intencionalmente, pois as verdades mais fundamentais não se alcançam se não se quer alcançá-las. Muito antes de Husserl e com muito maior profundidade, Santo Tomás já salientara a intencionalidade do conhecimento humano.

Em suma, se não conseguimos ter uma simpatia pelas boas obras, não chegamos a ter nenhuma virtude. O desvirtuado, por sua vez, tem antipatia por tudo o que é bom e lícito. Quer macular as coisas com as más intenções (ou intenções falhas) que, consciente ou inconscientemente, engendrou no âmago da sua alma.

Como a prudência — mãe e fonte de todas as virtudes — não é um milagre, dado que deita raízes em nossos sentidos internos e na razão, pressupor que devemos e podemos experimentar de tudo (inclusive experimentar o mal em nós mesmos) é trabalhar pela destruição da possibilidade da principal das virtudes humanas. É trabalhar pela dispersão dos nossos apetites sensitivo e intelectivo em uma multiplicidade de objetos. É trabalhar para que nos distraiamos das coisas realmente necessárias. É trabalhar pela queda do homem no abismo. E a razão clínica é simples: o experimentum do mal, se continuado, acabará por fazer um homem acreditar naquilo que tem de pior em si — supor que a sua enfermidade é o que o constitui per essentiam. Tal homem estará na situação depravada para a qual Aristóteles diz, na Ética a Nicômaco, não haver saída: será para sempre refém das imagens do mal vivido ou praticado. É por isto que experimentar o mal deve ser uma contingência em nossa vida (pois o próprio mal é uma contingência metafísica), e não algo querido e buscado, à guisa de experiência.

Por essas e outras coisas, afirmar que a consciência individual é “autônoma” (e já dissemos noutro texto que os liberais, quando indagados sobre tal “autonomia”, engrolam a língua e não respondem) é, no ato, forjar uma espécie de homem condenado, de antemão, ao precipício dos vícios, pois nenhum homem prudente até hoje foi “autônomo”, mas, ao contrário: rendeu-se à realidade das coisas, pela inteligência e pela vontade. É claro que esse render-se à realidade é consciente, mas na acepção verdadeira do termo “consciência”, como destaca Santo Tomás: a consciência como a mera aplicação de uma determinada ciência a algo. E não como uma instância libérrima, “independente”, alheia às coisas — alheia à verdade sobre as coisas. Isto simplesmente porque a liberdade humana está circunscrita ao ser.

Se não fosse assim, a liberdade seria um dos transcendentais do ser, como tão erroneamente pressupôs Leonardo Polo, em sua Antropología Transcendental. E pior: seria fundante do ser. O que é ainda mais absurdo.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Atualidade do Tomismo



Sidney Silveira
Chegará nesta semana às livrarias a obra Atualidade do Tomismo, novo lançamento da editora Sétimo Selo.

Organizado pelo Prof. Enrique Alarcón, da Universidade de Navarra, com a colaboração do meu amigo Paulo Faitanin (da UFF e do Instituto Aquinate), o livro é composto de 10 trabalhos de diferentes autores, estudiosos da obra de Santo Tomás:

1- ADRIANO OLIVA, OP, da Comissio Leonina, com o artigo A Comissão Leonina, 125 anos depois de sua fundação, se estabelece em Paris. O texto de Oliva traz — além da contextualização histórica da Edição Leonina — o atual estado da edição crítica de um trecho do Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo de Santo Tomás.

2- JOHN F. BOYLE, da University St. Thomas (St. Paul, Minnesota), editor do grande último inédito atribuído ao Aquinate (a Lectura Romana), assina o texto Comentário de Tomás de Aquino a Pedro Lombardo. Aqui, Boyle analisa a história desta importante obra e os argumentos relativos à autoria de Santo Tomás.

3- GIANCARLO BOLOGNESI, LUIGI DADDA, ADRIANO DE MAIO e TULLIO GREGORY escrevem o artigo O trabalho de Roberto Busa, SJ: espaços abertos entre a computação e a hermenêutica. Para muitos, Busa é o “pai” da informática lingüística, graças à sua análise computadorizada dos escritos de Santo Tomás de Aquino.

4- LEO ELDERS, conhecido professor tomista, com o texto A ética de Tomás de Aquino faz algumas pinceladas introdutórias ao tema do pensamento moral na obra do Aquinate.

5- ÁNGEL LUIS GONZÁLEZ, da Universidade de Navarra, assina o artigo A Metafísica Tomista: interpretações contemporâneas. González procura fazer um balanço historiográfico da metafísica tomista no século XX.

6- ENRIQUE ALARCÓN, coordenador do estupendo trabalho da Opera Omnia, com Avanços em nosso conhecimento histórico de Tomás de Aquino, realiza uma acurada síntese da historiografia tomista, em três linhas: fontes biográficas sobre a vida e a obra de Santo Tomás; autenticidade das obras; e sua cronologia.

7- DAVID BERGER, editor do Doctor Angelicus, com o texto Interpretações do tomismo através da história — como o título bem sintetiza —, tem o objetivo de traçar algumas linhas interpretativas da obra do Aquinate, ao longo dos séculos.

8- ABELARDO LOBATO, OP, assina A Pontifícia Academia de Santo Tomás de Aquino: história e missão. Lobato, presidente emérito da referida Academia (a PAST), nos conta o seu itinerário histórico-cultural, a partir de Leão XIII.

9- ENRIQUE MARTÍNEZ, secretário geral da S.I.T.A., com ‘In dulcedine societatis quaerere veritatem’: A Sociedade Internacional Tomás de Aquino, faz um balanço da história da S.I.T.A., entidade nascida no sétimo centenário de morte de Santo Tomás, em 1974 — e que teve os primeiros passos ensaiados, de acordo com Martínez, em 1979, centenário da monumental Encíclica Aeterni Patris, de Leão XIII.

10- ENRIQUE ALARCÓN e PAULO FAITANIN, ao final do livro, assinam a Bibliografia tomista contemporânea em língua portuguesa, o primeiro grande esforço de catalogar as obras de e sobre Santo Tomás em português. Ao todo, a Bibliografia faz referência a 700 obras, e se divide em: a) traduções de Santo Tomás; b) Antologias; e c) Estudos.

Atualidade do tomismo teve diferentes tradutores para o português: Daniel Nunes Pêcego, Daniel Henriques Lourenço, Paulo Alcoforado, Paulo Faitanin, Raquel de Freitas, Renato Moraes, Roberto Cajaraville e Shantal Carvalho Tarifa Reischle. A revisão geral dos textos é de Carlos Nougué.

Vale ainda destacar o seguinte: trata-se de um livro que, do ponto de vista historiográfico, traz informações relevantes para quem se interessa pelo estudo da obra de Santo Tomás. A titular do Copyright é a Fundación Tomás de Aquino, da Espanha, que cedeu à Sétimo Selo os direitos autorais desta obra coletiva para a presente edição em língua portuguesa. O prefácio da obra é do Prof. CARLOS FREDERICO GURGEL CALVET DA SILVEIRA, presidente da S.I.T.A. no Brasil, dedicado professor que há anos vem trabalhando pela difusão do pensamento tomista entre nós.

Em tempo1: Tão vasta e profunda é a obra de Santo Tomás, que é natural haver divergências de interpretação a seu respeito. Durante séculos, de Giovanni Capreolo até os tomistas contemporâneos, o tomismo foi marcado por um certo conjunto de teoremas, acerca dos quais houve acaloradíssimas discussões, que nada têm a ver com as do ambiente politicamente correto em que hoje soçobramos — pobres de nós! Eu, particularmente, tenho clara preferência pelo tomismo combativo, que não deixa de utilizar a obra do Aquinate em defesa da fé. Afinal, este era o objetivo do grande Santo, para quem a filosofia ancilla theologiae est, e a teologia, ancilla fidei est. Na subalternação entre as ciências, umas se orientam às outras, numa relação de dependência. Neste contexto, a metafísica e a teologia, para Santo Tomás, devem servir à Doutrina Sagrada, a qual parte de um princípio superior a todas as ciências humanas: a verdade revelada da fé. Esquecer isto é mutilar Santo Tomás naquilo que é principal em sua obra, dar grande importância ao meio, em detrimento do fim. Se, como editor da obra, digo que o valor de Atualidade do Tomismo dá-se, sobretudo, na perspectiva historiográfica, tome-se isto como a demarcação de um ponto de vista pessoal diferente, em relação ao de alguns de seus autores, mas que absolutamente não deslustra a obra. Ademais, como eu já disse pessoalmente a vários dos nossos tomistas, independentemente da corrente a que cada um se filia, não devemos medir esforços para difundir no Brasil a obra do Aquinate, que é um bem em si.
Em tempo2: O livro, de 245 páginas — contando com o Prefácio do Prof. Calvet da Silveira e a Introdução (assinada por Enrique Alarcón e Paulo Faitanin) —, custará R$ 44,00.

Pensamento mágico e bom senso (X)

Carlos Nougué
Vimos, ao final do artigo anterior desta série, que uma cidade fundada na virtude enquanto objeto de troca é antípoda de uma sociedade fundada num contrato social, porque nesta a virtude já não pode ser objeto de troca. “Com efeito”, dizia-se ali, “se a única coisa reconhecida como virtude é a própria
liberdade da consciência individual ou o que dela decorre, ou seja, é algo subjetivo, como a virtude poderia permanecer como objeto de troca e como, portanto, a pólis ou cidade poderia seguir fundando-se na amizade perfeita e estável?” Evidentemente, estamos fazendo abstração, aqui, de algumas coisas:

1) A perfeição da virtude humana, ao contrário do que supunham os gregos, é impossível sem que ela se conforme às virtudes sobrenaturais e sem o concurso da graça.

2) A “amizade perfeita e estável” de que falava, por exemplo, Aristóteles pressupunha uma pólis muito pequena (com efeito, dizia o Estagirita que a partir de determinado limite populacional a pólis não podia ser governada senão por um Deus).

3) A Igreja e seus doutores, conhecedores que são do verdadeiro fim último do homem, evidentemente transpolítico, já não vêem a pólis pelo prisma da autarquia, mas pelo prisma daquele fim último, razão por que a perfectibilidade da pólis será a de um fim intermediário com óbvio caráter de meio (e será sempre assintótica, dada a natureza ferida do homem). O contrário seria crer numa espécie de milenarismo. Afirmá-lo, porém, não depõe contra a doutrina do Reinado Social de Cristo; ao invés, inscreve-se nela. Com efeito, estão implícitas nesta doutrina de fé duas coisas: a) o Reino de Cristo, o único perfeito, não é deste mundo; b) mas deve regê-lo e à pólis, aperfeiçoando-a em si mesma, é claro, mas aperfeiçoando-lhe sobretudo aquele mesmo caráter de meio, de fim intermediário.

Se todavia fazemos abstração de tudo isso, é pela finalidade desta série, que, relembremos, é combater algumas formas de pensamento mágico (o que toma o efeito pela causa, o quimérico e, como veremos ao estudar o sedevacantismo, o que reconstrói idealmente a história, concluindo primeiro para depois buscar as premissas...) com as armas do bom senso ou senso comum, com o mínimo de ajuda possível da filosofia realista.

Retomando pois o fio da argumentação, se já não é possível a comunicação ou troca dos bens da alma, da virtude, então só restará a amizade fundada exclusivamente na utilidade e no prazer. Veja-se, no entanto, que já não se tratará sequer de amizade fundada numa utilidade e num prazer diretos, ou seja, aqueles que pressupõem o contato ou o conhecimento entre os cidadãos: o tamanho mesmo das nossas cidades, dos nossos países, para não falar da globalização, permite apenas a amizade de utilidade indireta. “O camponês desconhecido que cultivou o trigo de meu pão”, escreve Hecquard (ibid., p. 251), “é útil para mim [por isso] e eu sou útil para ele porque inicio uma cadeia monetária que vai até ele.” O bem do outro já não pode ser buscado pelo outro, mas por si mesmo: nessa situação, como diria Aristóteles, os amigos só se relacionam por interesse, e, onde tal é assim, as imperiosas regras tendentes a evitar querelas se alçam ao primeiro plano, substituindo a própria amizade como laço principal da pólis.

É o contrato social, conforme ao qual a lei precede o poder. Mas especialmente neste quadro dizer lei é dizer coerção, ou seja, a lei implica um impedimento à liberdade individual absoluta. Como combinar, assim, tal coerção geral, a que a maioria dos indivíduos do mundo moderno dá seu assentimento, com aquela liberdade? “Pela promessa de felicidade”, dirá com perfeição Maxence Hecquard (idem): “A felicidade de cada um é obra de todos, porque o interesse de cada um é utilizar todos os outros para essa felicidade.” E, se tal felicidade e tal interesse já não são morais, já não se vinculam à virtude, e já não buscam o bem do outro pelo outro, é porque tal felicidade e tal interesse têm caráter exclusivamente material.

Não é difícil buscar as origens filosóficas de tudo isso, e, se Tocqueville dizia que “a doutrina do interesse bem entendido me parece, de todas as teorias filosóficas, a mais apropriada às necessidades dos homens do nosso tempo” (A Democracia na América, 2, 2, 8, p. 128, apud Maxence Hecquard, op. cit., p. 252), fazia-o pensando em toda uma seqüência de filósofos em que se encontra Hume. Dizia este: “Todo e qualquer membro da sociedade tem consciência deste interesse [...]: cada um exprime esta compreensão a seus semelhantes, com a resolução tomada por ele de regular essas ações por ela, contanto que os outros façam o mesmo”, donde ser o interesse próprio “o motivo original da instauração da justiça” (A Treatise of Human Nature, III, 2, 2, pp. 498 e 499, apud idem). O interesse próprio torna-se, assim, a fonte da moralidade e, como se verá, da própria sociedade.

Sim, porque, abaixo da coerção legal e da força pública, o que mantém a coesão social é justamente o interesse, donde poder-se dizer, com Hecquard, que por um lado o cidadão já não é cidadão por necessidade, mas por interesse, e por outro que, ante a fraqueza dos indivíduos (que os leva amiúde a preferir “o que está próximo ao que está distante” [Hume, ibid., p. 536, apud ibid., p. 253]), a lei tem sobretudo o papel de obrigar os cidadãos a agir em seu próprio interesse.

“O sistema de Hume”, como diz Hecquard (idem), “completa [...] admiravelmente o da tríade Hobbes/Kant/Rousseau ao enunciar a teoria de um motivo material da ‘insociável sociabilidade’. Sem dúvida, a compreensão humiana do interesse ultrapassa largamente o lucro. Mas [para do que aqui se trata basta saber] que o homem democrático a retém por esse único aspecto [...].”

Vê-se perfeitamente, assim, a necessidade ser substituída pelo interesse como laço universal (lembremo-nos que para Aristóteles a necessidade é que era “o laço da comunidade de interesses” [Ética a Nicômaco, 1133 b 7]). Mas, como por um lado a amizade de utilidade não pode ter um fim em si e deve servir à satisfação do desejo de prazer (em sentido geral), e como por outro é impossível nas condições atuais o contato direto que este, stricto sensu, requer, tal contato é então substituído “por uma cadeia que pode ser indiretamente discreta (no sentido matemático). Esta cadeia de utilidade, de interesse, tem um suporte real: o dinheiro” (Hecquard, idem.) E, como já havia dito Aristóteles (Ibid., 1133 a 28), “a moeda tornou-se uma espécie de substituto da necessidade”.
(Continua)

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

A imortalidade da alma humana (III)

Carlos Nougué
Ao conhecer determinado objeto, o homem como que se identifica com ele; toma como lei do pensamento a lei do ser deste objeto, lei que lhe produz no espírito, como conclusões, as mesmas conseqüências a que, como propriedades concretas, dá ensejo na realidade. Mas o modo de ser desse objeto agora conhecido passa a ser no intelecto totalmente diverso do que este objeto tem na realidade — passa a ser abstrato, ou seja, imaterial. Quando determinada forma se realiza na matéria, esta a concretiza, ou seja, a materializa, enquanto a mesma forma faz a matéria ser de certo modo, excluindo-lhe a sujeição a quaisquer outras formas; no intelecto, todavia, a forma do objeto só se encontra em sua universalidade, sem característica alguma da individuação que lhe confere a matéria (sendo este conferir sua função precípua). Compreender as propriedades de um hexágono não é conhecer nenhum hexágono particular; é compreender o hexágono, ou seja, o hexágono em geral, razão por que a forma de todo e qualquer hexágono concreto, como forma geral, só existe no espírito de modo imaterial; além disso, sem deixar de ser exatamente o que é, o homem recebe a forma do objeto conhecido. Ora, a faculdade que por ambos esses motivos se identifica com tal forma não pode senão ser igualmente imaterial.

E, assim como sou eu que sinto e sofro, não pode haver dúvida quanto a também ser eu que penso. O pensamento é inquestionavelmente um ato do homem individual, e, como o princípio da unidade da atividade humana é a alma, pensar é conseqüentemente uma de suas operações. Se, porém, como acabamos de ver, o pensamento é imaterial, a alma executa esta operação não como executa as demais, isto é, através do corpo, mas independentemente deste — por si mesma. Em seu ato propriamente intelectual, pensar (ou inteligir ou conhecer) é uma faculdade exclusiva da alma. (Para as potências corporais pelas quais se dá o processo que vai desde a apreensão sensível dos objetos até o ato propriamente intelectual [exclusive], ou seja, os sentidos externos e os internos, ver, neste blog, a série de Sidney Silveira “A estrutura da ação humana em sua completude”.)

Desse modo, sendo embora a forma substancial do corpo, a alma é todavia mais que isso; a sua atividade não se cinge a animar o corpo, tendo uma operação absolutamente própria: o conhecimento stricto sensu, isto é, o conhecimento universal ou abstrato. Por isso dizia Santo Tomás que a alma humana se distingue de todas as formas substanciais dos demais entes materiais; ela é propriamente espiritual, e por isso não está de todo imersa na matéria (cf. Suma Teológica, Ia, q. 76, a. 1, corpus).

A alma humana é, pois, a única dentre as formas dos entes materiais que excede a potência da matéria; tem a seu exclusivo cargo uma operação que a matéria não pode executar. Mas, se assim é, qual será a origem de nossa alma?

Como já vimos, a atividade da alma excede em um ponto o que há em potência na matéria: com efeito, na intelecção a matéria não intervém em nada. Nunca a matéria, independentemente da forma que a ordene e governe, pode elevar-se ao plano do pensamento, dado ser este uma atividade absolutamente incompatível com o caráter concreto daquela. Assim, a alma humana não está totalmente em potência na matéria, mas, se tal é fato, é porque em verdade ela, a alma humana, absolutamente não está em potência na matéria, uma vez que toda e qualquer forma, incluída a alma humana, é indivisível. A alma humana não poderia estar apenas parcialmente em potência na matéria; julgá-lo possível seria, conseqüentemente, considerá-la divisível. Há, sim, em potência na matéria um sem-número de formas aptas a colaborar com a alma nas operações que por seu intermédio esta realiza. Não estando, contudo, compreendida a alma humana na potencialidade da matéria, há que buscar-lhe a origem em outra fonte.

Ora, se antes de ser em ato a alma humana absolutamente não estava em potência na matéria, é porque simpliciter ela... não era! A alma humana, portanto, não pode ser senão uma criação direta de Deus. Já se tentou explicar-lhe o surgimento por divisão de outra alma; mas tal é impossível, pelo motivo já visto de que as formas absolutamente não se dividem, nem quantitativamente (como tal se daria, se as formas não têm extensão por si mesmas?), nem qualitativamente, dado que determinada forma perder algumas das qualidades que a constituem implicaria, pura e simplesmente, ela deixar de ser.

Cada alma humana é, assim, criada diretamente por Deus: é produzida do nada, e portanto o seu início é absoluto. Mas de modo algum se veja nisto um milagre; ao contrário, faz parte do plano geral da natureza, tal qual o estabeleceu e ordenou o próprio Senhor. Assim como criou os anjos como entes puramente espirituais, e assim como criou entes materiais capazes de se transformar uns nos outros por geração e corrupção, assim cria Deus as almas humanas uma a uma sempre que haja as devidas precondições materiais, a saber, a união produtiva de um espermatozóide e de um óvulo humanos. Mas como devemos entender, filosoficamente, essas precondições materiais da criação da alma humana? Devemos entendê-las como causa ocasional desta criação, e não como causa eficiente sua.

Ora, é precisamente o já referido fato de exceder a potencialidade da matéria o que nos força a procurar, para a alma humana, não só uma origem diversa da das almas vegetativas e sensíveis, mas também um destino após a morte diverso do destas. Procurá-los, todavia, exige previamente de nós responder a uma censura muito comum no mundo moderno: a de que incorremos em contradição por sustentar a teoria da alma como forma do corpo e, ao mesmo tempo, afirmar a imortalidade do princípio pensante ou intelectivo. Respondamos pois a ela.

Se dizemos que a alma é a forma do corpo, é em razão da unidade de cada ente, e portanto do ente humano, e da indubitável interdependência radical dos nossos diversos aspectos. Mas as formas dos entes materiais não podem ser senão pela própria matéria. Uma vez que a matéria que informavam passa a reger-se por outras formas substanciais, deixam de ser em ato, tornando a estar em potência. Sim, porque, se tais formas são indissolúveis em si mesmas, podem porém ser destruídas per accidens — por terem desaparecido as condições indispensáveis a seu ser. Por isso, se dizemos que a alma dos animais não sobrevive à destruição corporal, é porque o psiquismo deles não ultrapassa suficientemente as condições orgânicas para sobreviver a elas; ao passo que, se dizemos que a alma humana é indestrutível e imortal por natureza, é justamente por nossa óbvia atividade eminente, a saber, a atividade propriamente intelectual — formação do conceito, juízo e raciocínio — e volitiva, a qual de maneira alguma se pode reduzir a algo como um feixe de tendências orgânicas.

(Continua.)

Em tempo 1: Enquanto dizia Santo Tomás que a alma humana, por ser uma substância imaterial, não pode ser causada por geração, mas somente por uma criação de Deus, Aristóteles, consciente por seu lado da aporia a que chegaria se admitisse a produção da alma por geração, teve de admitir, sim, a possibilidade de uma origem divina para ela, mas, por causa dos próprios pressupostos de sua filosofia, foi incapaz de concluir pela criação dela.

Em tempo 2: A minha série de artigos sobre o sedevacantismo começará na próxima semana, assim que terminar a série “O Cogito cartesiano...”, e será escrita segundo o seguinte plano:

1) A possibilidade ou impossibilidade de sedevacância segundo:
a) a fé;
b) o Magistério da Igreja;
c) o direito canônico;
d) a doutrina tomista;
e) a doutrina de outros doutores e teólogos.

2) Exame detido da Bula de Paulo IV, Cum ex Apostolatus Officio, o grande cavalo de batalha dos sedevacantistas, e de sua tradução por estes, sempre segundo o Padre Ceriani.

3) A obediência devida a papas que deponham a sua infalibilidade (e possam, portanto, incorrer em heresia material), segundo o Padre Álvaro Calderón.

4) A Igreja e a história.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Sedevacantismo, um erro capital

Sidney Silveira
Anunciou-se ao final de outro texto que o Nougué apresentará no blog os problemas — insanáveis, sob variados ângulos! — acarretados pela tese dos chamados sedevacantistas, que afirmam o seguinte: a Sede de Pedro está vaga, ou seja: o atual Papa não é Papa, assim como os dois que o precederam também não o teriam sido, em razão de presumíveis heresias em que tenham incorrido. Abro eu o tema, para que ele depois prossiga.

Um dos documentos do Magistério em que os sedevacantistas apóiam a sua tese é a Bula de Paulo IV Cum ex Apostolatus Officio, de 1559, da qual o Nougué falará amiúde noutra oportunidade. Mas lembro desde logo que, em qualquer tese mal formulada, não são os argumentos que determinam a conclusão, mas a “conclusão” que busca qualquer argumento para afirmar-se, como muito bem destaca o Padre Juan Carlos Ceriani, canonista dedicado ao problema de que vamos tratar, ao qual este pensamento se aplica muito bem.

Antes de tudo, vejamos a definição de heresia, tanto no Código de Direito Canônico de 1917, como no Código atualmente vigente.

“É herege quem, após ter recebido o batismo, conservando o nome de cristão, nega pertinazmente alguma das verdades que hão de ser cridas com fé divina e católica, ou as põe em dúvida” (Post receptum baptismum si quis, nomen retinens christianum, pertinaciter aliquam ex veritatibus fide divina et catholica credendis denegat aut de ea dubitat, haereticus est, Código de 1917, nº 1.325, parágrafo 2º).

Ou ainda:

“Chama-se heresia a negação pertinaz, após o recebimento do batismo, de alguma verdade que se há de crer com fé divina ou católica, ou a dúvida pertinaz sobre ela” (Dicitur haeresis, pertinax, post receptum baptismum, alicuius veritatis divina et catholica credendae denegatio, aut de eadem pertinax dubitatio, Código atual, nº 751).

Por ora, não enumerarei os tipos de heresia (formal, material, interna, externa, materialmente oculta, formalmente oculta, pública, notória de fato, notória de direito, etc.). Deixo isto para outra ocasião. Mas, seguindo o que o Padre Ceriani afirma num dos seus livros sobre o tema, deixo registrado que, para comprovar a sua errônea tese, os sedevacantistas precisariam vencer três dificuldades iniciais: 1ª. Mostrar como se prova a heresia formal de alguém, em geral; 2ª. Provar a heresia formal do Sumo Pontífice, especificamente; . Provar a perda do Pontificado, caso o Papa incorresse em comprovada heresia formal. E, depois, resolver ainda o problema de quem aplicaria a pena eclesiástica devida, caso tudo isto se comprovasse.

Dada a relevância do tema, caminhemos devagar e nos fixemos no que o Padre Ceriani — apoiado em vários documentos do Magistério — adverte:

a) Nem toda heresia faz perder a fé. A heresia material (que é o erro involuntário ou então sem pertinácia nem consciência clara) não é imputável.
b) Pode-se perder a fé por outro pecado que não seja a heresia.
c) Nem toda heresia faz incorrer em excomunhão.
d) A heresia externa (a que é manifestada publicamente), pela qual se incorre em excomunhão, não faz perder ipso facto a jurisdição, no caso das autoridades eclesiais.

A estas dificuldades agrega-se, de acordo com Ceriani, o princípio da imunidade judicial do Sumo Pontífice, já que, no tocante à fé, a Santa Sé não pode ser julgada por ninguém, segundo o Código de Direito Canônico e uma longa tradição magisterial, como vemos a seguir:

Nicolau I: Na carta Proposueramus quidem, diz que nem por todos os clérigos, nem pelo povo, nem pelos reis pode a Santa Sé ser julgada. (Dz. 330)
São Leão IX: Na carta Pax hominibus, de 1053, afirma que não é lícito a nenhum homem pronunciar um juízo antecipado contra a Sé Suprema, caso em que receberia o anátema de todos os Padres e de todos os Veneráveis Concílios. (...) Assim, Pedro e seus sucessores têm livre juízo sobre toda a Igreja, e ninguém pode fazê-los mudar de lugar, pois a Sé Suprema por ninguém pode ser julgada. (Dz. 352-353).
São Gregório VII: No seu dito papal nº 19, formula um texto imperioso, nas acertadas palavras do Padre Ceriani: Quod a nemine (romanus Pontifex) judicari ebeat. Em suma: ninguém pode julgar o Papa, quanto à fé.
Bonifácio VIII: Esse Papa faz afirmação simular na Bula Una Sanctam. “Se o poder terreno se desvia, será julgado pelo poder espiritual [inferior]; se o poder espiritual inferior se desvia, será julgado pelo espiritual superior; mas se o poder da autoridade suprema [do Papa] se desvia, só Deus o poderá julgar, pois a nenhum homem é dado esse poder”. (Dz. 469).
Clemente VI: Na carta Super quibusdam, frisa o seguinte: Se creste e crês que tenha existido, que existe e que existirá a suprema e preeminente autoridade, assim como o poder jurídico dos Romanos Pontífices — ou seja: daqueles que foram, de Nós que somos e dos que, no futuro, o serão —, crês então que ninguém pôde no passado julgá-los, nem a Nós no presente e nem aos que virão, no futuro. Todos foram preservados, se preservam e se preservarão para ser julgados somente por Deus, e, no tocante a nossas sentenças [relativas à fé], (...) não se pôde, não se pode e não se poderá jamais apelar a nenhum juiz”. (Dz. 570).

Poderíamos aduzir várias outras citações. Mas estas bastam para mostrar o seguinte: ninguém pode concluir, de direito, que o Sumo Pontífice seja formalmente um herege sem, com isto, emitir no ato um juízo que só pertence a Deus (...a solo Deo, non ad hominibus, potest judicari).

Após vencer essa baita dificuldade, teriam os sedevacantistas de responder ao Concílio Vaticano I, que ensina o seguinte: o Papa não é Vigário da Igreja, mas do próprio Cristo (Dz. 1823). Isto implica que a Igreja não tem o poder de julgar ou de depor um Papa, o que é confirmado pelos cânones 1.556 e seguintes do Código de 1917.

Não trataremos aqui em detalhe dos casos em que houvesse renúncia tácita do Romano Pontífice, ou negligência em assumir o seu supremo cargo (por exemplo: se ele não se apresentasse para a sua consagração), ou de outras conjecturas já tratadas por grandes canonistas do passado — como, por exemplo, as hipóteses de abandono da residência da Santa Sé sem motivo razoável; apresentação do Papa num tribunal civil para contrair matrimônio e fixar residência alhures; seu alistamento em milícias seculares, para atuar no front; afiliação em uma seita acatólica ou cismática, rompendo com isto todo o seu vínculo com o Catolicismo; etc. Nestes e noutros casos de abandono completo e público da fé, poderia alegar-se que a Sede está vacante. Mas poderíamos aplicar tal casuística ao Papa Bento XVI, ao Papa João Paulo II e ao Papa Paulo VI? Firmemente respondemos: não!

O Padre Ceriani diz que os fiéis e toda a Igreja universal poderiam, sim, pensar (nos casos de acachapante evidência) que o Papa caiu materialmente em heresia, mas nunca, jamais, em tempo algum, pensar ou afirmar que tenha caído formalmente em heresia, pois para emitir tal juízo ninguém, seja leigo ou clérigo, tem autoridade — mas apenas Aquele que a delegou a Pedro e a todos os seus sucessores: o próprio Cristo.

(continua, com o Nougué)

Em tempo: Alguns católicos liberais tentaram (nos primeiros meses do Contra Impugnantes) identificar-nos, a mim e ao Nougué, como pessoas contrárias ao Papa atual, como são os sedevacantistas, só porque mencionamos, aqui e ali, o Magistério bimilenar da Igreja. Calaram-se depois de alguns petelecos intelectuais, e também depois de ter a sua malícia exposta aos muitos leitores que o blog vem tendo. Outros ainda querem fazer isso, mas sempre no terreno das pequenas alusões e dos murmúrios de coxia, ou então com a tentativa de atirar-nos “cascas de banana”, como se disse noutro lugar. É claro que essas pessoas não afirmaram nem afirmarão abertamente tais coisas — e outras baboseiras piores, como a de que “excomulgamos” fulano ou sicrano. Entre outras coisas, simplesmente porque têm medo de se expor, ou melhor: têm medo de perder o debate aos olhos das pessoas para quem fazem pose — debate que, na prática, gostariam de vencer sem precisar ter razão. Mas, para isto, precisarão é de um suplemento de testosterona, de uma boa dose de coragem e de muito blá-blá-blá.