quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Mais um "tira-gosto": começa a ganhar forma final a apresentação ao livro "As Heresias de Pedro Abelardo"

Sidney Silveira


Compartilho com os leitores do Contra Impugnantes o começo da apresentação à edição bilíngüe do livro "As Heresias de Pedro Abelardo", editado pela Sétimo Selo, a qual assinarei juntamente com o meu irmão, o Prof. Ricardo da Costa — cabendo a ele a parte histórica (com detalhes interessantíssimos e deveras reveladores) e a mim, os aspectos relativos ao conceito de heresia e ao que estava implicado, do ponto de vista eclesiástico, neste famoso embate. Como se frisou noutra ocasião, estamos correndo para lançar a obra no evento Santo Tomás, médico da alma, a realizar-se no próximo dia 24/09.


Apresentação


BERNARDO DE CLARAVAL, ARQUÉTIPO DO BOM COMBATENTE



Ricardo da Costa e Sidney Silveira*


Neste livro encontra-se o essencial do episódio em que se enfrentaram São Bernardo de Claraval (1090-1153), grande corifeu da Ordem Cisterciense no século XII, e Pedro Abelardo (1079-1142), retórico e lógico que tomou parte na famosa querela sobre os universais e se tornou famoso, nos séculos seguintes, devido ao seu malfadado romance com a sobrinha de um cônego — Heloísa —, narrado pelo próprio Abelardo na Historia Calamitatum, obra também conhecida com o nome de Abælardi ad amicum suum consolatoria. Trata-se da demonstração, por parte de Bernardo, das principais heresias de Abelardo, com destaque para o monarquianismo ou patripassianismo, doutrina que rejeitava a concepção da Santíssima Trindade e proclamava a unicidade absoluta de Deus, nisto contrariando cabalmente o mistério do Deus uno em natureza e trino em Pessoas.


Para dimensionar a questão, é preciso antes de tudo saber o que é uma heresia e apontar o seu caráter deletério para a Igreja. Depois, compreender quais foram as heresias de Abelardo que combateu Bernardo. E, por fim, lançar um olhar histórico-crítico sobre o embate entre estes dois homens, com o intuito de desfazer a visão deformadora que, nos últimos séculos, fez de Bernardo uma espécie de algoz autoritário, e de Abelardo, a “vítima” impedida injustamente de exercer a sua liberdade de expressão. Ver-se-á com toda a clareza o quão distante isto se encontra da realidade dos fatos, e como o abade cirsterciense pode ser considerado uma espécie de arquétipo do bom combatente.


Antes de tudo vale ressaltar que a história dos dogmas da Igreja caminha no mesmo compasso das heresias: incontáveis vezes foram eles proclamados de forma solene pelo Magistério eclesiástico para combater doutrinas ou opiniões derrogadoras da fé — e, portanto, lesivas ao fim último buscado pela Igreja militante no mundo: a salvação das almas. Excluir esse fim de qualquer análise historiográfica, além de denotar uma particular espécie de má-fé hermenêutica [1], é colocar-se previamente em situação de não poder compreender o foi a Cristandade e o que é a Igreja.


Igreja e heresia


A palavra “heresia” provém do vocábulo grego αρεσις, e do latim hæresis. Significa “eleição”, “escolha”, “opção”. Trata-se, na prática, de uma pertinaz adesão a conceitos divergentes ou contrários às verdades de fé que integram o corpo doutrinário da Igreja — ocasionando a este uma grave ruptura na unidade e pondo em risco a sua perenidade no decorrer dos séculos. Noutras palavras, é a literal deturpação de uma proposição de fé, mantida pelo herege mesmo após as advertências das autoridades eclesiásticas baseadas na Sagrada Escritura, na Tradição, no Magistério e nos argumentos teológicos e filosóficos que demonstram a absurdidade intríseca da heresia. Por aqui se entrevê a primeira característica da heresia: versar exclusivamente sobre matéria de fé [2], motivo pelo qual é considerada formalmente uma infidelidade, chegando, nos casos mais graves, ao cisma ou à fundação de seitas que de cristãs têm apenas alguns traços esparsos, chamados pelos escolásticos de vestigia Ecclesiæ, ou seja: fatores insuficientes para imprimir caráter eclesial a comunidades cismáticas, heréticas e/0u excomungadas, as quais sempre têm alguma heresia como pedra angular da doutrina.


Tal é o caráter corruptor das heresias para a fé cristã que, desde sempre, o Magistério, os Santos Doutores e os teólogos as enfrentaram com todo o vigor. Já na época dos Padres da Igreja, Santo Irineu escrevia o Adversus hæreses, contra heresias gnósticas; contra o arianismo colocou-se Santo Atanásio; contra o donatismo, o maniqueísmo e o pelagianismo, o grande Santo Agostinho deixou-nos obras memoráveis; os iconoclastas encontraram em São João Damasceno um inimigo implacável; contra a heresia cátara, já na Idade Média, escreveu Santo Antônio de Lisboa as suas páginas mais eloqüentes e ácidas; Santo Tomás de Aquino, por sua vez, combateu praticamente todas as heresias anteriores à sua época, e para ter idéia disto basta ler, na Suma Contra os Gentios, o seguinte subtítulo: Liber de veritate catholicæ contra errores infidelium. Os exemplos são incontáveis e enumerá-los seria ocioso.


(...)


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1- Conforme se frisa na apresentação ao livro Raimundo Lúlio e As Cruzadas, quando a Igreja diz que a heresia deve ser combatida por ser fruto da cegueira instilada pelo “pai da mentira” (pater mendacii), por exemplo, quer o historiador acredite ou não no demônio, quer acredite ou duvide da insensatez das doutrinas heréticas ali aludidas, não é lícito nem hermeneuticamente defensável que pressuponha haver — por trás dessa razão claramente expressa pela autoridade eclesiástica — outras motivações ocultas, de ordem política, econômica, histórica, filosófica, etc. A menos que estivessem consignadas ou pelo menos aludidas nas fontes. In Silveira, Sidney. “Breve Nota Introdutória”. In. Raimundo Lúlio e As Cruzadas, Sétimo Selo: Rio de Janeiro, 2009, p. iii No que diz respeito à Igreja, as interpretações forçosas vem tornando-se um grande vício da historiografia contemporânea, que deturpa as fontes para fazê-las afirmar, muitas vezes, o contrário do que está claramente expresso nos documentos. Veremos isto nas páginas seguintes acerca do embate entre São Bernardo e Pedro Abelardo.


2- Observa Santo Tomás de Aquino na Suma Teológica que, a princípio, uma opinião falsa em coisas estranhas à fé não tem o condão de corromper a doutrina cristã, dando como exemplo os erros em matéria de geometria ou campos afins a este — casos em que não pode haver heresia. No entanto, acrescenta o grande Doutor da Igreja em sua obra mais conhecida que de duas maneiras pode uma verdade pertencer à fé: a) uma direta e principal, quando versa diretamente acerca de um artigo da fé. b) outra derivativa e secundária, quando versa sobre algo que, embora não explicitamente referido a um artigo específico da fé, levado às últimas conseqüências traz consigo a corrpução dele. Ver Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 11, art. 2.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

O macaco tá certo?


Sidney Silveira

Indico a leitura, neste link ddo SPES, do texto intitulado "O Conto do Macaco", de Raúl Leguizamón, membro da FSSPX. Ilustrativo em alguns pontos!

domingo, 28 de agosto de 2011

Direto do "forno": notícias editoriais — e outro trecho de um belo livro

Sidney Silveira


Enfim, todos os textos do Protréptico, de Clemente de Alexandria, foram enviados à editora É, que em breve começará a preparar a edição desta importante obra. Deu um grande trabalho a revisão e numeração do texto grego, mas os problemas foram todos sanados, graças ao trabalho final do meu querido amigo Luiz Astorga, que ajudou imensamente, e ao da Prof. Rita Codá — que assina a tradução desta edição bilíngüe. Termino também, finalmente, com a ajuda do Nougué na revisão, o estabelecimento do texto do livro Inteligência e Pecado em Santo Tomás, de Celestino Pires, que começará a ser diagramado nesta semana. E, se tiver fôlego, acabarei de escrever também nos próximos dias a apresentação ao livro As Heresias de Pedro Abelardo, de São Bernardo, que está praticamente todo diagramado, esperando apenas a cereja do bolo para ser enviado à gráfica...


Se Deus quiser, apresentaremos estes dois últimos livros, pela Sétimo Selo, no dia do evento Santo Tomás, médico da alma.


Por fim, o Astorga e o Prof. Nougué porão mãos à obra, também por estes dias, à revisão final da Questão Disputada Sobre a Alma, obra-prima das mais importantes da lavra de Santo Tomás de Aquino — que sairá pela É, como primeiro livro de uma coleção tomista coordenada por mim. Quem assina o prefácio do livro é Carlos Casanova, tomista de truz, autor do denso Reflexiones metafísicas sobre la ciencia natural. A propósito, Casanova é orientador de doutorado, no Chile, do angelólogo Luiz Astorga, mencionado várias vezes acima.


Abaixo, deixo aos leitores do Contra Impugnantes mais um tira-gosto do livro Inteligência e Pecado em Santo Tomás.


Os negritos são meus.


“(...)


Pecado e último fim


Como se vê o pecado original tem como sujeito de inerência a essência da alma, daí deriva para as potências e instala nelas a desordem dos seus atos. Inversamente o pecado atual tem como sujeito de inerência as potências. A pessoa orienta-se para o fim último ou dele se aparta pelos seus atos; mas nós recebemos uma natureza já desviada do último fim. Tanto o pecado original como o atual implicam uma desordem em relação ao último fim do homem: o pecado de origem uma desordem ao nível da natureza; o pecado atual ao nível da pessoa. Em ambos os pecados existe verdadeira culpa porque dependem duma vontade. O pecado original é culpa, em nós, porque somos solidários, na natureza, com a vontade de Adão. O pecado atual depende da vontade individual.


Quando Santo Tomás busca o que é formal no pecado original e no pecado atual encontra essa formalidade precisamente na desordenação ao último fim. Aqui se encontram, extrinsecamente, as duas espécies de pecado; ambos consistem, formalmente, num desvio do fim último [1].


Pecabilidade concreta


Mas pela análise anterior da influência do pecado original na ação em geral, podemos estabelecer uma conexão mais concreta e mais clara entre o pecado de origem e o pecado atual. Podemos dizer que a pecabilidade do homem, no plano concreto em que nos situamos, depende estreitamente do pecado original. A raiz da pecabilidade no plano filosófico situa-se a outro nível, ao nível da contingência do ser e do agir[2]. No plano teológico da Revelação, a forma concreta pela qual somos arrastados ao pecado encontra explicação precisamente no fato de que somos uma natureza corrompida. O pecado de Adão foi, segundo Santo Tomás, um pecado do espírito; e não podia ser de outro modo porque todas as tendências inferiores se lhe sujeitavam e só se podiam rebelar depois que a vontade se subtraiu ao domínio de Deus e perdeu, em conseqüência, o seu senhorio[3].


Perdida a harmonia primeira, o homem peca solicitado pelos apetites que o dividem. Essa divisão dentro do homem provém do pecado original. Assim Santo Tomás pode afirmar que o pecado de origem contém virtualmente todos os outros[4]. A tendência que nos impele ao pecado radica nesta desordem fundamental da natureza; o pecado com que nascemos. Não que o pecado atual não seja fruto da liberdade; a responsabilidade da pessoa, se fica diminuída, não fica anulada. Mas a vontade sob os impulsos de outras tendências, sob os ímpetos da “sensualidade” nascidos da desordem da natureza, não resiste ao pecado. E uma tese da teologia da graça ensina-nos que nem sequer a lei natural podemos observar por muito tempo sem o especial auxílio divino.


Este pecado, escreve Bernard, é tão radical e universal que o outro, o pecado atual, parece apenas ser o agravamento e a triste conseqüência do primeiro. Em certo sentido o pecado pessoal não faz mais que reproduzir, por imitação, a obra nefasta do primeiro homem. Assim vemos delineada em toda a sua extensão imensa a trágica história do paraíso perdido [5]. Assim se encontram em íntima solidariedade o pecado de Adão e o pecado pessoal de cada homem. Não apenas uma imitação, como se o homem não fizesse mais que seguir o exemplo do primeiro membro da nossa raça. Há mais. Os vínculos são mais estreitos. Para Santo Tomás, a concupiscência habitual constitui parte essencial do pecado original; ela inclina ao pecado atual [6]. Impelida pela concupiscência, a vontade cede e não guarda a orientação primeira que deve reconquistar pelos seus atos informados pela graça. “O que dá a entender, escreve ainda R. Bernard, que o pecado original é o fundo da alma humana desviado das grandes coisas, e orientado para outra coisa, como o pecado atual consiste num ato desviado do último fim e orientado para um bem caduco”[7].”


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1-“In quolibet peccato est invenire aliquid quasi formale et aliquid quasi materiale. Si enim consideremus peccatum actuale, ipsa substantia actus deordinati materialiter in peccato se habet; sed deordinatio a fine formale in peccato est... Sicut autem peccatum actuale consistit in deordinatione actus, ia etiam peccatum originale consistit in deordinatione naturae. Unde oportet quod ipsae vires deordinatae, vel deordinatio virium sint sicut materiale in peccato originali, et ipsa deortinatio a fine sit ibi sicut formale”. II Sent. XXX, q. 1, a. 3, sol. “Ita tamen quod carentia originalis iustotoae est quasi formale in peccato originali, concupiscentia autem est quasi materiale; sicut et in peccato actuali aversion ab incommutabili bono est quasi formale, conversio autem ad commutabile bonum est quasi materiale; ut sic intelligatur in peccato originali aversa anima et conversa, sicut in peccato actuali actus, ut ita dicam, aversus et conversus”. Mal. 4, c.; cfr. I-II, 82, 1, ad 2.

2- “La possibilité de faillir est la possibilité absolument propre de la liberté finie en tant que telle”. De Finance, J., Existence et Liberté, Paris, Vitte, 1955, p. 284. Cfr. Geffré, C.-Y., La possibilité du péché, “Rev. Thom.” 57 (1957), 213-245.

3- II-II, 163, 1, c.; Mal. 7, 7, ad 12; ad 13; ad 16; II Sent. XXII, q. 1, a. 1, sol.

4- “Peccatum originale quodammodo est actualium peccatorum principium, inquantum fomes ad actualia peccata inclinat. Omnes effectus sunt virtute in sua causa. Peccatum ergo originale per essentiam est unum sed virtute multiplex”. II Sent. XXXIII, q. 1, a. 3, ad 1; Mal. 4, 8, ad 1; I-II, 82, 2, ad 1.

5- Bernard, R. O. P., Le Péché, trad. française de la Some Théologique de Saint Thomas d’Aquin, éd. de la Rev. Des Jeunes, Paris, 1931, p. 322.

6- I-II, 82, 3; Mal. 4, 2; 3, 7, sub fine; II Sent. XXX, q. 1, a. 3.

7- Bernard, R., O. P., o. c., p. 344.

"TV" Contra Impugnantes: A Realeza de Cristo

Sidney Silveira

Hoje abundam nos seminários católicos papagaios filosóficos e teológicos de todos os tipos, e para todos os gostos: kantianos, gadamerianos, heideggerianos, blondelianos, rosminianos, husserlianos, ricouerianos, espinosistas, etc. Ora, se a formação dos sacerdotes fosse orientada à profissão de historiador das idéias filosóficas ou religiosas/teológicas, menos mal. Ocorre que eles recebem (ou deveriam receber) formação para algo muito distinto — um ofício divino: perdoar os pecados in persona Christi e ministrar os sacramentos, assim como para as atividades doutrinais e pastorais que a estas estão subordinadas. A formação filosófica e teológica dos padres, portanto, jamais poderia ser regida pelo ecletismo, e sim pela doutrina perene da Igreja, com o conseqüente combate a tudo quanto a ela se oponha, pelo bem das almas. Como sempre se fez, até o modernismo varrer tudo o que é tradicional para baixo do tapete.

Em um momento da história eclesiástica tão dramático como este, portanto, nunca foi tão necessário simplesmente repetir, para os católicos (principalmente seminaristas e padres, mas também para os leigos), a doutrina tradicional, sobretudo a obra do Doutor Comum: Santo Tomás de Aquino. Trata-se de um grande serviço, e é o que faz o Prof. Carlos Nougué neste trecho de aula sobre a Realeza de Cristo, no qual menciona, entre outras coisas, a omniabrangência dessa Realeza, e que Cristo é Rei a um triplo título:


> Por divindade, implicadas aqui a geração eterna do Filho e a Sua consubstancialidade com Deus Pai. Ou seja: Ele é um com Deus. É Deus. E a realeza de Deus não pode senão ser total.

> Por (dupla) natureza, implicada aqui a união hipostática, ou seja: Cristo é verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Ora, sendo Ele a divindade visível para os homens, isto implica que, como criaturas racionais, devemos reconhecer em Cristo o seu império absoluto sobre as nossas vidas. Império que, a propósito, se estende também àqueles que não O aceitam, pela fé, como o Senhor nosso.

> Por mérito. Ou seja, a efusão do sangue de Cristo na Cruz é causa meritória da salvação. Ele tem, pois, o mérito sobrenatural de redimir todo o gênero humano, e, portanto, tudo quanto é humano deve ordenar-se a esta supremacia absoluta de Cristo, de quem somos eternamente devedores.

Como se verá, Nougué nesse trecho lembra da tríplice analogia feita por Santo Tomás para explicar a Realeza de Cristo. Vale a pena assistir. A propósito, a aula inteira encontra-se no blog do SPES.


P.S. Agradeço ao pessoal do Frates in Unum por esta divulgação do evento Santo Tomás, médico da alma.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Garrigou-Lagrange e Duns Scot

Sidney Silveira


No excepcional livro Dieu, son existence et sa nature – solution thomiste des antinomies agnostiques, o Pe. Reginaldo Garrigou-Lagrange afirma, a certa altura, que aludirá às profundas divergências entre as escolas tomista e scotista. E adverte expressamente que o fará não por amor à polêmica, pois isto seria ridículo: um teólogo como ele jamais se deixaria levar por um polemismo estéril, próprio do vale-tudo retórico de conformação erística. Seja como for, o fato do qual estava absolutamente ciente Garrigou é que, por trás das divergências teológicas entre essas duas escolas, havia algo profundo: concepções de mundo, de Deus e de Igreja contraditórias, em pontos cruciais.


O ponto de partida da crítica de Garrigou a Duns Scot é a distinctio formalis deste último, à qual fizemos referência noutro texto, e é a seguinte: segundo o frade franciscano do século XIV, existe, anteriormente a qualquer consideração do espírito, uma distinção atual-formal de estratos metafísicos em cada ente. Por exemplo, no indivíduo Sócrates haveria várias “formalidades” concomitantes em ato: animalidade, substancialidade, racionalidade, corporeidade, etc. — idéia retirada, quase ipsis verbis, da obra de Avicena, com sutis matizações e acréscimos.


Mostra o teólogo e metafísico francês que os escolhos desta concepção scotista são, em verdade, insuperáveis. A título de exemplo: aplicada a Deus, essa tese não pode conciliar-se com a absoluta simplicidade da essência divina [1]. Aqui indaga o grande neotomista: poderia haver em Deus uma distinção semelhante à que existe entre a essência da alma humana e as suas faculdades? Neste contexto, o Pe. Garrigou põe a nu, com várias provas, a absurdidade da idéia scotista (implicada na distinctio formalis) de que haveria uma realidade intermédia entre o ente real e o ente de razão: a “representação” ou esse objectivum, que descambará nos idealismos gnosiológicos mais loucos da filosofia moderna.


Ora, nos casos em que o intelecto chega à verdade, a partir dos movimentos de sua potência imaterial capaz de assimilar a forma dos entes, é absolutamente necessário que o que o espírito distingue formalmente tenha fundamento nalguma distinção real no objeto considerado, o qual é existente fora e além do nosso pensamento, conforme aponta Garrigou — baseado na premissa evidentíssima de que toda distinção ou é de razão ou será, necessariamente, real; a propósito, uma distinção formal não real seria mais ou menos como conceber racionalmente um ser sem entidade — absurdo lógico. Neste contexto, se espanarmos bem os argumentos de Scot, veremos com clareza que a distinctio formalis nada mais é, na prática, do que uma mal-disfarçada distinção de razão, equivocada em seus princípios.


Reiteremos, pois: uma distinção atual-formal entre o Ser de Deus e os atributos divinos é inconciliável com a absoluta simplicidade da natureza divina, demostrada por Santo Tomás na Suma. A única distinção em Deus — prova-o cabalmente Garrigou — não é de substratos metafísicos, mas sim entre as três Pessoas divinas. E tal distinção trinitária é uma distinção de relação, e não formal, devido ao fato de as Pessoas divinas terem a mesmíssima natureza absolutamente simples, quanto ao ser. Portanto, distinguem-se as Pessoas divinas tão-somente nas relações que se dão no operar trinitário (mas mesmo a existência da Trindade só a podemos conhecer pela Sagrada Escritura). E, no que diz respeito ao esse, com muito acerto proclamara o Magistério da Igreja, no Concílio de Florença, a absoluta simplicidade divina que pressupõe a identidade perfeita, em Deus, entre essência e ser:


"In Deo omnia sunt unum et idem” (Denz. n. 705).


A tese univocista de Duns Scot, levada as últimas conseqüências, não poderia senão descambar, por um lado, no panteísmo (ao modo de Espinosa), e por outro no monismo absoluto (ao modo de Parmênides). É o que apontam algumas páginas luminosas de Garrigou — seguindo nisto a tradição da escola tomista de combate ao scotismo, que tem em Tommaso de Vio, o Cardeal Caetano, um dos seus notáveis. É evidente que o teólogo francês conhecia perfeitamente a passagem da Ordinatio na qual Scot afirma que o ser não pertence a nenhum gênero (o que está correto!), mas demonstra que isto, em si, não implica creditar ao ser um caráter de unívoco, como em Parmênides, entre outras coisas porque os modos de ser que diferenciam os entes entre si — e que distinguem os entes do Próprio Ser (Deus) — se dão na realidade, e são extrínsecos ao espírito de quem os observa. Em resumo, tudo o que muda, ou se movimenta, é ser, sim, mas não do mesmo modo...


Ademais, a isto o tomismo histórico já contrapusera, de forma apodítica, o fato de que a tese de Scot pressupõe a afirmação e a negação de predicados unívocos num mesmo sujeito, agredindo frontalmente o princípio de não-contradição. E vale dizer mais: se tal tese está errada quando referida a Deus, como acima mostramos, ela é problematicamente aporética quando aplicada aos entes compostos de matéria e forma, ato e potência, substância e acidentes. Isto porque, em sentido metafísico estrito, a identidade de um ente consigo mesmo é de proporcionalidade, e não absoluta, como lembra Garrigou citando o Comentário aos Analíticos Posteriores de Aristóteles, escrito por Santo Tomás. Assim, sem dúvida, cada ente é idêntico a si mesmo na ordem do ser, pois sempre haverá nele alguma distinção (real ou de razão) com relação a todos os demais. Isto é um fato. Mas tal identidade não é unívoca em sentido absoluto, dado o fato de os entes serem compostos — ou que implica dizer que neles a essência não se identifica em grau máximo com o ato de ser.


Garrigou cita ainda várias tentativas da escola scotista de “atenuar” a tese univocista, aproximando-a de alguma maneira da analogia tomista. No parecer do nosso teólogo, isto mostra mais a debilidade do que a força da tese. Ocorre que o problema é, na verdade, muito mais complexo, chegando a alcançar a distinção teológica entre natural e sobrenatural, que na opinião de Scot é algo dependente apenas do livre-arbítrio de Deus, nada tendo a ver com a natureza dos entes e do Próprio Ser.


Mas este é assunto para outro texto.

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[1] Lembremos que está pressuposta nesta crítica de Garrigou a tese univocista de Duns Scot, mencionada no texto intitulado “Duns Scot – ancestral da modenidade”, publicado há tempos no Contra Impugnantes.

domingo, 21 de agosto de 2011

Festa do Mosteiro da Santa Cruz

Sidney Silveira

O Nougué pede-me que divulgue a festa da Santa Cruz, a realizar-se no próximo dia 18 de setembro no Mosteiro da Santa Cruz, em Nova Frigurgo (RJ), o que faço com gosto, pondo acima o "link" do SPES.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

As relações entre a inteligência e a vontade (VIII): o pecado (2)

Sidney Silveira


Fazendo o estabelecimento do texto da obra Inteligência e Pecado em S. Tomás, do português Celestino Pires, para a edição que em breve apresentaremos ao público brasileiro (corro para que seja durante o evento Santo Tomás, médico da alma), deparo uma vez mais com capítulos magníficos, desses que, ao ser relidos, sempre trazem novas luzes, como habitualmente ocorre com textos de real valor filosófico.


No denso capítulo “Natureza da ignorância ou do erro no pecado de paixão”, a partir de uma distinção de Santo Tomás entre pecado “de ignorância” (ex ignorantia) e pecado “com ignorância” (cum ignorantia) — aludida neste texto da presente série —, Celestino faz um passeio pelos modos segundo os quais a ignorância pode ser classificada propriamente como pecado ou, então, como causadora do pecado. O caso aqui abordado é bem tópico: o da ignorância ocasionada pela paixão [1], ou seja, por um movimento do apetite sensitivo capaz de fazer a inteligência não atualizar um conhecimento habitual. É literalmente quando a paixão faz o homem perder a dimensão da temporalidade e agir como que imantado pelo nunc, ou seja, aprisionado ao momento presente. Isto instaura nele uma desordem psicológica, um descentramento teleológico de suas potências anímicas, dada a perda da noção de que os atos humanos devem ordenar-se retamente uns aos outros.


Diz o Aquinate:


“Se o homem peca por causa da ignorância que lhe sobrevém quando está sob o domínio da paixão, por exemplo da concupiscência ou da ira (puta concupiscentiæ vel iræ), é bom investigar que espécie de ignorância é esta. Porque é evidente que o incontinente, antes da paixão, não julga dever fazer o que de fato faz [quando] impelido por ela”. (Tomás de Aquino, Comentário à Ética, VII, lec. 2, n. 1314).


A investigação do gênio medieval revela que este tipo de ignorância não existe antes da paixão (antequam passio superveniat), e não permanece depois que o influxo da imagem apaixonante cessa. Seja como for, em meio a uma paixão intensa o homem só consegue ver o aqui e agora. Trata-se, como diz Celestino Pires, de uma dolorosa singularização do tempo, um sentir-se premido pela hora presente querendo dar a ela uma resolução imediata — de forma tão mais violenta quanto mais a paixão afetar as potências superiores da alma. Somente quando cessa a paixão, o homem carnal — ou seja, o que habitualmente não logra ordenar os seus apetites — consegue julgar o presente com categorias de futuro, quer dizer, ter a reta estimativa dos fins de sua ação (cessante passione quae cito transit, remanet in recta aestimatione finis, diz o Aquinate noutro trecho do Comentário à Ética). Em palavras breves, o presente havia adquirido um valor de “absoluto” na consciência, e isto deixa de acontecer exatamente quando a paixão interrompe o seu influxo.


O aflitivo, se tomarmos a extraordinária psicologia de Santo Tomás como efetiva, é que as paixões nascidas de pecados espirituais (como a soberba, a inveja, o orgulho, etc.) tendem a se transformar em qualidade duradoura na alma, quase uma “segunda natureza”, nas palavras de alguns tomistas, o que indica o seguinte: neste caso, o apaixonado tende a multiplicar, contra si e contra o próximo, os atos desordenados fomentados pela paixão. Mas não por qualquer paixão, e sim pela paixão concomitante com a ignorância no ato mau, que é a que abordamos no momento.


Em breves palavras, esta redução da dimensão temporal — a qual induz o homem a tantos pecados e a concentrar patologicamente sua psique no tempo presente — provém precisamente da paixão. Entre outras coisas porque a inteligência atinge os singulares por intermédio dos sentidos, e não à-toa, neste contexto, Santo Tomás afirma que a paixão é uma faculdade do presente (“ex passione contigint quod aliquid iudicetur bonum prout nunc”), pois radica no corpo. Assim, a paixão, solicitada pela presença veemente do objeto — no caso do ódio, por exemplo, pela imagem (phantasma), em geral errônea e deformada, que o apaixonado faz da pessoa a quem odeia —, concentra toda a significação da vida no momento presente a partir dessa imagem que acossa a alma.


No que tange às relações entre a inteligência e a vontade, portanto, é possível haver um déficit nessas potências quando sucumbem à força de potências sensitivas não ordenadas retamente. No caso que no momento interessa, a paixão pode:


Ø causar a ignorância acerca dos princípios da ação humana, podendo chegar à ignorância invencível (que abordamos de passagem no texto intitulado “meandros da ignorância”);


Ø causar a ignorância sobre a aplicação do princípio universal ao caso singular concreto;


Ø causar a chamada “ignorância de circunstância”, da qual o homem não é, em princípio, culpável, na medida em que é impossível conhecer, com ciência perfeita, todas as circunstâncias da ação.


São vários os pontos em que Santo Tomás aborda o problema de como a paixão pode causar a ignorância: entre outros, no Comentário às Sentenças; no Comentário à Ética; no De Malo; e na Suma (IIª-IIª). Vejamos o que diz Celestino Pires num trecho da obra que apresentaremos em breve:


“Seguimos passo a passo o raciocínio de Santo Tomás. Primeiramente temos de distinguir vários estágios de conhecimento. Em primeiro lugar, entre ciência habitual e atual. Um geômetra, por exemplo, sabe sempre os princípios da geometria, mas nem sempre atende a eles atualmente. Possui sempre e a cada momento a ciência habitual, mas nem sempre e em cada momento a tem atualmente presente. Pode usar da sua ciência quando quiser, porque a possui; mas o geômetra não considera sempre atualmente os princípios da geometria. O mesmo pode acontecer com a ciência da ação humana. O homem pode ter a ciência habitual de todas as verdades morais, mas não atende a elas em cada momento. A distinção parece fundamental a Santo Tomás.


“Temos, pois, a primeira oposição entre a ciência habitual e ciência atual. Quem peca possui a primeira, mas não a segunda. Não é uma oposição entre ciência e ignorância no sentido rigoroso do termo. Quando a geômetra não se aplica à geometria, não a ignora; simplesmente não a usa; sabe, mas não considera: “scitur in habitu, non consideratur in actu”[2].


“A segunda distinção a fazer é entre ciência universal e ciência singular. A ação humana rege-se por princípios universais e por proposições singulares. E na ação tem mais importância o conhecimento do singular que do universal [3]. A ciência universal só move à ação mediante o conhecimento do singular: “Universalis scientia non est principium alicuius actus, nisi secundum quod applicatur ad particulare”[4]. Daqui tira Santo Tomás a conclusão de que não há inconveniente algum em que alguém possa pecar contra a ciência universal, habitual e atual, e mesmo contra a ciência singular habitual, mas não contra a ciência singular atual”.


Vale dizer que há diferentes modos de a paixão impedir a ciência do singular. Mas a que nos interessa no momento é a seguinte: por diminuição das energias da inteligência. Com efeito, as faculdades humanas radicam todas na essência mesma da alma; por conseguinte, quando a paixão é intensa, as energias da alma concentram-se no ato do apetite sensitivo e diminuem, assim, a força de atenção da inteligência. Então, o conhecimento habitual não passa a atual. Conforme diz o tomista português, Santo Tomás chama a este modo de impedir o exercício da razão de abs-tracção ou dis-tracção [5]. É claro que nem toda paixão causa esta diminuição de energias com prejuízo da inteligência ou da vontade, mas só a paixão intensa. Esta distração ou abstração explica, na psicologia tomista, que o conhecimento habitual não se atualize.


Em resumo, pela intensidade e veemência da paixão, a inteligência não considera, no ato singular, aquilo que conhece. Diz Celestino: “Embora o texto nos não diga de que conhecimento habitual se trata, temos todas as razões para pensar que é do conhecimento habitual da bondade ou malícia de determinada ação singular”.


Em ocasiões tais, a vontade — cujo apetite é sub ratione boni — laborará a partir de formas inteligíveis equivocadas e induzirá o homem toda a sorte de más escolhas, que, em linguagem teológica cristã, são chamadas pecados.


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[1]Não é demais reiterar: “paixão”, aqui, é significa o movimento do apetite sensitivo, pela imaginação de um bem ou de um mal, conforme a definição de S. João Damasceno.


[2] Mal. 3, 9, c.; Cfr. VII Ethic., I-II, 77, 2, c.




[3]“Et dicit, quod quia duo sunt modi propositionum quibus utitur ratio practica, scilicet universalis propostitio et singularis: nihil autem prohibere videtur, quod aliquis operetur praeter scientiam, qui habitu quidem cognoscit utramque propositionemm sed in actu considerat tantum universalem et non particularem. Et hoc ideo, quia operationes sunt circa singulariza. Unde si aliquis non considerat singulare, non est mirum si aliter agat”. VII Ethic. lect. 3, n. 1339.




[4] Mal. 3, 9,c.; Cfr. II Ethic. lect. 8, nn. 333-334.




[5] I-II, 77, 1, c.; I-II, 77, 2, c.; Mal. 3, 9, c.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

"Santo Tomás, médico da alma": outras informações

Sidney Silveira

Algumas coisas mais a respeito do evento "Santo Tomás, médico da alma". São elas:

>Os participantes do evento terão direito a um certificado da Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval (SBFM).

> Informações sobre os palestrantes Ricardo da Costa e Martín Echavarría, que podem ser vistas no cartaz acima.

Não que eu pense que qualquer papel tenha valor em si (pois nenhum papel tem potência para atestar que uma ciência virou, de fato, hábito mental da verdade na cabeça de alguém), mas como, para alguns estudantes, estas coisas interessam por questões curriculares ou burocráticas, julguei que deveria informá-las por aqui.

Por fim, reitero que as inscrições já começaram a ser feitas pelo email eventotomista@gmail.com.

Volto à revisão de um dos livros que apresentaremos na ocasião.

P.S. Relendo depois a postagem vi que, no certificado, a data está 24 de novembro (e o correto é 24 de setembro). Assim que tiver um tempo, mudo.

domingo, 14 de agosto de 2011

Evento “Santo Tomás, médico da alma”, em 24/09 — inscrições abertas

Sidney Silveira


As inscrições para o evento do dia 24 de setembro, no Rio de Janeiro — ao qual demos o nome de Santo Tomás, médico da alma — podem ser feitas a partir desta segunda-feira (15/08) pelo email eventotomista@gmail.com, por meio do qual os interessados serão informados acerca de como proceder. O custo será de apenas R$ 39,00, e os recursos provenientes das inscrições serão utilizados para custear as viagens dos convidados, o aluguel do espaço, brunch, filmagem do evento, etc. Lembro que serão apenas 90 vagas, e, portanto, sugiro aos interessados que não deixem para inscrever-se na última hora.


Na ocasião, além das palestras do Prof. Ricardo da Costa (“O turbulento século XIII, o tempo de S. Tomás”), do Prof. Martín Echavarría (“El concepto de aegritudo animalis: las enfermedades psíquicas del hombre contemporâneo y su curación mediante Santo Tomás”), minha (“A alma humana, ser e operações) e do Prof. Carlos Nougué (“A imortalidade da alma segundo Santo Tomás”), serão apresentados ao público dois livros: As Heresias de Pedro Abelardo, de São Bernardo de Claraval (edição bilíngüe, latim/português), e Inteligência e Pecado em Santo Tomás, do teólogo Celestino Pires.


Com relação a esta última obra, abaixo transcrevo um pequeno trecho da introdução, à guisa de tira-gosto:


“O pecado é um ato da vontade. E perguntar pela influência que a inteligência possa ter nesse ato é pôr, reduzido a um caso particular, o problema das relações da vontade com a inteligência. Em que medida depende a vontade da inteligência? É o pecado um erro? Sócrates identificava ciência e virtude. E sob este erro está latente um problema fundo. Como é possível que o apetite, em concreto a vontade, seja movido pelo mal? Não é a vontade o apetite do bem? Como, pois, pode querer o mal? Se quer o mal é porque o crê um bem, respondia Sócrates, e assim o pecado não é mais que um erro da inteligência. E contudo a experiência humana parece resistir a esta solução tão fácil e libertadora.


Mas seria limitar o alcance do problema supor que as relações do pecado com a inteligência se limitam a saber se todo o pecado implica um erro ou ignorância. O problema é mais complexo como nos revelarão as análises posteriores. É na natureza mesma da inteligência criada que encontramos a explicação próxima da pecabilidade da criatura, como é da natureza mesma dessa inteligência que deriva a forma concreta da sua liberdade.


Poderíamos conduzir a análise dos textos de Santo Tomás limitando-nos a estudar a vontade e a inteligência, a vontade e a liberdade, e dos princípios assim colhidos buscar a solução para o nosso problema. Mas é mais concreto estudar a aplicação desses princípios aos diversos pecados das criaturas. Mais concreto e mais complexo. Porque aqui entram em jogo outras verdades da teologia que porventura podem dar-lhes maleabilidade ou também rigidez.


Para maior clareza estudaremos sucessivamente a impecabilidade divina, a inteligência e a vontade no pecado dos Anjos e no pecado do primeiro homem”.


(...)


1 - Impecabilidade divina


Santo Tomás, ao tratar do problema da pecabilidade, não tem dificuldade em excluir Deus. Deus não pode pecar. O que não derroga em nada a liberdade divina, porque o pecado nem é a liberdade nem faz parte da liberdade [1]. É precisamente a perfeição da Sua liberdade que O priva da defectibilidade. A vontade é a faculdade do bem, e poder tender para o mal é sinal de imperfeição. Querer o bem é natural à vontade. Deus não pode pecar porque não pode querer o contrário daquilo a que o inclina naturalmente a vontade [2]. Ama-Se necessariamente, e sendo a bondade subsistente, o Seu querer coincide com a Sua bondade. Não há distância entre o desejo e a posse. É ato puro, e um ser plenamente em ato não pode ser defectível [3]. E ainda, o mal só pode acontecer quando se apreende alguma coisa como bem e que em realidade o não é [4]. Ora em Deus não se pode dar esta deficiência da inteligência. Além disso a vontade divina coincide com a regra do Seu agir; e onde não há distinção entre a faculdade operativa e a regra da ação não há possibilidade de pecado [5]. Essa ação atinge infalivelmente o fim. E o pecado é, precisamente, como víamos no capítulo anterior, uma ação que não atinge o fim porque privada da regra de agir.


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[1-] “Ad secundum dicendum, quod ad rationem liberi arbitrii non pertinet ut indeterminate se habeat ad bonum vel ad malum: quia liberum arbitrium per se in bonum ordinatum est, cum bonum sit obiectum voluntatis, nec in malum tendit nisi propter aliquem defectum, quia apprehenditur ut bonum, cum non sit voluntas aut electio nisi boni: et ideou ubi perfectissimim est liberum arbitrium, ibi in malum tendere non potest, quia imperfectum esse non potest. Sed hoc ad libertatem arbitrii pertinet ut actionem aliquam facere vel non facere possit, et hoc Deo convenit; bona enim quae facit potest non facere, nec tamen malum facere potest”. II Sent. XXV, q. 1, a. 1, ad 2.




“Ad primum ergo dicendum, quod posse peccare dicitur non esse pars libertatis, quia non requiritur ad libertatem voluntatis ut in peccatum possit; sed sufficit ad rationem libertatis ut in utrumque contratictorium possit, quamvis in his quae peccare possunt, per liberum voluntatis arbitrium peccetur”. II Sent. XLIV, q. 1, a. 1, ad 1.



“Et pro tanto dicitur, quod velle malum nec est libertas, nec pars libertatis, quamvis sit quoddam libertatis signum”. Ver 22, 6, c., in fine; cfr. Ver. 24, 3, ad 2; I, 19, 10, ad 1; I, 62, 8, ad 3.



[2] “Quaelibet autem voluntas naturaliter vult illud quod est proprium volentis bonum, scilicet ipsum esse perfectum et non potest contrarium huius vele. In illo igitur volente nullum potest peccatum voluntatis accidere cuius bonum est ultimus finis; quod non continetur sub alterius finis ordine, sed sub eius ordine omnes alii fines continentur. Huiusmodi autem volens est Deus, cuius esse est Suma bonitas, quae est ultimus finis. In Deo igitur peccatum voluntatis esse non potest”. III Cont. Gent. c. 109.



“Cum autem nulla voluntas possit velle contrarium eius quod naturaliter vult, sicut voluntas hominis non potest velle miseriam; constat quod voluntas divina non possit velle contrarium suae bonitatis, quam naturaliter vult. Peccatum autem est defectus quidem a divina bonitate: unde Deus non potest velle peccare. Et ideo absolute concedendum est, quod Deus peccare non potest”. De Pot., q. 1, a. 6, c.; cfe. Comp. Theol. c. 113.




[3] “Deus solus est actus purus nullius potentiae permixtionem recipiens, et per hoc est bonitas pura et absoluta. Creatura vero quaelibet, cum in natura sua habeat permixtionem potentiae, est bonum particulare. Quae quidem permixtio potentiae ei accidit propter hoc quod est ex nihilo. Et inde est quod inter naturae rationales solus Deus habet liberum arbitrium naturaliter impeccabile et confirmatum in bono”. Ver. 24, 7, c.



[4] “Secunda autem diversitas in quam liberum arbitrium potest, attenditur secundum differentiam boni et mali; se dista diversitas non per se pertinet ad potestatem liberi arbitrii, sed per acidens se habet ad cam, inquamtum invenitur in natura deficere potenti. Cum enum voluntas de se ordinetur in bonum sicut in proprium obiectum: quod in malum tendat non potest contingere nisi ex hoc quod malum apprehenditur sub ratione boni; quod pertinent ad rationem intellectus vel rationis, unde causatur libertas arbitrii. Non autem pertinent ad rationem suae potentiae quod deficiat in suo actu; sicut non pertinent ad rationem visivae potentiae liberum arbitrum quod ita tendit in bonum, quod nullo modo potest tendere in malum, vel ex natura, sicut in Deo, vel ex perfectione gratiae, sicut in hominibus et angelis beatis”. Mal. 16, 5, c.




[5] “Peccare nihil aliud est quam declinare a rectitudine actus quam debet habere... Solum autem illum actum a rectitudine declinare non contingit, cuiús regula est ipsa virtus agentis... Divina autem voluntas sola est regula sui actus: quia non ad superiorem finem ordinatur… Sic igitur in sola voluntate divina peccatum esse non potest”. I, 63, 1, c.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Primeira parte do “Trivium” — agora por uma universidade


Carlos Nougué


A partir do dia 10 de setembro ministrarei, em São Paulo e simultaneamente à distância, o curso de português avançado “Para bem escrever na língua portuguesa”, na verdade a mesma primeira parte do “Trivium” já ministrada em Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Agora, porém, estas aulas integrarão um curso de extensão pela Universidade Gama Filho.


Com efeito, há duas lacunas na maneira tradicional de ensinar a língua portuguesa a seus próprios falantes: a falta de noções mínimas de lógica, por um lado, e de estudo do propriamente textual, por outro. O curso, portanto, mostrará em primeiro lugar que a língua portuguesa, como linguagem humana, se ergue sobre fundamentos lógico-sintáticos. Isso, naturalmente, sem desprezar de modo algum, o aspecto convencional, que a língua portuguesa também compartilha com as demais. E, em segundo lugar, que a língua portuguesa tem um modo próprio de desdobrar-se em frases, períodos e parágrafos, e que a estes corresponde uma extensão, uma cadência e uma organização interna segundo as diversas espécies de escrita. Trata-se, pois, do estudo e exercício do textual, para o que, naturalmente, tem grande importância a pontuação.


O curso será dado em um fim de semana por mês, das 8h às 18h (sábado e domingo), durante 3 meses, na Central de Cursos da UGF (Rua Treze de Maio, 681 — Bela Vista São Paulo/SP). Insista-se: aí ministrarei presencialmente o curso, que porém será simultaneamente transmitido, à distância, para todo o país.


Para mais informações, podem consultar o site: http://www.ugfpos.com/11564/42533.html; escrever para posugftrad@gmail.com; e ligar para (21) 3442-0756.



E eis o conteúdo do curso:




Para Bem Escrever na Língua Portuguesa


(curso de extensão)




Professor: Carlos Nougué




EMENTA




I) A linguagem humana:


1) As funções da linguagem


2) Os modos de comunicação


3) A natureza da linguagem




a) Matéria


b) Forma


c) Os símbolos da linguagem


A formação dos conceitos


As dez categorias da realidade


Linguagem e realidade




4) A dimensão lógica da linguagem


5) A dimensão convencional da linguagem


6) A dimensão psicológica da linguagem




II) Gramática geral e gramática da língua portuguesa:



1) Morfologia



a) As categorias gramaticais: características, funções e uso


Os substantivos (e pronomes substantivos)


As categorias atributivas


Os adjetivos


Os verbos


● suas classes, modos e tempos


● as formas nominais


Os advérbios: atributivos secundários


b) Os chamados verbos “copulativos” ou “de ligação”



c) Os determinativos


Os artigos


Os dêicticos ou pronomes demonstrativos



d) Os conectivos


As preposições


As conjunções




2) Sintaxe e funções sintáticas


3) Estilística I


a) O bem escrever


b) Tradição e estilo


c) As múltiplas possibilidades da língua



Concordância verbal e nominal


Silepse


Concordância por proximidade ou atração


Voz passiva


sintética


analítica



Colocação dos chamados pronomes átonos


Pontuação



4) Estilística II


a) Paralelismo sintático


b) Coordenação e subordinação


c) Frase, parágrafo e período


d) Ritmo, tom e harmonia


e) O simples e o complexo



III) A nova reforma ortográfica


Observação: os diversos itens da ementa poderão ser reordenados de acordo com o desenvolvimento do curso.