terça-feira, 25 de novembro de 2008

A imortalidade da alma humana (II)

Carlos Nougué
Como a de todos os viventes, a alma humana é a única forma substancial do homem — é impossível haver mais de uma forma substancial num mesmo ente. E é a alma humana que, unida inextricavelmente ao corpo humano, lhe regula e governa toda a atividade, quer no propriamente humano, quer no que tem em comum com os vegetais e os animais. “As próprias formas dos elementos químicos que constituem o corpo desaparecem como formas autônomas. Subsistem virtualmente, pelas suas qualidades, integradas na disposição do conjunto; mas é à lei deste que os elementos se subordinam — lei, de resto, que engloba a sua lei própria, e não os violenta” (Louis Jugnet, ibid., p. 242).

A substância material será tanto mais perfeita quanto mais complexa for a sua forma. Trata-se de uma síntese, e, se esta síntese inclui todas as perfeições daquelas substâncias de ordem inferior que nela se encontram integradas, inclui também as perfeições que lhe pertencem exclusivamente, como todo que é. É precisamente porque todas essas perfeições, tanto as inferiores como as superiores, formam um só e único feixe — em ordem a um só e único fim, o fim de um só e único ente — que se dá uma unidade substancial, e é porque se dá essa unidade substancial que há, necessariamente, requerida por ela como seu princípio de ser, uma forma substancial.

Por outro lado, haver no homem, como em todos os entes vivos, uma única e mesma forma substancial não impede — muito pelo contrário — que haja nele, como em todos os entes vivos, diversas formas acidentais. É que, se a alma única dispõe a matéria do corpo e suas partes consoante o que lhe exige a essência mesma de homem, o que for indiferente a esta essência (gênio, altura, peso, cor, etc.) será acidente, ou seja, uma forma distinta da alma, secundária pois, e no entanto inerente ou a ela ou ao conjunto de alma e corpo.

Pois bem, até aqui a teoria aristotélica da alma como forma substancial do corpo, justamente a teoria que Santo Tomás de Aquino não só retomará, mas desenvolverá e completará. Dirá o Doutor Comum, de modo conciso e preciso: a alma é a forma “pela qual o homem é ente em ato, e pela qual é corpo, e pela qual é vivente, e pela qual é animal, e pela qual é homem” (Suma Teológica, Ia, q. 76, a. 6, ad 1).

Assim, por tudo quanto já se disse até aqui, deve-se forçosamente inferir a impossibilidade de localizar a alma; tentar fazê-lo seria considerar a alma ou como parte material do corpo, ou como ente distinto do corpo que atuasse sobre ele por meio de dado órgão (segundo Descartes, a glândula pineal [!!]). Ora, como a alma é uma forma, ela é necessariamente imaterial; se está sujeita a extensão, estando por essa razão, obrigatoriamente, onde o corpo estiver, só o está precisamente porque é forma deste corpo. Mas dentro do corpo absolutamente não tem lugar determinado, nem é distribuída por todo ele; está toda em todo o corpo ou em cada uma de suas partes. Está em todo o corpo, naturalmente, porque todo ele se rege por ela, quer na sua disposição, quer na sua atividade; e não está distribuída pelo corpo todo, mas está toda em todo o corpo ou em cada parte dele, porque como toda e qualquer forma, ou seja, como princípio de unidade, é indivisível. É a ordem do conjunto do corpo, e como tal exige que cada parte deste conjunto seja exatamente o que é, sem tirar nem pôr. Acrescente-se ao que se acaba de dizer, todavia, a seguinte precisão: “a alma está toda em todas as partes do corpo segundo a totalidade da sua perfeição [...], mas não segundo toda a sua virtualidade” (Suma Teológica, Ia, q. 76, a. 8, corpus), dado que destina cada porção de matéria a formar um só e determinado órgão.

Como, porém, ante a impossibilidade de encontrar uma localização para a alma, salvaguardar a obrigatória distinção entre matéria e forma? Responda-se com o mesmo Santo Tomás: muito ao contrário de supor a alma como uma espécie de fluido derramado no corpo, diga-se antes que é a alma que contém o corpo, justamente porque é ela que lhe dá a sua unidade (cf. Suma Teológica, Ia, q. 76, a. 3, corpus).

Apesar, porém, de ser a atividade do corpo totalmente dependente da alma, e de não se poder atribuir nenhuma das nossas ações (voluntárias ou involuntárias) ao corpo sem a participação regente da alma, não é contudo a alma o motor do corpo no sentido de uma espécie de fonte de energia física que o fizesse mover-se. A energia de que dependem os movimentos do corpo é recebida do meio circundante e é armazenada nos seus órgãos, sendo a alma a lei consoante a qual essa energia se canaliza, distribui e aproveita no corpo. Mas a alma tampouco é o motor do corpo no sentido de ser ela mesma, em si, uma faculdade locomotora. Di-lo ainda Santo Tomás de Aquino: “a alma não move o corpo por seu ser, enquanto está unida ao corpo como forma; mas pela potência motriz, cujo ato pressupõe o corpo constituído em ato pela alma” (Suma Teológica, Ia, 76, a. 4, ad 2). Mas que causa será o corpo no composto que ele, digamos, “partilha” com a alma?

O corpo, ou seja, a matéria do corpo, é a causa material da atividade humana tanto no domínio da sensibilidade como no da vida vegetativa; constituinte intrínseco e inextrincável do composto que é o ser humano, é indispensável ao exercício pela alma das atividades que requeiram contato com os demais corpos. Sim, porque, se não é possível encontrar no homem atividades que sejam regidas pelo corpo, mas é a alma o princípio que faz concorrer todas as operações para um só fim, regendo toda e qualquer atividade humana, o corpo, por seu lado, é o meio que permite à alma buscar no mundo material os elementos indispensáveis à vida do homem. É o corpo um elemento intrínseco da ação da alma.

Mas da atividade humana faz parte o pensamento, e o pensamento é algo totalmente imaterial. Esclareça-se: é-o não no processo de elaboração de idéias, mas no conhecimento, que é o seu ato sumo. É o que veremos de perto no próximo artigo.

P.S.: Ainda esta semana porei no blog dois outros novos artigos, um da série “Pensamento mágico e bom senso”, e o outro da série “O Cogito cartesiano, ou o pensar com causa do ser”. Nessa ordem.