quarta-feira, 12 de novembro de 2008

O Cogito cartesiano, ou o pensar como causa do ser (III)

Carlos Nougué
Vimos no
artigo anterior: 1) a diferença entre juízo e proposição; 2) a diferença entre, por um lado, juízo e proposição categóricos e, por outro lado, juízo e proposição hipotéticos, sendo aqueles o juízo e a proposição propriamente ditos, enquanto estes, porque compostos, não simples, são impropriamente ditos; 3) a classificação das proposições segundo o essencial e segundo o acidental; 4) que o “Penso, logo sou” de Descartes, não sendo uma proposição categórica, tampouco se enquadra em nenhuma das subdivisões das proposições compostas ou hipotéticas, razão por que, ao contrário do que afirma certa objeção, parece não ser um juízo nem sequer impropriamente dito.

Ora, com respeito ao raciocínio ou silogismo, que como vimos é o modo propriamente humano de pensar, importam efetivamente, de quantos tipos de proposição vimos, as proposições categóricas ou proposições propriamente ditas, de que se compõe todo e qualquer silogismo, e a espécie de proposição formalmente hipotética que é a condicional, por ser a que mais de perto se aproxima do mesmo silogismo: com efeito, o que se afirma em tal proposição, referindo-se à necessidade da conseqüência, declara a validade da inferência. É o que se dá, por exemplo, em “Se se pensa magicamente, não se pode verdadeiramente filosofar”. Mas com relação ao silogismo, insista-se, a proposição condicional só importa secundariamente, porque este tipo de proposição pressupõe as proposições categóricas de que se constitui, e porque por si mesma significa e afirma uma conseqüência, não sendo, como a proposição categórica, o elemento principal de que se utiliza o intelecto humano para descobrir ou estabelecer uma conseqüência antes desconhecida.

Há porém quatro outras classes de “proposição”, as quais todavia só muito impropriamente se podem dizer tais, e nem sequer impropriamente se pode dizer que expressam um juízo. São elas:

a) a “proposição” dita causal, como, por exemplo, “O pensamento mágico é falso porque desconhece as verdadeiras relações causais”;

b) a “proposição” dita relativa, quando tem significado causal, como, por exemplo, “O pensamento mágico, que desconhece as verdadeiras relações causais, é falso”;

c)
a “proposição” dita adversativa, que é a negação da “proposição” causal, como, por exemplo, “O pensamento mágico é falso, mas não por desconhecer as verdadeiras relações causais”;

d) a “proposição” dita racional, como, por exemplo, “O pensamento mágico desconhece as verdadeiras relações causais, logo é falso”.

Por que disse mais acima que só muito impropriamente tais “proposições podem ser ditas tais, e nem sequer impropriamente se pode dizer que expressam um juízo? Por duas razões, uma atinente às três primeiras classes delas, e a segunda à última delas, a racional.

1) De fato, tanto a “proposição” causal como a relativa causal e a adversativa (sendo as duas últimas, como vimos, derivadas em verdade da primeira) se revolvem em três proposições categóricas, como, mutatis mutandis, o próprio silogismo (como vimos no primeiro artigo desta série). Assim, “O pensamento mágico é falso porque desconhece as verdadeiras relações causais” resolve-se em:

● O pensamento mágico é falso;
● O pensamento mágico desconhece as verdadeiras relações causais;
● O desconhecer as verdadeiras relações causais é a causa da falsidade do pensamento mágico.

E revolvem-se semelhantemente as duas outras classes de “proposição” referidas.

2) Mas a “proposição” racional, como o mesmo nome indica, já se resolve num raciocínio propriamente dito, ou antes, num entimema. Na verdade, é o entimema propriamente dito. Vejamo-lo.

Quanto à sua integridade, o silogismo pode ser considerado de duas maneiras.

2.1) Ele será completo quando as suas duas premissas estiverem formuladas explicitamente. Por exemplo:

a) Premissa maior: Para equivocar-se é preciso ser um ente;
b) Premissa menor: ora, eu sou um “equivocante”;
c) Conclusão: logo, eu sou um ente.

2.2) Ele, por outro lado, será incompleto ou truncado quando uma das suas premissas estiver subentendida. E entimema é sinônimo precisamente de silogismo incompleto ou truncado.

Diga-se que tanto na linguagem corrente como na científica o entimema é muito mais usado que o silogismo completo, e isso por óbvias razões de facilidade e brevidade. O que porém importa dizer aqui é que é impossível resolver quaisquer “proposições” racionais, como o “Penso, logo sou” de Descartes, de outra maneira: elas sempre se revolverão em entimemas. Tente-se proceder com respeito à “proposição” de Descartes como se procedeu acima com relação à “proposição” causal, e ver-se-á que é impossível. Se pois a “proposição” cartesiana não se pode dizer proposição nem sequer impropriamente, mas se revolve obrigatoriamente num entimema, então ela tampouco se poderá dizer nem sequer impropriamente um juízo.

Resta-nos quanto a isso, porém, responder ainda a uma objeção capital: a do próprio Descartes. Sim, bem sei que no Discurso do método o “Penso, logo sou” é referido pelo pensador como a invenção de uma verdade capaz de “derrotar definitivamente os cépticos”, invenção que em nada contradiria o silogismo de Santo Agostinho “Para equivocar-se, é necessário ser; ora, eu me equivoco; logo, eu sou”. Ou seja, a proposição seria de fato racional e pois requereria a premissa maior “Para pensar, é necessário ser”. Mas há outros escritos de Descartes, e, como diz Tomás Melendo (sobre o qual voltaremos a falar) em Entre moderno y postmoderno (edição disponível na Internet), “talvez o mais claro desses outros escritos seja o conhecido como Sur les Cinquièmes objections. Nele, opondo-se à advertência de Gassendi de que o cogito pressupunha uma premissa maior e, portanto, não era um primeiro princípio, Descartes responde que a proposição é evidente em si mesma, ainda que o sujeito nunca tenha pensado nela. E acrescenta: estamos diante una proposição particular não deduzida de nenhuma outra geral”.

Esclarece com efeito Descartes: “ao dizer eu penso, logo sou, o autor das réplicas pretende que subentendo esta premissa maior: aquele que pensa, é; e, assim, que com isso abraço un preconceito. […] não se pode, porém, dizer que seja um preconceito quando alguém a examina com atenção, pois aparece de forma tão evidente à inteligência, que esta não pode deixar de crer nela, ainda que porventura seja a primeira vez de sua vida que pensa nela […]. E por não perceber isso o nosso autor […] não fez mais que inventar falsas premissas maiores a seu bel-prazer, como se eu tivesse deduzido delas as verdades que expliquei” (na “Carta do Sr. Descartes ao Sr. Clerselier”).

(Continua.)

Em tempo 1: O termo entimema é usado por Aristóteles no sentido de “silogismo retórico”, que procede de premissas verossímeis e de exemplos (cf. Anal. Pr. II, 27, 70, a 10). Ou seja, é usado por ele em sentido diverso do sentido em que aqui o usamos, que provém da tradição escolástica.
Em tempo 2: Em
Pensamento mágico e bom senso (VI)prometi que explicaria no artigo VII o medieval “direito de pernada”. Esqueci-me de fazê-lo; mas o farei depois de amanhã, no VIII.