quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Sedevacantismo, ou uma conclusão à procura de premissas (I)

Carlos Nougué
Nota prévia:
Deveria ter escrito, antes deste artigo, o prometido fim da série “O Cogito cartesiano, ou o pensar como causa do ser”. Sucede porém que, em primeiro lugar, estou assoberbado pela tradução de importantíssimo livro que será talvez o próximo da editora Sétimo Selo; e, em segundo lugar, muitos amigos me vinham pedindo que começasse logo a escrever sobre o sedevacantismo, sobretudo depois de o Sidney ter abordado o tema tão agudamente em “Sedevacantismo, um erro capital”. É o que faço agora, deixando para amanhã ou depois de amanhã a escrita do final do “Cogito”.

Preâmbulos
1) Um aspecto desta série de artigos sobre o sedevacantismo é de minha exclusiva responsabilidade: o vinculá-lo ao que chamo “pensamento mágico” por qualquer inversão entre mente e realidade, entre causa e efeito, entre antecedente e conseqüente ou entre premissa e conclusão. Por esse ângulo, como veremos, o sedevacantismo inclui-se entre os tipos de determinada espécie de pensamento mágico: a “reconstrução ideal da história”. O outro aspecto desta série, todavia, nem de longe é de minha responsabilidade: o provar o engano do sedevacantismo do ângulo teológico e canônico. E não o é por dois motivos: a) não me sinto com luzes de teólogo nem de canonista; b) como quer que seja, adiro integralmente às investigações e conclusões de dois grandes teólogos com respeito ao assunto: o Padre Juan Carlos Ceriani (em seus estudos “Dificultades que entraña la opinión sedevacantista” e “Contra papólatras y papoclastas”)* e o Padre Álvaro Calderón (em seu livro La lámpara bajo el celemín). Se assim é, porém, por que tratar neste blog do assunto? Especialmente porque nos preocupa muito a simpatia que vem despertando o sedevacantismo (que, como veremos, é pernicioso em si e por seus efeitos deletérios: afastamento dos sacramentos, perda da fé, etc.) entre jovens que se escandalizam com tanta coisa emanada da própria hierarquia eclesiástica atual; e porque cremos poder intervir positivamente para ajudá-los a afastar-se disso que, como diz o Padre Calderón, é uma “vertigem”, mostrando que a vertigem do sedevacantismo é a mesma que, mutatis mutandis, resulta de qualquer “reconstrução ideal da história”.

2) Mais uma vez, vejo-me obrigado a pedir aos leitores que se armem de paciência, e neste caso de grande paciência: a série é bem longa. A verdade a respeito deste assunto requer uma aproximação sucessiva que, na medida do possível à razão humana, não deixe nada de fora. Não só, aliás, esta verdade: nenhum conhecimento sobre nenhuma realidade essencial se faz de forma fácil nem imediata. Como disse a um amigo, de que nos adiantaria gritar algo aos quatro ventos se traíssemos a complexidade do real e não convencêssemos entranhavelmente a inteligência das pessoas? Os sedevacantistas têm o hábito, típico de sua forma de pensamento mágico, de se agarrar a uma só coisa da realidade (para muitos sedevacantistas, a Bula Cum ex Apostolatus Officio, do Papa Paulo IV) como à premissa de uma “conclusão” já tirada e repetida de modo hipnótico: “O papa não é papa, o papa não é papa, o papa não é papa...” Não devemos fazer o mesmo de jeito nenhum, nem sequer para combater um erro. Ainda assim, porém, e para tranqüilizar alguns amigos que por justos motivos andam algo angustiados com o assunto, adiantarei alguns dados que farão parte do longo desenvolvimento conducente às conclusões desta série, mas servirão desde já, creio, para advertir os leitores sobre a imprudência e precipitação do sedevacantismo em geral, e de algumas de suas correntes em particular. São eles:

a) Em 6 de abril de 1560 (ou seja, pouco mais de um ano depois da referida Bula), Pio IV, sucessor imediato de Paulo IV, emitiu um documento que modificava algumas medidas disciplinares daquela. Com efeito, lê-se na História dos Papas de Ludovico Pastor (apud P. Juan Carlos Ceriani, “Contra papólatras y papoclastas”): “Em clara referência a Paulo IV, [o Papa Pio IV] publicou uma declaração segundo a qual todos os que haviam incorrido em alguma censura, em excomunhão ou outra condenação por causa de heresia podiam submeter outra vez sua causa a uma nova averiguação judicial, não obstante todas as sentenças de seus predecessores”.

b) Lê-se ainda na História dos Papas de Ludovico Pastor (apud ibid.) que o mesmo Pio IV publicou, em 9 de outubro de 1562, uma Bula destinada a legislar sobre o Conclave para a eleição pontifícia, a qual também alterava disposições disciplinares da Bula de Paulo IV. Dizia o documento de Pio IV: “Ninguém pode ser excluído da eleição sob pretexto de que está excomungado ou incorreu em alguma censura”, ou seja: “não obstante as sentenças de Paulo IV, os condenados (por exemplo, depostos) e os excomungados ou censurados (incluindo Cardeais depostos) podiam ser eleitos no Conclave” (P. Ceriani, ibid.).

c) A referida Bula de Paulo IV “foi ab-rogada pelo Código de Direito Canônico [o de São Pio X/Bento XV], incorporando-se a este [apenas] parte do que aquela legislava” (idem).

d) A eleição do Romano Pontífice, ao contrário do que querem fazer crer os sedevacantistas, rege-se atual e unicamente pela Constituição de Pio XII de 8 de dezembro de 1945 e pelas “legítimas reformas” (idem) que ela sofreu posteriormente.

Mas de modo algum se vejam nesses quatro dados duas coisas:

● nenhuma infração ao princípio de contradição, dado tratar-se, como veremos aprofundadamente, do uso legítimo de um princípio do direito positivo humano e eclesiástico (que, suposta a necessária convergência essencial com a lei natural e a lei divina positiva, é sempre variável segundo circunstâncias espaciotemporais): uma lei disciplinar pode ser ab-rogada por alguém do mesmo nível daquele que a instituiu, especialmente se tal se faz conforme à prudência e à busca do bem comum. Com efeito, “um antigo adágio lembrado por Inocêncio III nos Decretales diz que o sucessor tem um poder não só igual mas idêntico ao de seu predecessor” (“Dicionário de Direito Canônico”, org. Naz, entrada “ab-rogação da lei”, apud P. Ceriani, ibid.);

● uma resposta às teses sedevacantistas, uma vez que, como já dito, tais dados efetivamente não são mais que isto: breves antecipações de um longo desenvolvimento.

(Continua.)

* Ambos os termos “papólatras” e “papoclastas” são neologismos. O primeiro constrói-se sobre o modelo de “idólatra” (gr. eidololatres,ou, “adorador de ídolos”, pelo lat. idololatra ou idololatres,ae), enquanto o segundo se constrói sobre “iconoclasta” (“que ou aquele que destrói ou derruba imagens religiosas”, como os que, nos séculos VIII e IX, participaram do movimento contrário às imagens nas Igrejas cristãs do Oriente, ou como os protestantes em seu ataque geral à Igreja Católica). Assim, “papólatra” = “adorador de papas” e “papoclasta” = “derrubador de papas”.

Em tempo: Ambos os citados textos do Padre Juan Carlos Ceriani, “Dificultades que entraña la opinión sedevacantista” e “Contra papólatras y papoclastas”, estarão disponíveis em breve. Mas o primeiro já pode ser lido integralmente no site “Stat Veritas” (http://www.statveritas.com.ar/Varios/SedeRomana2.htm).