sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Adoro te Devote — o hino eucarístico de Santo Tomás






Adoro te devote, latens Deitas,


Quæ sub his figuris vere latitas;


Tibi se cor meum totum subjicit,


Quia te contemplans totum deficit.



Visus, tactus, gustus in te fallitur,


Sed auditu solo tuto creditur.


Credo quidquid dixit Dei Filius;


Nil hoc verbo veritátis verius.



In cruce latebat sola Deitas,


At hic latet simul et Humanitas,


Ambo tamen credens atque confitens,


Peto quod petivit latro pœnitens.



Plagas, sicut Thomas, non intueor:


Deum tamen meum te confiteor.


Fac me tibi semper magis credere,


In te spem habere, te diligere.



O memoriale mortis Domini!


Panis vivus, vitam præstans homini!


Præsta meæ menti de te vívere,


Et te illi semper dulce sapere.



Pie Pelicane, Jesu Domine,


Me immundum munda tuo sanguine:


Cujus una stilla salvum facere


Totum mundum quit ab omni scelere.



Jesu, quem velatum nunc aspicio,


Oro, fiat illud quod tam sitio:


Ut te revelata cernens facie,


Visu sim beátus tuæ gloriæ.


Amen

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

A conversão e seus frutos

[Resposta à mensagem que recebi por estes dias de um sujeito enfezadíssimo, interpelando-me a respeito de como eu, convertido há “apenas” oito anos, me julgo no “direito” de escrever sobre Tomás de Aquino e sobre o Magistério eclasiástico.]


“Na Igreja, os perversos perseguem aqueles que [por compartilhar a doutrina] trazem proveito espiritual a muitos”.


São Gregório Magno (Moralia I, 13)


Sidney Silveira


Na Igreja, antiguidade não é posto. E a razão disso é muito, muito simples: as obras da fé não se medem por nenhuma espécie de cronometragem, porque a fé, sendo virtude teologal infusa por Deus, traz para a alma um tipo de força que transcende por completo a contingências temporais. Ou seja, o sujeito convertido passa a agir sub virtute fidei divinæ — o que muda os vetores de sua vida e, por conseguinte, das suas atividades. Daí ser bastante comum na história da Igreja um recém-convertido começar, em pouco tempo, a atuar diligentemente em questões relativas à fé; e de estéril e inerte, sem a fé, tornar-se frutuoso e laborioso, com ela. Isto porque a força da fé divina é nada menos que a graça, princípio da glória.[1]


Ademais, há pessoas que perdem a fé. Que apostatam mesmo depois de um bom tempo de vida na Igreja. Há casos notórios de monges e padres que, após longos anos de profissão e/ou ordenação, perderam a fé e sucumbiram definitivamente ao espírito do mundo. Como se vê, para o bem e para o mal, antiguidade não é posto na Igreja: há gente que, pouco tempo após converter-se, trabalha pelas verdades da fé, divulgando-as na medida de suas capacidades, e há gente que, depois de muito tempo de vida eclesial, volta as costas à graça e, de figueira estéril, acaba por converter-se em apóstata ou excomungado (casos respectivos de um Lutero e de um Guilherme de Ockham, por exemplo).


Sendo assim, só mesmo uma malícia suma poderia levar alguém a criticar um católico recém-convertido por trabalhar — seja em que frente for — na Igreja, e pior: fazendo uso de nefastos argumentos ad personam (caso do rapazola que me enviou a tal mensagem), que são um verdadeiro manjar na boca do difamador. A propósito, murmurações semelhantes foram feitas a ninguém menos do que Santo Tomás de Aquino, que deixou um conselho bastante útil para quem, no futuro, deparasse com situações análogas. É o seguinte.


Indagando-se sobre se os religiosos devem tolerar pacientemente todas as injúrias que se lhes fazem, o Aquinate distingue entre: a) ataques estritamente pessoais; e b) ataques que, de alguma forma, resvalam em coisas relativas à doutrina da Igreja. Quanto aos primeiros, afirma o Doutor Comum que convém tomar a Cristo como exemplo e suportar absolutamente tudo, aproveitando para oferecer as dores como penitência pelos próprios pecados; quanto aos segundos, a atitude é inversa: não se deve tolerar nada e resistir firmemente. Neste último caso porque, medidas todas as coisas, o caluniado não é outro senão o próprio Deus.[2]


Pois bem: como tal opinião a respeito da atuação de um recém-convertido em coisas relativas à Igreja se enquadra, perfeitamente, no segundo tópico acima, vale respondê-la. E comecemos por dizer que, se ela fosse levada às últimas conseqüências, nem mesmo grandes santos, Padres da Igreja e filósofos cristãos escapariam. O que é patentemente absurdo.


Por exemplo:


* São Paulo teria agido de forma condenável ao começar o seu apostolado apenas dois anos depois de convertido a caminho de Damasco. Ora, em se tratando de ninguém menos do que o Apóstolo dos Gentios, vê-se o tamanho da absurdidade à qual agora damos resposta.


* O recém-convertido Agostinho teria escrito de forma ilícita ou indevida obras-primas como o extraordinário De Sermone Domine in Monte — livro terminado cerca de três anos após sua conversão.


* Clemente de Alexandria (que é Padre da Igreja, apesar de haver erros teológicos em sua obra desaprovados pelo Magistério)[3] teria cometido o grande “pecado” de escrever, logo depois de sua conversão, o Protreptico, conclamando todos os pagãos a abraçar a fé.


* Raimundo Lúlio, hoje instrumentalizado por grupos de católicos neoconservadores que o transformaram em tataravô do ecumenismo e do diálogo inter-religioso, teria equivocadamente começado a escrever, poucos anos após receber a fé, sua imensa obra com a expressa motivação de converter os infiéis.[4]


Os exemplos são incontáveis, e por economia eximimo-nos de enumerá-los. Estes quatro bastam para mostrar o quão infundada é tal “idéia”: a darmos crédito a ela, grandes santos teriam agido mal trabalhando em coisas relativas à fé logo após sua conversão; um apaixonado apologeta [5] teria dado o péssimo exemplo ao divulgar, perante o mundo, a doutrina do Evangelho pouco tempo depois de abandonar o paganismo; e, por fim, um filósofo medieval declarado beato teria de forma reprovável colocado sua prolífica pena a serviço da conversão dos infiéis, alguns anos após ele próprio converter-se. A estes poderíamos somar outros exemplos significativos, como o de São Francisco de Assis, que pouco tempo depois de sua conversão estava diante do Papa Inocêncio III, admoestando a todos pelo fausto, pelo luxo tão contrário ao Evangelho que bispos e prelados exibiam.


Pois bem, antes de o meu crítico ou os seus pares insinuarem (com a mesma patente malícia do presente argumento) que estamos nós nos equiparando a santos e a filósofos de escol, vale recorrer a um princípio — que aqui expomos por meio de uma analogia:


Ø Em se tratando de doutrina da Igreja, assim como não pode servir como conselho nada que seja contrário a um preceito, visto que a ordem dos conselhos é super-rogatória e eminentemente louvável, assim também não se pode opinar licitamente contra a imitação de uma prática levada às últimas conseqüências por santos e homens notáveis da Igreja .


A razão é simples: em se tratando de difundir o Evangelho (no que nos diz respeito, a partir da simples apresentação da obra do Doutor Comum da Igreja sem as matizações da teologia pós-conciliar), essa imitação é aconselhável em elevado grau. E, a propósito, é essencialmente isto o que fazemos: neste quesito, imitar o que grandes santos, papas e teólogos fizeram no passado — dar publicidade a Santo Tomás de Aquino; e, no tempo desgraçado em que nos cabe viver, mostrá-lo como antídoto contra o modernismo condenado por São Pio X. Essa imitação é também segura, na medida em que não tentamos “inventar a roda”, ou seja, interpretar os Dogmas à nossa moda, como muitos fazem por aí, mas apenas seguir à risca (em matéria de fé) a obra do mais abalizado Doutor da Igreja, consagrado por sete séculos de Magistério. Afastar-se do Aquinate, isto sim, é que implica colocar-se sob o risco de cometer erros teológicos.


Outra coisa: críticos de tal estirpe não possuem a menor autoridade espiritual para proclamar que um trabalho como este é indevido. Na verdade, têm autoridade zero. E também não possuem autoridade hierárquica, a qual seria mais inteligente argüir contra nós, pelo fato de sermos leigos. Mas mesmo este argumento não se sustentaria, por dois motivos principais: a) não é preciso pedir permissão para repetir a doutrina tradicional à luz da obra do Doutor Comum, pois fazê-lo é seguir o conselho magisterial de séculos sem fim. Seria como pedir licença a um superior hierárquico para fazer um bem espiritual que está à mão; e b) dado o atual estado de necessidade na Igreja (patente na voz pluriforme dos neoteólogos e do neomagistério, que, em vários pontos, contrariam o ensino de sempre)[6], apresentar a obra teológica de Santo Tomás de Aquino não apenas se justifica, mas é um dever inarredável por parte daqueles que a estudam com afinco há anos.


Isto assinalado, apenas com o intuito de gravar bem o conceito repitamos com outras palavras o princípio:


Ø não pode um católico criticar licitamente o que — por ser um conselho magisterial multissecular — é super-rogatório.


E mais: em que escola dos infernos o meu crítico terá aprendido que um recém-convertido deve ficar sempre quieto e caladinho? Talvez imagine ele que a Igreja é uma espécie de seita maçônica que requeira do adepto um tirocínio iniciático de anos de testes e estudos esotéricos — para somente então ser considerado apto a compartilhar as verdades aprendidas. Não! As suas leis são de instituição divina e, no decorrer dos séculos, vêm sendo expressas com toda a clareza pelo Magistério e pelos Doutores (isto para não falar do Catecismo e do Credo). Razão pela qual simplesmente repeti-las na voz destes últimos é algo que não pode ser criticado sem uma grande dose de maldade espiritual. Sobretudo se a crítica tem como base o tempo de conversão, o que é ridículo.


Em geral, por trás duma crítica de tal teor oculta-se um profundo ódio às verdades da fé — e mais que isso: ódio às obras que ela produz. E não é raro o murmurante que perpetra calúnias desse teor ser alguém que posa de aguerrido defensor da Igreja. Mas indaguemos nós: é possível defender a Igreja apartando-se de sua doutrina? É possível fazê-lo olhando-a como algo a respeito do qual um católico pode divergir, sem perder a fé? Ora, casos como os de um Guilheme de Santo-Amor, de um Guilherme de Nogaret (de quem ainda falaremos num dos textos da série sobre Bonifácio VIII), de um Sciarra Colonna, etc., são recorrentes na história eclesiástica. São homens que juraram — e perjuraram — estar defendendo a Igreja, quando na verdade trabalhavam para corrompê-la! Quantos caluniadores, a pretexto de trabalhar pela Igreja, atacaram homens que realizavam suas obras difundindo a fé!


Infelizmente, para os ministri diaboli [7]— como chamou Santo Tomás a estes que odeiam ver a doutrina da Igreja divulgada, em prol do bem comum das almas —, tudo serve de palha para a sua fogueira: o bem e o mal.


Sobretudo o bem, que eles gostariam de converter em males.


Em tempo: Recebi nos últimos dias emails e telefonemas de gente pedindo-me opinião sobre o trabalho de Fulano e Sicrano. Por princípio, prefiro crer que não seja por má-fé ou com o intuito de fofoca, mas o fato é que não reponderei a indagações desse tipo, pois, se eu pretendesse transformar-me em conselheiro de homens feitos, abriria uma Tenda do "Pai" Sidão e faturaria grana alta. Ora, pessoas adultas são livres para fazer as suas escolhas, buscar os seus caminhos. E, se são católicas, que peçam conselho diretamente ao Cristo eucarístico, misteriosamente escondido sob as espécies sagradas, mas não a este mísero escriba. Infelizmente, percebo que, em alguns casos, o propósito é pôr lenha na fogueira... Mas do disse-me-disse e das futricas da tia Candinha, livre-nos Deus.


____________

1- Gratia, inchoatio gloriæ, conforme o axioma escolástico.


2- Santo Tomás de Aquino, Contra Impugnantes, c.13, n.3


3- A respeito da retirada de Clemente de Alexandria do Martirológio pelo Papa Bento XIV, em 1748, por meio da bula Postquam intelleximus, falamos em nossa apresentação ao Protreptico (tradução para o português da Profª. Rita Codá dos Santos), livro já entregue à editora É Realizações para edição.


4- A título de curiosidade, em sua Vita Coaetanea Lúlio diz que três são os seus propósitos ao escrever: a) converter os infiéis ao Cristianismo; b) redigir o melhor livro do mundo contra os erros dos infiéis; c) suplicar aos poderes constituídos que criassem mosteiros onde se ensinassem as línguas necessárias ao seu projeto de conversão do mundo. Cf. Raimundo Lúlio, Vita Coaetenea, I, 5-8.


5- “Navega para além desse recanto, artesão da morte; basta que tu queiras e terás vencido a perdição. Preso ao madeiro, tu te livrarás de toda corrupção; o Logos de Deus será o teu piloto, e o Espírito Santo te fará ancorar nos portos celestes; então, tu contemplarás o meu Deus e serás iniciado nesses santos mistérios; tu, por fim, usufruirás, nos céus, dos bens secretos (...), os quais nenhum ouvido humano escutou falar, e que não vieram do coração de nenhum mortal”. Clemente de Alexandria, Protréptico, XII, 4.


6- Para não perdermos tempo com a exposição material de documentos sem fim, basta-nos fazer referência ao ecumenismo, condenado solenemente durante todo o período anterior ao Concílio Vaticano II e hoje ensinado como um dos princípios reitores da catolicidade.


7- Santo Tomás de Aquino, Contra Impugnantes, Prologus.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

A metafísica contra a teoria da evolução (VII): ainda os predicáveis


(continuação deste texto)


Sidney Silveira



2. A espécie



Para compreender os predicamentos (categorias filosóficas básicas), é necessário antes conhecer os predicáveis (pré-categorias) — saber identificá-los e classificá-los devidamente, pois, como dizia Santo Tomás, fundamentalmente os predicamentos não são outra coisa senão certa relação lógica entre os predicáveis. Sem isso, não foram dados sequer os primeiros passos na filosofia.


Qualquer estudante do período escolástico, orientado desde a sua iniciação filosófica para formar-se nas sete artes liberais — herdeiras medievais das sete disciplinas encíclicas (έγκυκλία παιδεύματα) da Escola de Alexandria —, conhecia de cor esta lição. Daí ter o máximo cuidado de evitar alguns escolhos no âmbito dos predicamentos, que, se não fossem devidamente superados, o fariam passar vergonha perante os colegas. Neste contexto, infelizmente, quando as ciências naturais contemporâneas saem do seu escopo e se transformam num arremedo de metafísica, acabam transformando-se em ideologia científica, como diz Carlos Casanova no citado Reflexiones Metafísicas sobre la Ciencia Natural. Nestas ocasiões, mostram ignorar totalmente a ordem predicamental.


Pois muito bem. Ficou antes estabelecido como se pode dizer que o predicável gênero tem fundamento na matéria — ou seja, na medida em que o primeiro gênero subalterno é o corpo. Para se ter idéia de quão espinhoso é o problema, este princípio levou Santo Tomás de Aquino a dificuldades para colocar as criaturas espirituais num gênero, já que lhes falta esse fundamento genérico comum da matéria. Mas não mudemos de assunto e assinalemos agora algumas características do predicável seguinte: a espécie.


Diz o Aquinate, comentando a lógica aristotélica, que a espécie é o que se diz de muitas coisas diferentes numericamente no que tange à qüididade.[1]Trata-se na verdade de um termo polivalente, mas enquanto predicável é aquilo que diz respeito à essência de um ente e lhe indica a um só tempo o gênero próximo e a diferença específica. Por exemplo, quando se diz que João é animal racional, está sendo indicada nesta proposição a species constituitur ex genere et diferentia,[2]. Trata-se, reiteremos, do conjunto de notas (qualidades) que se podem predicar de muitos entes semelhantes no tocante à forma.[3] Quanto aos vários outros usos do terno “espécie” em Santo Tomás, deixemo-los para outra ocasião para não perder o fio da meada.


Para o que nos interessa, basta por ora saber que a espécie se predica do indivíduo, e o gênero se predica da espécie e do indivíduo. Mas atenção: tal predicação não diz respeito a acidentes materiais do indivíduo, nem a diferenças específicas dele em relação aos seus pares (como acontece em algumas classificações da taxonomia biológica, ao distinguir como espécies distintas entes com potências operativas idênticas), mas à essência — e, por conseguinte, às propriedades inalienáveis dela. A suas notas diferenciais com relação a todas as demais espécies.


E aqui chegamos ao predicável próprio.



3. O próprio


Em síntese, próprio é o que, embora não seja a essência de um ente, a ela está inextricavelmente associado. Pode-se por isso dizer que ele é uma emanação das potências que radicam em tal ou qual forma entis — de maneira que, ao ser identificado, se identifica no ato a essência da qual participa. Assim, por exemplo, a risibilidade é propriamente humana, porque nenhum dos outros entes animados possui a propriedade do riso, na medida em que o riso é o reflexo sensível, orgânico, de um tipo de fruição espiritual que radica na vontade e na inteligência. Portanto, sorrir, em sentido próprio, não é abanar o rabo como um cão, mas expressar fisicamente certo gozo no qual estão implicadas a inteligência e a vontade.


O cão não pode rir de uma piada, por exemplo, porque rir de uma piada pressupõe o entendimento de um desvio no curso natural do fato narrado, ou a compreensão do inusitado de uma situação, etc. Nestes casos, quando alguém ri é porque, em geral, entende que a situação foge ao habitual, e às vezes, mesmo sendo constrangedor ou impróprio rir, a pessoa não consegue conter-se porque a comicidade do fato se impõe à sua inteligência.[4] Com estes breves apontamentos agora se vislumbra uma definição precisa: próprio é um acidente inseparável da espécie. E o é porque se dá sempre e em todos na espécie. Noutras palavras, trata-se de um tipo de contingência que não pode ocorrer senão naquela espécie, pois é sua propriedade ímpar.


Esta definição aplica à espécie as categorias de tempo (sempre) e de quantidade (todos) porque há acidentes inseparáveis que não se dão em todos. Ou seja: há acidentes inseparáveis do indivíduo, e não da espécie, como por exemplo o ser macho ou fêmea. E há, por fim, os acidentes inseparáveis do gênero, como por exemplo a sensibilidade no animal, ou o peso nos corpos. Mas estes últimos não se podem dizer próprios senão por analogia, justamente porque se dão em várias espécies. E quanto aos primeiros, repitamos, não se podem dizer próprios porque se dão apenas neste ou naquele indivíduo.


Falaremos a seguir da diferença específica e dos acidentes, os dois últimos predicáveis.


(continua)


__________________________

1- Novamente: “In eo quod quid”.


2- Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q.3, art.5.


3- E, na clássica definição do Aquinate, o selhemante é o uno na qualidade.


4- Como não é a propósito do tema em questão, não entraremos em pormenores interessantes, a saber: de que forma pode dar-se nos anjos a ratio risibilis, já que eles não possuem corpo e o riso é o reflexo sensível de um ato espiritual. E como classificar o riso maléfico, ou seja, o que representa o gozo espiritual com o mal que sucede a outrem. Deixaremos estes problemas para o artigo sobre o riso que publicaremos mais à frente.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

"Santo Tomás de Aquino: a Cidade em Ordem a Cristo"


Carlos Nougué




Apresento abaixo o Proêmio do anunciado livro Santo Tomás: a Cidade em Ordem a Cristo (título definitivo). Pretendo escrevê-lo de modo que possa publicar algo ao menos quinzenalmente. Mas isto dependerá sempre de condições concretas.




Santo Tomás de Aquino:


a cidade em ordem a Cristo





Proêmio



Objeto deste livro



Como diria Aristóteles, não encontramos ao termo de uma investigação senão aquilo que já procurávamos o que é natural, se se considera que toda e qualquer conclusão já está implícita no conjunto de suas premissas.


Se assim é, o objeto deste livro é duplo:


a) mostrar que a conclusão de Santo Tomás segundo a qual a cidade ou pólis não pode ter por fim último senão a Deus decorre perfeitamente de determinadas premissas;


b) que essas premissas, de fato, ou se provam racionalmente ou se fundam na autoridade da Revelação e do magistério infalível da Igreja, com o que fica provada ou fundada, igualmente, aquela conclusão.


Que premissas são estas? Apresentemo-las em dois polissilogismos:


• Não pode haver mais que um fim último.


Ora, Deus é o fim último de todo o universo – e pois do homem, que se ordena a Ele segundo sua natureza própria de animal racional, social e histórico.[1][1]


• Sucede que, por essa mesma sociabilidade natural, as multidões humanas se reúnem em cidades, e o fim próximo das cidades humanas é a vida virtuosa.


• Se porém não há mais que um único fim último e se este é Deus, todo e qualquer outro fim – incluído o das cidades – não pode senão ordenar-se essencialmente, como fim intermediário ou meio, ao Fim dos fins.


• Ademais, o fim último de uma multidão não pode ser distinto do fim último de cada indivíduo que a compõe.


Logo, tanto a vida virtuosa como aquilo que a tem por fim próximo – ou seja, a mesma cidade ou pólis – se ordenam essencialmente a Deus.


Há mais, porém.


Para que um fim possa ordenar-se como meio ao fim último, é preciso um agente superior capaz precisamente de utilizar-se, como de um instrumento, daquilo que tem tal fim intermediário.


Se assim é, o estado, que é o poder civil sob o qual se põe a cidade organizada em regime político, deve ser utilizado como instrumento por um agente que lhe seja superior, para que o fim próximo dela, a vida virtuosa, se ordene como meio ao fim último.


Mas, como se trata de Deus enquanto fim último, tal agente superior há de ser propriamente competente para conduzir a Ele.


Ora, dada a história humana – que vai do Éden e da queda original ao fim dos tempos, passando pela Redenção –, o único agente competente para conduzir a Deus é a Igreja, instituída precisamente para isso.


Sucede ademais que, dada justamente a Redenção propiciada pela Paixão e Morte de Cristo – sem a qual não poderia o homem reconciliar-se com Deus –, a ordenação de todo o humano a Ele assumiu a forma concreta de ordenação a Nosso Senhor Jesus Cristo e a Seu Reino assim na terra como no céu.[2][2]


Logo, o estado – enquanto poder civil sob o qual se põe a cidade organizada em regime político – deve ser usado como instrumento pela Igreja em ordem a Cristo (assim como, analogamente, como se verá, o corpo se ordena como instrumento à alma no composto humano; a natureza à graça no justo; e a razão à fé na sacra teologia).[3][3]


§ Donde a conclusão geral: a cidade não pode ordenar-se ultimamente senão a Cristo Rei.


Trata-se neste livro, portanto – insista-se –, de provar segundo a razão ou de confirmar segundo a fé as premissas desta conclusão geral. Provadas ou confirmadas aquelas,[4][4] obviamente estará firmada esta.


(continue lendo)




quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O que ninguém vai lhe contar sobre o comunismo: a hediondez nua e crua

Sidney Silveira

O Prof. Ricardo da Costa vem postando no Facebook desenhos de Danzig Baldaiev (feitos na época em que era coronel da Polícia Secreta Soviética) — retratando os Gulags e outras benfeitorias humanitárias feitas pelos comunistas no século XX. Creio que muitos não conhecem estas imagens dantescas, por isso resolvi postar algumas delas aqui no Contra Impugnantes. O saldo, como é arqui-sabido, é de milhões de assassinatos.









terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A metafísica contra a teoria da evolução (VI): a natureza dos predicáveis




(continuação deste texto)


Sidney Silveira


Embora útil e adequada aos fins a que visa, a taxonomia da ciência biológica tende à entropia, pois multiplica ad infinitum as espécies a partir de pequenas diferenças materiais, sem a consideração prévia de que a matéria só pode ser raiz comum do gênero corpo — animado ou inanimado, conforme a clássica divisão da Árvore de Porfírio —, mas não um princípio definidor das espécies.[1] Veremos, a seu tempo, como esse modo de classificação (útil e adequado, repitamos, para a biologia) está indevidamente implicado na hipótese da evolução, e induz a um erro basilar quando se tenta aplicá-lo ao conjunto das espécies assim entendidas.


Contudo, como se vem apontando ao longo do presente estudo que a forma de um ente é o seu princípio de operação e de especificação, ou seja, é o que o faz ser diferente em espécie de todos os demais, vale fazer alguns aprofundamentos relativos a este tópico. Comecemos, pois, esclarecendo como algo pode, fundamentalmente, ser predicado de outro.


Trata-se, a propósito, de princípios pré-categoriais implicados em qualquer classificação possível por parte da inteligência humana.




O lugar do gênero e da espécie entre os predicáveis


1. O gênero


Partamos da consideração de que o intelecto humano é, radicalmente, essa potência para abstrair as condições individuantes da matéria e alcançar a região das formas inteligíveis, ou seja, alcançar o universal pelo particular. E também de que, nesta abstração da matéria, ele está apto a separar racionalmente coisas que estão em si unidas na realidade, atribuindo a muitos o que percebe em um (intenção de universalidade). Neste contexto, diz-se que a inteligência não está presa à matéria porque o seu objeto formal está além da matéria: a species intelligibilis, o ente imaterial ao qual o homem chega por um processo que se inicia nas potências sensitivas, passa pelo intelecto possível[2] e culmina numa “iluminação” do intelecto agente, como veremos.[3]


Dada esta atividade abstrativa da inteligência humana,[4] abra-se um parêntese para registrar que os conceitos por ela formulados são referentes antes de tudo à substância (ente), à qualidade (forma) e à quantidade (matéria) — neste último caso, evidentemente, em se tratando de entes compostos de matéria e forma. Todos os demais conceitos ou predicamentos, de alguma maneira, supõem estes. Mas como, afinal, se pode dizer que algo pertence a um gênero de ente?


Para responder a esta pergunta, deve-se levar em conta que os entes naturais são por nós conhecidos com a matéria, e não sem ela. Seja com esta ou com aquela matéria, não importa; o fato é que eles nos chegam devidamente limitados pelas condições da matéria assinalada por certa quantidade. Esta, por sua vez, é captável pelas potências sensitivas externas (tato, olfato, audição visão e paladar) e laborada pelas potências sensitivas internas (senso comum, memória, imaginação e cogitativa). Assim, por exemplo, as cores de determinada superfície, em virtude da luz que as torna visíveis, agem sobre a potência da visão e produzem uma forma (species) na base do intelecto possível — à qual chamamos "forma inteligível". Essa forma imaterial passa a estar presente virtualmente na potência intelectiva, até que o intelecto agente atualiza-a, fazendo-a passar de potencialmente inteligível a inteligida em ato. Neste sentido é que a gnosiologia tomista afirma que o intelecto agente ilumina a forma inteligível.[5]


Neste processo se chega ao universal: deste azul individuado naquela matéria y à forma inteligível azul — universal e distinta em espécie de todas as demais cores. Como se vê, trata-se de uma propriedade universal atribuída a este indivíduo, o que nos dá a clara indicação de que os universais não estão nas coisas reais, mas tão-somente na inteligência. Ninguém, portanto, jamais deparou com o azul, mas com este azul hic et nunc, abstraído da matéria pela potência intelectiva. Ninguém viu a humanidade, mas este ou aquele homem.


Isto considerado, observe-se que a inteligência — abstraindo a matéria signata — descobre graus de universalidade. E um deles é justamente o gênero, percebido como o que é comum em muitas substâncias no que tange à sua quididade.[6] Ora, como ente de razão, o gênero também não possui ser na realidade (genus non est unum in re, nas palavras de Santo Tomás), mas apenas na inteligência, que o identifica e o classifica.


A título de exemplo, neste contexto vale perguntar em que difeririam e em que se assemelhariam Platão, um asno e uma planta? Radicalmente, assemelha-os o fato de que todos estão no gênero da substância, mas este é o gênero generalíssimo e não conta para a nossa classificação, relativa a entes já compostos de matéria e forma.


Portanto, o que neles é comum (e o que os diferencia) é:


1- Possuir corpo;


2- Possuir corpo animado;


3- Possuir corpo animado sensitivo;


4- Possuir corpo animado sensitivo e intelectivo (racional).


Observa-se que, do corpo (primeiro gênero que é subalterno ao gênero generalíssimo, a substância), passando pelo segundo gênero subalterno (animal) até chegar a espécie ínfima especialíssima decorrente da racionalidade (ou seja, o homem) existe uma escala de diferenciações. Mas, a partir da espécie, as diferenciações só poderão ser numéricas, ou seja, materiais, e não específicas, ou seja, formais. Daí que Sócrates e Platão não difiram em espécie, mas em número.


Portanto, as formas específicas encontram-se indeterminadas no gênero, e todos os predicáveis neste âmbito se referem a ele fundamentalmente. É neste exato sentido a matéria se diz princípio de determinação do gênero, e não da espécie.


A seguir, após a definição de espécie, verifiquemos a atualidade da Árvore de Porfírio e sua pertinência ao problema que ora nos ocupa.


(continua)


__________

1-
Ou seja: a matéria não pode ser fundamento da especificação porque, nos entes compostos de matéria e forma, ela tem a função de condição predisponente para a forma realizar os seus atos próprios. Ademais, como se disse anterioremente, se a matéria fosse princípio de especificação, todos os entes com composição de matéria seriam de uma mesma espécie, o que é absurdo.
2- Ou seja: dessa potência radical para todos os inteligíveis.

3- Não há, portanto, o que alguns pensadores zubirianos chamam de cognição instantânea, pois, após inteligida uma essência pela primeira vez, não é necessário abstraí-la sempre e sempre, mas basta um reconhecimento (pela memória), desta ou daquela species inteligível particular, para que se perceba que o ente individual X pertence à essência Y. Assim, pois, quando o intelecto humano apreende um asno reconhecendo-o de imediato como asno, não se trata de cognição instantânea, pois mesmo neste caso o encontro do intelecto com a essência da coisa se dá por intermédio da species inteligível — a qual lhe aponta uma essência que já havia sido abstraída anteriormente das condições individuantes da matéria.


4- Advirta-se que a abstração à qual se faz aqui referência é desta ou daquela matéria, ou seja, da matéria delimitada por certa quantidade — captável, por sua vez, pelos sentidos. É neste sentido que as coisas naturais são conhecidas pelo homem a partir desta ou daquela matéria informada.


5- Luz do intelecto agente – lumen intellectus agentis – foi o conceito empregado por Tomás de Aquino ao fazer reparos à gnosiologia agostiniana da iluminação. Segundo o Bispo de Hipona, a percepção da verdade provém de uma direta iluminação divina na mente humana: é a luz divina o que propicia ao homem compreender as coisas por meio de símbolos e palavras. Em resumo, para Agostinho, a luz divina põe ao alcance do homem as verdades – que estão em seu interior como reflexo da própria verdade divina, eterna, necessária, imutável. Neste contexto, o mestre não faria mais do que transmitir ao discípulo os signos das coisas, e estes, para ser compreendidos, necessitariam haurir sua inteligibilidade da iluminação divina. A isto o Aquinate contrapõe o seguinte: se por “iluminação divina” se entende a potência da faculdade intelectiva ou a virtude encerrada nos primeiros princípios do entendimento, que não se adquirem por serem hábitos naturais inatos, então se pode dizer que Deus ilumina a mente humana. Mas a atividade cognoscitiva não consiste em o homem ser “iluminado” por Deus cada vez que entende algo. Para a aquisição da ciência requer-se o processo de compor e dividir raciocínios, tendo sempre como fundamento os primeiros princípios indemonstráveis. Neste contexto, o que faz o conhecimento passar da potência ao ato não é outra coisa senão o intelecto agente, princípio operativo inerente à alma humana. Esta é, pois, a função própria do intelecto agente – iluminar, fazer passar da potência ao ato um novo conteúdo inteligível. Cf. Santo Tomás de Aquino, De Ver q11 a1-2.
6- “No que tange à sua quididade” foi a expressão em português a mim sugerida pelo tradutor Luiz Astorga para a quase intraduzível expressão latina in eo quod quid. Ou seja: na definição do Aquinate, gênero é o que se predica de muitas coisas distintas em espécie in eo quod quid, quer dizer, “no que tange à sua quididade”.