quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

O Cogito cartesiano, ou o pensar como causa do ser (V)

Carlos Nougué
Terminávamos o artigo anterior desta série concedendo ab absurdo, “para esgotar todas as possibilidades dialéticas, que Descartes tenha posto o ‘logo’ em seu Cogito de maneira inadvertida, e que em verdade (como já ouvi sugerir...) seu Cogito deveria formular-se como proposição hipotética copulativa: ‘Penso e sou’. Se assim fosse, poderia atribuir-se ao Cogito cartesiano o caráter de primeiro princípio? Ou para Descartes se trataria efetivamente de um transcendental?” Respondamos pois a essas duas questões.

● Já vimos que uma hipotética copulativa pode ser um primeiro princípio: por exemplo, “A é A e não é B ao mesmo tempo e pelo mesmo aspecto”. Qual porém a diferença essencial entre esta hipotética copulativa e a suposta “Penso e sou” de Descartes? É que na primeira dessas hipotéticas copulativas, se uma das proposições fosse falsa, a outra também o seria, ao passo que na segunda dessas hipotéticas copulativas uma das proposições pode ser falsa sem que a outra o seja. Ora, o que se acaba de dizer é evidente: a) quanto à primeira, se A não fosse A, poderia ser B ao mesmo tempo e pelo mesmo aspecto, o que implicaria óbvio nonsense (e o implicaria precisamente por tratar-se de uma negação de um primeiro princípio, que não pode ser provado precisamente porque é inegável); e b) quanto à segunda, patentemente posso ser sem pensar (caso, por exemplo, esteja em coma), sem que isso implique nenhum nonsense (e não o implica precisamente por não se tratar de um primeiro princípio: com efeito, o que não é primeiro princípio [ou transcendental] pode ou deve ser provado precisamente porque é negável). E isso basta para mostrar a impossibilidade de também a suposta “Penso e sou” cartesiana ser um primeiro princípio.

● Poderia porém o Cogito cartesiano, quer em sua forma conhecida (“Penso, logo sou”), quer em sua forma suposta (“Penso e sou”), ser um trancendental? Obviamente que não, e isso por três razões. A primeira, formal: cada um dos transcendentais é uma ratio, uma noção, um conceito, e não um conjunto de noções ou conceitos como o é qualquer proposição. A segunda, filosófica: cada um dos trancendentais é transcendental precisamente porque se pode atribuir a tudo quanto tem ser ou participa do ser. Assim, tudo o que tem ser é ente, é coisa, é algo, é uno, é verdadeiro, é bom e é belo, e pelo fato mesmo de se atribuírem a tudo o que tem ser é que tais noções se dizem transcendentais (<>transcendens,tis, particípio presente de transcendere, “transpor”, + -al): com efeito, elas transpõem, vão além de cada realidade particular, e são propriedades de tudo quanto tem ser. Ora, ainda concedendo ab absurdo que o conjunto de noções que é o Cogito cartesiano pudesse ser um transcendental de caráter, digamos, duplo, é óbvio que um dos componentes desse conjunto não se poderia atribuir a tudo quanto tem ou participa do ser: de fato, nem tudo o que tem ser pensa. Uma pedra tem ser e não pensa, um par de sapatos tem ser e não pensa, um livro, ainda a Suma Teológica, tem ser e não pensa. A terceira razão de tal impossibilidade também é filosófica: como lembra Sidney Silveira no artigo “A doutrina dos transcendentais”, “todos os transcendentais são convertíveis entre si: tudo o que é ente é coisa; tudo o que é coisa é uno; tudo o que é uno é algo; tudo o que é algo é vero; tudo o que é vero é bom; e tudo o que é bom é belo, etc.”; ora, não se pode dizer que tudo o que é ente pensa, que tudo o que é coisa pensa, que tudo o que é algo pensa, que tudo o que é uno pensa, que tudo o que é verdadeiro pensa, que tudo o que é bom pensa, que tudo o que é belo pensa; logo, ainda considerando ab absurdo possível que uma proposição fosse um transcendental, o Cogito cartesiano não o seria, pelo que se acaba de ver.

● Mas, afinal de contas, o que precisamente era para o próprio Descartes o seu Cogito? Para responder a isso, demos longamente a palavra a Tomás Melendo (idem): “[...] a interpretação mais freqüente da asserção cartesiana, a canônica até alguns anos atrás, aproxima-a da de Agostinho de Hipona. [Mas veja-se, digo eu, que em verdade o silogismo de Santo Agostinho (‘Para equivocar-se, é preciso ser; ora, eu me equivoco; logo, sou’) é parte de um longo polissilogismo, muito ao contrário do descarnado entimema cartesiano; vê-lo-emos em outro artigo.] Também agora estaríamos diante de um raciocínio não expresso, no qual se subentende a premissa maior. Posta em forma, tal argumentação ficaria como se segue: 1) Para pensar é preciso existir [sic; o melhor seria usar ‘ser’ em vez de ‘existir’]*; 2) eu penso; 3) logo, eu existo [sic]. Mas não. Não é isso o que Descartes afirma. Vimos nosso filósofo defender o caráter intuitivo do cogito, ergo sum, e negar sua suposta índole de raciocínio implícito. E, ao fazê-lo, não pode senão estar eliminando a premissa maior de tal raciocínio elíptico: suprimindo o ‘para pensar, é preciso existir’ [sic]. Por quê? Não só porque assim o sustenta contra Gassendi, mas porque a menor e a conclusão do pretenso silogismo se encontram expressamente recolhidas no texto e constituem o todo da grande [sic] intuição [sic] cartesiana.”

Após dizer, assim, o que não era para Descartes o seu Cogito, passa Melendo a dar sua interpretação do que era ele para seu autor: “Desse modo, embora seja difícil admiti-lo, porque a afirmação se opõe ao são senso comum e ao conjunto da filosofia pré- ou extracartesiana, Descartes vem a sustentar que o pensamento não exige previamente, com prioridade de natureza, a existência ou o ser. Ao contrário, seria o próprio pensar, ou a consciência em qualquer de suas manifestações, o que confere realidade ao pensado. Só de tal modo o pensamento (e, em geral, a subjetividade) se alça como princípio primeiro não fundamentado, como princípio sem princípio, de qualquer realidade posterior: do eu, de Deus, do mundo material, dos três enquanto pensado-existentes.”

Para Melendo, portanto, ao que parece, o que importa não é saber se para Descartes o Cogito era um primeiro princípio ou um transcendental; trata-se de que para ele o Cogito afirmava algo essencial, a saber, que o pensamento é um primeiro princípio não fundamentado, um princípio sem princípio, o princípio pois de toda e qualquer realidade. Ora, digo eu, para os pré-socráticos, o princípio sem princípio de tudo era um elemento material (ou o fogo, ou o ar, etc.); para a filosofia e teologia católicas, tal princípio sem princípio de tudo é Deus, o “Eu sou aquele que é” do Êxodo, aquele que sendo o Ser participa o ser aos entes. Logo, para Descartes, o princípio sem princípio que é o pensamento não o pode ser senão em lugar ou de um princípio elementar qualquer dos pré-socráticos, ou do Deus criador do judeu-cristianismo. (Insista-se: esta conclusão não a expressa Melendo, conquanto possamos inferi-la de seu raciocínio.)

Com isso, já demos um grande passo para concluir esta série. Mas ainda permanecem alguns pontos sem resposta. Com efeito, diz Melendo, convergentemente conosco, o que pretendia dizer Descartes com seu Cogito; mas não diz de modo inequívoco o que é logicamente esse mesmo Cogito, e até parece concordar com Descartes quanto ao fato de ele não ser um entimema. Além disso, não raro chama o Cogito de “intuição”, aparentemente sem preocupar-se com uma maior precisão terminológico-conceptual. De nossa parte, porém, concluímos ao longo da série que o Cogito, por um lado, não é um primeiro princípio nem um transcendental, nem, por outro, é um juízo, mas é efetivamente um entimema, apesar da afirmação em contrário do próprio Descartes. Se assim é, qual a sua verdadeira premissa maior? Aquela que dissemos desde o princípio, a saber: “Para ser, é preciso pensar”? Se não, qual?

(Continua.)

* A diferença entre “existir” e “ser”, complexa questão metafísica, mereceria toda uma série à parte. Contentemo-nos aqui com o seguinte, que não é de minha lavra, e que elucida a dificuldade de maneira primorosa: “Eu [ente humano] existo tanto quanto uma xícara; mas sou mais que ela.”