quarta-feira, 31 de março de 2010

A prova da existência de Deus em Santo Tomás (III)


Sidney Silveira
Após evidenciar-se a absurdidade de remontar ao infinito as causas essencialmente ordenadas na ordem do ser — verdadeira contradictio in terminis, em sua própria formulação —, vale aduzir outros argumentos, desta vez pinçados não da obra de Duns Scot, como fizemos, mas da Suma Teológica de Tomás.

Antes, porém, reiteremos o fato de que, nas cinco vias, ficara patente a absoluta transcendência da causa primeira em relação a todas as causas segundas, o que põe por terra qualquer espécie de panteísmo, de confusão entre o Ser e os entes, entre Deus e o mundo (entendido este como todo o universo criado).

O seguinte quadro ilustra bem o caminho percorrido na aludida prova:

a) Dos entes móveis, moventes e movidos à transcendência do Ente Imóvel que se encontra fora e além da série de movimentos;
b) Dos entes eficientemente causados e causantes à transcendência da Causa Não Causada que está fora e além da série de causal;
c) Dos entes contingentes à transcendência do Ente Necessário que está fora e além de todas as contingências, e é na verdade o horizonte possibilitante destas;
d) Dos entes que são mais e menos na ordem do ser à transcendência do Ente que é Grau Sumo de Ser e está fora e além de todas as gradações, dada a sua infinitude, de que falaremos abaixo;
e) Dos entes naturais desprovidos de conhecimento que obram por um fim à transcendência da Inteligência Suprema que está fora e além de todos os fins naturais logrados, e é na verdade o fim último ao qual se destinam todos os fins específicos.

Em resumo, a omniperfeição do Próprio Ser Subsistente identifica-se com a sua transcendência em relação a todas as perfeições específicas que observamos nos entes — e ressaltemos, neste ponto, que “perfeito”, na definição do Aquinate, é o totalmente acabado ou feito (totaliter factum). Noutras palavras: a algo perfeito não lhe falta nada para ser o que é. Assim, um homem é perfeitamente humano quando todas as notas distintivas de sua essência se dão plenamente nele, mesmo no caso de haver alguma imperfeição acidental, como por exemplo uma pessoa cega que, malgrado a cegueira, continua essencialmente homem. Ocorre que não sendo Deus algo feito (factum), isto nos leva a uma dificuldade: parece que a perfeição não seja algo predicável a Ele, pois, como dizia São Gregório Magno, citado por Tomás, “expressamos as coisas de Deus balbuciando como podemos (balbutiendo ut possumus), mas efetivamente o que não é feito (factum) não pode em rigor chamar-se perfeito (perfectum)”. A isto responde o Aquinate dizendo que, de fato, não chamamos as coisas de ‘perfeitas’ até que tenham passado da potência ao ato; portanto, Deus, sendo Ato Puro e não tendo nenhum acidente, é não apenas perfeito, mas o maxime esse perfectum do qual todas as perfeições específicas dependem para ser (Cfme. Suma Teológica, I, q. 4, a.1 resp. e ad. 1).

Pois muito bem: a suma perfeição identifica-se com a omnimoda simplicitas que apontamos anteriormente, e a simplicidade, por sua vez, identifica-se com a infinitude. Vejamos os porquês.

Infinito é o que não tem limites de nenhuma ordem. Mas considerando que o ente se divide em ato e potência, podemos muito bem abordar o infinito numa dupla perspectiva: infinito atual e infinito potencial. Ora, o infinito potencial é o que não tem limites em sua potencialidade e, por conseguinte, em sua imperfeição. O mal, neste sentido, pode ser dito potencialmente infinito. Por exemplo: 2 + 2 = 4; portanto, qualquer outra resposta poderá ser errônea ao infinito. Apliquemos isto às séries de causas ordenadas por essência, e chegaremos à conclusão de que elas podem ser potencialmente infinitas, sim, por ser possível multiplicá-las o quanto quisermos. Mas isto não invalida a prova da existência de Deus, que diz que as causas não podem ser atualmente infinitas, pois o infinito, em sentido formal, só pode ser dito do Próprio Ser. Ou melhor: o infinito atual, diferentemente do potencial, não tem limites em seu ato formal, que é ser em sentido absoluto, e, portanto, máxima perfeição transcendente em relação a todas as perfeições formais e materiais.

Considerados todos estes pontos, impõe-se a conclusão de que nenhuma coisa, exceto Deus, pode ser infinita por essência (Cfme. Suma Teológica, I, q. 7. art.2). Se se considera o aspecto potencial-material, as coisas podem ser ditas infinitas em certo sentido (secundum quid), como nos casos acima citados. Não trataremos, neste texto, do outro tipo de infinitude secundum quid para Santo Tomás, pois isto foge ao escopo do presente texto: os anjos e a alma humana*. Por fim, se se considera o aspecto formal-entitativo, vale o seguinte: se algo não tem limites de nenhuma ordem (nem material, nem formal, nem potencial, nem atual, nem essencial), é portanto infinito em sentido absoluto (simpliciter).

Portanto, fica de vez resolvida a objeção que propunha uma série atual infinita de causas essencialmente ordenadas, pois o infinito em ato só cabe propriamente ao Próprio Ser Subsistente.
* Sobre a natureza angélica, já mencionada aqui, falaremos com mais vagar noutra oportunidade.

(continua)

segunda-feira, 29 de março de 2010

Autoridade doutrinal do Doutor Comum (II)

Santo Alberto e Santo Tomás, juntos

Sidney Silveira
Passado o primeiro momento da morte de Santo Tomás, a pronta reação da Ordem dos Pregadores às incompreensões que acabaram por resultar na condenação formal, em 1277, de algumas teses a ele atribuídas foi o que manteve acesa a chama de sua excelsa doutrina, ao longo dos 50 anos em que o Aquinate ficou proscrito. Na verdade, a oposição ferrenha de teólogos como John Peckham, Robert Kilwardby, Gil de Roma, Enrique de Gand, Duns Scot e outros acabou sendo o crisol que purificou o ouro, como lindamente afirma Santiago Ramírez em conhecido texto. Tanto isto é verdade que, mesmo antes de sua canonização, frei Tomás foi por muitos considerado como autoridade máxima em Filosofia, Teologia e Exegese, inclusive pelo seu antigo mestre, Alberto Magno.


Depois de quase cinco décadas de verdadeira prova de fogo, a autoridade doutrinal do Aquinate cresce ininterruptamente até o último quartel do século XX, antes de ser por assim dizer “rebaixada” a uma filosofia entre outras, com João Paulo II, que na Encíclica Fides et Ratio (nº 49) afirma que a Igreja não canoniza nenhuma filosofia em detrimento de outras. Mas deixemos este delicadíssimo tópico para o último texto desta série, e vejamos antes o que séculos de Magistério solene dos Papas nos dizem.

João XXII (1249-1334) frisa, ao iniciar-se o processo de canonização de Santo Tomás, que será uma magna gloria para toda a Igreja ter o frade dominicano entre os santos dos altares. Afirma o Papa, noutro documento, que o Senhor obrou verdadeiras maravilhas no Aquinate — tanto em santidade, como em sabedoria e milagres: em santidade porque observou o Boi Mudo da Sicília exatissimamente todas as regras e constituições de sua Ordem, conservando entre outras coisas a sua virgindade até a morte, além de não ter cometido nenhum pecado mortal em toda a sua vida; em milagres porque se comprovaram mais de trezentos, embora bastasse consultar os seus escritos para atestar o milagre da inteligência (tot fecerat miracula quot scripserat articulos); em sabedoria porque, depois dos Apóstolos e dos Padres, ninguém iluminou a Igreja tanto quanto ele (iste gloriosus Doctor post Apostolos et Doctores primos plus iluminavit Ecclesiam Dei).

Clemente VI (1291-1352) celebra-o como sal fecundo da vida da Ordem dos Pregadores, Doutor Egrégio de cujas obras e ensinamentos, repletos de sabedoria, recolhe a Igreja copiosos frutos espirituais, com os quais se nutre continuamente (ipsius fructus odore reficitur incessanter). Este Papa ordenou ao Capítulo Geral da Ordem, em 1346, que impusesse a todos os religiosos a obrigação estrita de seguir a doutrina de Santo Tomás.


O Beato Urbano V (1310-1370), por sua vez, ao ordenar o traslado do corpo do Aquinate de Fossanova a Toulouse para depositá-lo na Igreja dos dominicanos, diz que Santo Tomás pôs às claras vários enigmas da Sagrada Escritura, elucidando obscuridades teológicas e esclarecendo, com a sua exegese, incontáveis dúvidas no estudo da Sacra Pagina. Ao entregar a cabeça de Santo Tomás ao Geral da Ordem dos Dominicanos, diz o Papa que era ela depósito da divina sabedoria (cælestis utique sapientiæ gazophylacium). Urbano V também manifestou firmemente a vontade de que a Faculdade de Teologia de Toulouse se fundasse na “sólida e consistente doutrina aquinatense”, que deveria ser propagada como “doutrina verdadeira e católica” (doctrinam tamquam veridicam et catholicam sectemini).


Nicolau V (1397-1455) fará o mesmo ao mencionar o Aquinate ex cuius doctrina tota universalis iluminatur Ecclesia. E assim também Alexandre VI (1431-1503), para quem Santo Tomás é um luzeiro que ilumina todo o orbe cristão (lucerna præfulgens in inuverso christianorum orbem illustrat). Para Pio IV (1499-1565), sua doutrina é sagrada e produz abundantíssimos frutos de ciência e santidade. E esta primeira etapa de manifestação pela Igreja da autoridade doutrinal de Santo Tomás se encerra exatamente com São Pio V (1504-1572), que na Bula Mirabilis Deus, de 11 de abril de 1567, faz de Santo Tomás Doutor da Igreja Universal e equipara-o aos quatro grandes doutores da Igreja latina: Santo Ambrósio, São Jerônimo, Santo Agostinho e o excelso São Gregório Magno. Chama Pio V ao Aquinate de clarissimum Ecclesiæ lumem, e afirma com todas as letras que a sua doutrina é regra certíssima da nossa fé (certissima christianæ regula doctrinæ, qua Apostolicam Ecclesiam infinitis confutatis erroribus illustravit).


(continua)

sexta-feira, 26 de março de 2010

A prova da existência de Deus em Santo Tomás (II)



Sidney Silveira

SÉRIE INFINITA DE CAUSAS?

Uma objeção à prova da existência de Deus em Santo Tomás merece ser observada de perto, e diz o seguinte: é possível uma série de causas essencialmente ordenadas que remonte ao infinito, o que invalidaria a prova. Noutra formulação — cuja premissa inicial está pressuposta em vários argumentos do livro Tractatus de Primo Principio, de Duns Scot, embora ele não componha este silogismo—, diz-se: o que não repugna à razão é possível; ora, não repugna à razão conceber uma série infinita de motores e movidos na ordem do ser; logo, a série infinita de causas é possível[1].


Menciono Duns Scot propositadamente, para lembrar-nos que a dialética está acima da lógica, que não é senão o seu instrumento formal. Podemos logicamente compor silogismos irretocáveis, porém errôneos. No referido livro, usando de vários argumentos, de fato Scot prova a impossibilidade do regresso ad infinitum nas causas essencialmente ordenadas. E o prova de forma apodítica. Mas isto não retira o caráter problemático da premissa acima mencionada: a de que o que não repugna à razão é possível, pois aqui caberia distinguir, com toda a clareza, que nem toda possibilidade lógica o é no plano ontológico. Por exemplo: o probabilisticamente possível (que não repugna à razão), muitas vezes, é ontologicamente impossível, em virtude de uma série de impedimentos formais.

Não nos custa lembrar, neste ponto, que toda demonstração consiste em extrair uma verdade necessária, não conhecida de imediato em seus termos, de outras verdades evidentes com as quais ela se relaciona necessariamente. A posse da verdade filosófica, em suma, não é outra coisa senão o caminho percorrido pela inteligência do mais evidente ao menos evidente. E, aqui, os meus elogios a Scot são insuspeitos, dada a minha visão crítica quanto a uma série de pressupostos de que se vale em sua copiosa obra. Mas isto não invalida o que ela tenha de correto (lembro, a propósito, que Santo Tomás aproveitava verdades de vários filósofos, como por exemplo Avicena e Averróes, sem deixar de criticá-los severamente noutros pontos).

Comecemos, pois, pelos argumentos de Scot em De Primo Principio contra o regresso ao infinito de causas ordenadas por essência, não sem antes reiterar com toda a ênfase o seguinte: as causas são essencialmente ordenadas quando o posterior depende do anterior para ser e para operar; são acidentalmente ordenadas quando o posterior depende do anterior para ser, mas não para operar atualmente (conforme se explica aqui). Diz-nos o Doutor Sutil:

1- A totalidade das causas essencialmente ordenadas não pode ser causada por nenhum dos elementos da série, pois, neste caso, um destes elementos seria a causa de si mesmo, o que é absurdo. Logo, a série deve ser causada por algo extrínseco a ela, que lhe imponha necessariamente um limite. Sendo assim, é impossível a infinitude de causas ordenadas per essentiam.
2- Infinitas causas essencialmente ordenadas seriam simultâneas em ato, ou seja: dar-se-ia, na ordem do ser, uma infinidade atual de causas ordenadas, conclusão que só mesmo os filosofastros (philosophantes), segundo Scot, admitiriam. Pois muito bem: o que é anterior está mais próximo ao princípio. Mas onde não há princípio não pode haver anterior nem posterior, e, neste caso, não haveria a série de causas essencialmente ordenadas que observamos na realidade. Logo, é impossível que ela seja infinita.
3- Uma infinidade de causas acidentalmente ordenadas seria possível se se fundasse em causas essencialmente ordenadas infinitas, pois o essencial está para o acidental assim como o ato está para a potência. Mas, provada a impossibilidade da infinitude essencial, a fortiori fica demonstrada a impossibilidade da infinitude da série acidental.
4- Infinitude implica omnímoda simplicidade (omnimoda simplicitas), premissa da qual falaremos abaixo. Sendo assim, a infinitude exclui qualquer composição de partes quantitativas. Ora, toda e qualquer série de causas — seja acidental ou essencial — contém partes quantitativas, na medida em que numa relação causal há a anterioridade da causa e a posterioridade do efeito. Logo, a série causal não pode ser infinita.

Defender a infinidade de causas essencialmente ordenadas — objeção corriqueira a um ponto nevrálgico da prova da existência de Deus em Santo Tomás — pressupõe a idéia de que o infinito numérico seja possível em ato. Portanto, quando o objetor vier com esta conversa, o primeiro a fazer é mostrar-lhe que o infinito é algo a que nada pode ser acrescentado, pois se pudéssemos acrescentar algo ao infinito, não seria ele infinito. O infinito não tem partes. Sendo assim, as causas essencialmente ordenadas, que observamos na realidade, não podem ser em número infinito. Ademais, o infinito é, como diz Scot, omnimoda simplicitas, o que quer dizer simplesmente o seguinte: a única infinitude possível é ser Ato Puro sem mescla de nenhuma potência passiva e, portanto, sem partes quantitativas: Deus. Fora de Deus, portanto, nada pode haver de infinito, em sentido próprio.

Dirá Santo Tomás, neste contexto, que o infinito é aquilo que não tem limites de nenhuma ordem, seja formal ou material (Suma, I, q.7 art. 1, resp). A infinitude de Deus implica, pois, que Ele não está adstrito a nada, ou seja: é simplesmente Ser. A forma do Sócrates é a humanidade; a de Bucéfalo, cavalo de Alexandre, é a eqüinidade; a de Deus é Ser em sentido absoluto e, portanto, sem limites — infinito.

Outra prova interessante seria a seguinte: toda causa participa algo da sua perfeição ao efeito (por ex. o calor que o fogo participa à comida, no cozimento). Isto implica que o efeito é perfectível, ou seja, passível de receber de outrem novas formas. Ora, o que é perfectível carece de alguma perfeição acidental. Mas a infinitude exclui toda e qualquer composição de acidentes (cfme. Duns Scot, De Primo Principio, IV, Decima Conclusio). Logo, nenhuma relação causal pode remontar ao infinito; é preciso, pois, conceber uma causa primeira não causada por nenhuma da série.

Poderíamos trazer à luz também os porquês de o infinito ser, necessariamente, imaterial, e não uma magnitude. Mas isto foge ao objetivo do presente texto. Por ora, basta dizer que fica totalmente refutada a objeção à prova de Santo Tomás que pressupõe a possibilidade de uma série infinita de causas essencialmente ordenadas.

E o fizemos com argumentos de um dos seus principais opositores.
[1] Neste silogismo, aproveito apenas a primeira premissa de Scot, mas convém advertir que o Doutor Sutil defende enfaticamente a impossibilidade de as causas ordenadas remontarem ao infinito — como se viu nos exemplos citados acima. Apenas fiz questão de apontar a problematicidade da primeira premissa do silogismo, para mostrar que, noutro contexto, ela pode conduzir a erros tremendos, pois nem tudo o que não repugna à razão é possível em sentido absoluto.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Aprendizado de solidão

Carlos Nougué
Escreveu-me um amigo perguntando que argumentos devemos opor aos dos ateus com respeito à existência de Deus, e particularmente a afirmações como a de que “a ordem percebida do universo é um mecanismo de defesa do cérebro”, o que “invalidaria a 5ª. via” de Santo Tomás. Transcrevo a seguir parte da resposta que lhe dei.

“Infelizmente, nada se pode dizer de muito extenso com respeito ao que pede. Por quê? Porque as provas tomistas da existência de Deus já são a razão natural elevada a metafísica, ou seja, nada há que acrescentar a elas. Dizia S. Tomás que com homens de outras religiões não se podia discutir fé, porque eles negavam a fé verdadeira; mas deviam-se desmontar seus erros racionais porque, fazendo-o, se podia mostrar que sua fé falsa se baseava também em erros de razão. E o dizia porque aqueles homens [de modo geral] não negavam a razão natural. Ora, [especialmente] os ateus atuais negam a razão natural e, logo, a metafísica, que não é senão a razão natural elevada a ciência. Prova? Basta o que o amigo mesmo me envia: o dizer que a ordem percebida do universo é um mecanismo de defesa do cérebro e que isso invalidaria a 5ª via. Como discutir com homens que negam a capacidade humana de compreensão?

“A única coisa que se lhes pode lançar em rosto é que toda a humana compreensão das coisas se baseia em princípios, como o de contradição, dos quais decorre inexoravelmente. Ora, eles, os ateus [atuais], ainda que sem o aceitar, têm de tentar negar a capacidade de compreensão humana sem negar, na prática, os primeiros princípios da razão humana [porque, se o fizessem, nem sequer poderiam afirmar algo]. Ora, se tal é assim, é porque o que decorre inexoravelmente daqueles mesmos princípios a que os próprios ateus têm de recorrer na prática é real e verdadeiro.

“E pode-se-lhes dizer ainda isto: se não temos capacidade de compreender a verdade, como sabem vocês, ateus, que é verdade o que dizem ser verdade, ou seja, que a verdade não existe? Vê, caríssimo, a loucura que temos diante de nós?

“Se lhe posso dar um conselho, amigo, mais vale para nós, neste tempo de apostasia não só religiosa mas também racional, de desolação e abominação não só da fé mas também do intelecto, mais vale, digo, estudar que discutir. Os homens modernos são como pedras, impermeáveis a qualquer verdade, porque negam a existência da própria verdade. Nada de mais útil que descobrirmos, para nós mesmos e para pessoas que [pelo menos] não negam de todo a razão natural, as verdades contidas nas páginas de um Aquinate.”

Quando os cristãos se reuniam nas catacumbas de Roma para fugir da perseguição, ou quando, após a queda do Império Romano, santos varões se isolavam no deserto, que estavam fazendo senão entregar-se a um aprendizado de solidão, ou melhor, dessa espécie única de solidão em que nos encontramos a sós com Deus? Pois bem, a um aprendizado semelhante devemos entregar-nos hoje os católicos. Num momento em que a apostasia é tão geral que se instalou até na Hierarquia da Igreja, momento que não é antecedente a uma cristianização do mundo (como a que se deu em Roma e após a sua queda), mas conseguinte à descristianização dele, como agir de outro modo?

É bem verdade que as catacumbas e os desertos foram os pontos de partida daquela cristianização. Não creio que as catacumbas e os desertos atuais o sejam, e em outro lugar falarei aprofundadamente das razões que me levam a tal descrença. Mas diga-se por ora, ao menos: ainda que eu pudesse estar equivocado quanto a isto (possibilidade que concedo perfeitamente, por não julgar-me nenhuma espécie de profeta), nem por isso deixaria de ser verdadeira a afirmação de que devemos entregar-nos hoje ao aprendizado desta espécie única de solidão. Crer que movimentos, partidos, acordos espúrios, indiferenciações doutrinais, mitigações da verdade possam levar-nos a uma reversão do quadro atual e, pois, a uma recristianização do mundo é esquecer que, ainda que isto fosse possível, não se poderia dar senão ao modo dos cristãos das catacumbas e dos Padres do deserto: tendo como eixo a solidão com Deus e com a verdade, e sem concessões religiosas e doutrinais.

Tudo o mais são formas várias, digamos, de “milenarismo”, que como tais, por buscarem algo quimérico (ou pelo menos por buscarem algo de modo quimérico), acabarão sempre por incorrer em equívocos de lesa-doutrina, de lesa-verdade, de lesa-realeza de Cristo.

Em tempo: a pessoa responsável pelo blog “A Grande Guerra” (
http://a-grande-guerra.blogspot.com/#), que tem por epígrafe “A santa modéstia é um heroísmo”, pediu-me que o divulgasse. E o faço com muito gosto. Nele se podem ler muitos textos do magistério da Igreja, de Santos e de Doutores sobre a modéstia no portar-se e no vestir-se; sobre o matrimônio e seu fim primeiro; etc. Não li o blog inteiro; mas o que li me basta para recomendá-lo vivamente.

quarta-feira, 24 de março de 2010

A prova da existência de Deus em Santo Tomás (I)

Sidney Silveira
Os maiores intérpretes da obra de Santo Tomás deram-nos a sua leitura particular das cinco vias demonstrativas da existência de Deus propostas pelo Aquinate. Dada a importância capital deste problema, faremos um resumo didático, trazendo pontos consignados por diferentes tomistas — com um ou outro acréscimo nosso. Sempre, é claro, tomando como base o texto do mestre. Mas atenção: a complexidade do problema exige que não se pulem etapas. Portanto, é necessário dar máxima atenção à leitura dos axiomas consignados na explicação de cada uma das vias.

Depois, veremos se a prova do Aquinate é ou não refutável.

A ESTRUTURA DAS CINCO VIAS

Todas as vias apresentam a seguinte estrutura:

a) Um ponto de partida
> Evidência: consignação de um fato observado pela experiência.

b) Primeiro grau da via > Este fato é um efeito — que, por definição, não pode ser a causa de si mesmo, mas é necessariamente causado.

c) Segundo grau da via > O referido efeito se insere numa série de causas essencialmente ordenadas, e, portanto, é necessário admitir uma primeira delas, pois não havendo esta e as seguintes, não haveria nenhuma, inclusive o efeito consignado no ponto de partida, que é evidente. Negá-lo seria cair no absurdo.

d) Terceiro grau da via > Conclusão: essa causa primeira da série ordenada essencialmente identifica-se com Deus. Ou, como diz Sto. Tomás, identifica-se com aquele “a quem todos chamam Deus” (quam omnes Deum nominant) ou o que “todos entendem por Deus” (omnes intelligunt Deum), etc. Logo, Deus “é”. Existe.

Algumas premissas:

1- Toda demonstração da existência de Deus deve partir de algo contingente (em termos teológicos: da criatura, e não de Deus). Deve partir do ente e não do Ser, dos efeitos e não da causa — cuja essência é, em si, inalcançável para os nossos sentidos e inapreensível para a nossa inteligência. É uma prova a posteriori, ao contrário da prova de Santo Anselmo.
2- Em linhas gerais, o ente real pode ser avaliado como dinâmico ou em movimento e como estático ou entitativo. Isto porque o ente ou está fazendo-se (movimento), ou está feito (estático ou existente), ou então por fazer (ente potencial). Trata-se de modos distintos de participar do Esse divino, como veremos.

A partir dos entes dinamicamente considerados, a existência de Deus será demonstrada nas chamadas vias dinâmicas (1ª, 2ª e 5ª); e, partir dos entes estaticamente considerados, o será nas chamadas vias entitativas (3ª e 4ª). Ou seja: a existência de um primeiro motor imóvel (1ª via), de uma causa eficiente primeira (2ª via) e de uma inteligência universal ordenadora (5ª via) aponta para aspectos operativos e dinâmicos do Ser divino. Por sua vez, a existência do Ser necessário que é a causa de todos os contingentes (3ª via), e de um Ser perfeitíssimo do qual todos os entes participam em diferentes graus (4ª via), aponta para aspectos entitativos do Esse divino.

As provas da existência de Deus procederão:

1ª VIA – Do movimento

Ponto de partida > A existência do movimento. Como constatam os sentidos, há no mundo coisas que se movem. (Certum est enin, et sensu constat, aliquid moveri in hoc mundo)

1º Grau da via > Tudo o que se move é movido por outro. Ou seja: ser movido significa receber a ação de outrem, ou, noutra formulação, ser paciente da ação de outrem. Admitida a premissa (cuja evidência ninguém pode negar, sem cair no absurdo) de que há coisas que se movem, observa-se que tudo o que se move é movido por outro. Ora, todo movimento pressupõe um ato do móvel (actus mobilis), um ato do motor (actus motoris) e uma tendência a um fim (via ad terminum), que é a nova forma adquirida ao final do movimento. Ressalte-se também que todo movimento é, primordialmente, trânsito da potência ao ato. Assim, mover e ser movido são os dois aspectos no movimento, em sentido metafísico. E acrescente-se ainda que todo movimento termina na forma; a forma é o término da geração ou do movimento (est enim forma generationis terminus, diz Sto. Tomás em De Substantiis Separatis, 47.). Para que qualquer ente atualize uma de suas potências e se movimente de uma forma a outra, ou de um estado a outro, é necessário um motor para a mudança — seja um motor intrínseco ou extrínseco (no caso dos entes materiais, que não têm em si o princípio intrínseco de movimento, este será necessariamente ab extrinseco). Assim, para que a madeira atualize a sua potência para o fogo, é necessário que tal potência seja atualizada por algo que não seja ela mesma. Um motor externo do ato. No caso, será algo quente com o qual a madeira entre em contato, para adquirir a forma do fogo. Neste contexto, podemos dizer que mover é comunicar ao móvel uma perfeição (entendida aqui como forma ou operação) que ele é capaz de adquirir. Outra coisa: nenhum ente pode ser motor e móvel ao mesmo tempo em ordem a uma mesma perfeição (não pode, por exemplo, ter e não ter a forma do fogo). Enquanto móvel, o ente carece de determinada perfeição ou forma; quando movido, adquire-a. Mas, para tanto, precisa de um motor. Para esboçar uma negação desta estrutura metafísica do movimento sem cair no absurdo, precisaríamos ao menos de um exemplo atestado pela experiência de que não há coisas que se movem. Contudo, não havendo nenhuma evidência disto, é necessário admitir o primeiro grau da via, corolário da premissa inicial: tudo o que se move é movido por outro. E o movido é, na verdade, efeito da ação.

2º Grau da via > Admitido, por absoluta necessidade racional, o primeiro grau da via (que, na ordem do ser, tudo o que se move é movido por outro), vamos à questão seguinte. A realidade atual pressupõe movimentos e uma subordinação de vários motores e movidos. Mas poderá tal subordinação ser acidental? Aqui vale consignar que, nas causas ordenadas acidentalmente, a existência atual do efeito não exige a existência atual das causas próximas ou distantes para estar no pleno gozo do seu actus essendi; nas causas ordenadas essencialmente (na terminologia de Sto. Tomás, ordenadas per se), a existência atual de um determinado efeito supõe ou necessita da existência atual de todas as suas causas, sejam próximas ou distantes, para que o efeito comum se dê (veja-se aqui a diferença entre esses dois tipos de séries causais). Agora, a pergunta: para explicar o movimento atual no ser, é possível fazê-lo apenas pela subordinação de causas acidentais? A resposta é “não”. Pois se na ordem do ser houvesse apenas subordinação acidental, em algum momento seria possível o nada absoluto, uma ruptura no ser. Esta observação será desenvolvida na terceira via. Agora, cabe dizer que, de fato, a razão pode até imaginar uma série infinita de motores — acidental ou essencialmente ordenados —, para tentar explicar o movimento atual, mas, por mais que aumentemos a série de motores e móveis a uma ordem cósmica de grandeza “infinita”, tal razão será deficiente: sempre será necessário admitir, para cada movimento, um motor, e enquanto não concebemos um primeiro motor não-movido (ou seja: imóvel, sem potência passiva para receber perfeições de outrem), torna-se absolutamente aporético o movimento atual na ordem do ser. É, portanto, uma necessidade racional conceber o primeiro motor imóvel como término da série essencialmente ordenada de causas do movimento. [Abordaremos em detalhes, no próximo texto, os porquês da impossibilidade da série causal infinita]

3º Grau da via > Conclusão. Concebido o primeiro motor imóvel como o único capaz de explicar satisfatoriamente o movimento atual (sempre lembrando-nos de que todo movimento pressupõe um motor), a identidade entre esse primeiro motor e o conceito que todos os homens têm de Deus passa a ser quase imediata. Ele move todos os demais e não é movido por nenhum (omnipotência divina); sua atividade é fonte de todos os atos posteriores a ele (alcance universal da ação divina); ele é subsistente por si (eternidade/imortalidade divina); sua plenitude de ser, posto que não ele possui potência para o não-ser, indica perfeição absoluta (omniperfeição divina).

2ª VIA – Da subordinação das causas eficientes

Ponto de partida > A existência da causalidade. Como nos atesta a experiência, observamos na ordem sensível causas eficientes que produzem um efeito comum, como foi dito acima a propósito da primeira via. Portanto, noutros termos: há coisas que são causadas. Negar isto é cair no absurdo, demitir-se do senso comum, buscar caminhos aporéticos — como o de David Hume, do qual ainda falaremos no blog.

1º Grau da via > É impossível que uma coisa seja a causa do si mesma na ordem do ser. Lembremo-nos, aqui, da noção de causalidade na perspectiva tomista: dependência no ser. A razão, pautada na experiência, nos aponta para a absoluta necessidade de que assim seja. Isto porque nada é anterior a si mesmo, pois postular tal coisa é cair no absurdo metafísico e lógico. Portanto, é necessário admitir, neste grau da via, que as coisas causadas são efeitos. Ocorre que, na presente consideração, Sto. Tomás tem em vista os efeitos para os quais concorrem várias causas ordenadas per se, entre as quais a primeira é causa da intermédia (seja uma ou muitas) e esta é a causa da última. Como dizia Leonel Franca, reparemos, por exemplo, que o olho humano, para ver, necessita de inumeráveis causas ordenadas essencialmente: um sistema de filetes nervosos capazes de transmitir ao cérebro as imagens captadas; uma série de meios transparentes, sólidos e líquidos, constituindo um sistema dióptrico para garantir que a imagem se forme na retina; uma lente de curvatura variável – o cristalino – que permite adaptar a visão a várias distâncias; o humor lacrimal que lava o olho e mantém a superfície da refração, conservando-lhe a transparência; um diafragma que elimina raios periféricos de luz e assegura a nitidez da imagem; a dualidade dos olhos que permite a visão estereoscópica com a percepção do relevo e da terceira dimensão; a cavidade das pálpebras que protege todo o aparelho ocular; etc. Todas essas causas se ordenam essencialmente e convergem para o efeito comum, a saber: ver! Isto porque, numa relação de dependência no ser, suprimida a ordenação essencial das causas, cessa o efeito — necessariamente. Assim, se uma dessas causas deixar de ser, o ato da visão, que é efeito comum de todas elas, cessará ou, na melhor das hipóteses, será grandemente comprometido. Isto vale ainda mais para o ser: se fosse possível uma ruptura no ser, teria havido em algum instante o nada absoluto, que por sua absoluta impotência nada poderia gerar. Não estaríamos aqui e agora discutindo o problema... Veremos ainda nesta série sobre a prova da existência de Deus que o nada absoluto é impossível.

2º Grau da via > Numa subordinação per se de causas eficientes — e podemos tomar o olho humano como ponto de analogia —, não cabe (assim como na primeira via) uma série indefinida ou infinita, mas é absolutamente necessário chegar a um primeiro da série: a uma causa não causada por nenhuma outra. Se se postula a série infinita — que, além do mais, é uma contradição nos termos, porque se é uma série possui um modo de ser específico e, portanto, é finita —, cai por terra a explicação da atualidade das causas eficientes, o evidente ponto de partida da via. Além disso, excetuando o modo de causar de Deus, o qual por razões óbvias não podemos tomar como ponto de partida da demonstração da Sua própria existência, a experiência nos mostra que, onde há causa, há anterioridade com relação ao efeito, que por sua vez é sempre posterior à causa, o que configura a subordinação. Noutras palavras: se postulamos uma causalidade eficiente ao “infinito”, torna-se absurda a causalidade atual cuja evidência foi anteriormente consignada. Mas, como se disse acima, refutaremos no próximo texto a tese de que a causa pode ser infinita (o que não faremos agora para não perder o fio da meada). Lembremos por ora que, na metafísica tomista, o ato de ser é a máxima perfeição dos entes e é, também, uma participação no Esse divino. Se aceitássemos a série infinita (impossível por definição), aceitaríamos a tese de que um ente — em sua radical indigência ontológica — seja capaz de dar a si mesmo o ser, ou seja: autocriar-se, o que é impossível. Portanto, é necessário admitir uma causa eficiente primeira não causada por nenhuma outra.

3º Grau da via > Conclusão. Essa causa eficiente primeira difere de todas as causas eficientes segundas quanto à posse do ser, pois, sendo a primeira causa não-causada, é necessário admitir que, nela, ser e operar sejam a mesma coisa, ou, noutra formulação — o seu operar é o seu ser em termos absolutos (simpliciter), enquanto o operar dos entes é ser em sentido relativo (secundum quid), ou seja: circunscrito e limitado por esta ou aquela forma. A identidade dessa causa eficiente primeira com aquele a que todos chamam Deus é clara: sendo primeira, é causa de todas as demais (causalidade universal); sendo primeira, todos os demais estão submetidos à sua radical ação, da qual dependem para ser (omnipotência e atividade mantenedora de Deus).

3ª VIA – Da contingência

Ponto de partida > O fato da contingência. Como nos atesta de forma inequívoca a experiência, é evidente que há coisas que podem ser e não ser (possibilita esse et non esse). Negar esta evidência conduz ao absurdo. Basta observarmos todos os entes à nossa volta (sem nenhuma exceção): todos podem ser e não ser, ter esta ou aquela forma, ser gerados e se corromper.

1º Grau da via > Tudo o que pode ser ou não ser, com certeza um dia não foi. Dirá Sto. Tomás que é impossível que todos os entes sejam contingentes, ou seja: possam ser e não ser. É preciso chegar a um que seja necessário — sem nenhuma potência para não ser. Isto porque, se todos os entes fossem desta condição (contingentes), chegaríamos também aqui à conclusão de que houve, em algum momento, o nada absoluto, o qual seria absolutamente impotente para trazer algo ao ser. Convém frisar neste ponto o seguinte: tanto o “poder ser” como o “poder não ser” pressupõem um ente em ato, anterior. Lembremos de Aristóteles, que diz (na Metafísica, XII, 6) que uma potência pode não atuar, mas o ato não pode deixar de atuar, pois isto implicaria a possibilidade de cessação do movimento, o que para o Estagirita é impossível. Santo Tomás aprimora o argumento aristotélico afirmando que, se todas as coisas, sem exceção, tivessem possibilidade de não ser, haveria um momento em que nenhuma coisa foi. (Si igitur omnia sunt possibilia non esse, aliquando nihil fuit in rebus). Isto porque, se todos os entes podem não ter sido sempre, hão de ter começado a ser — e como nenhum ente contingente tem o condão de dar o ser a si mesmo, é necessário haver algo cujo ser seja subsistente. Ademais, se houvesse o nada absoluto, nada estaria sendo agora, pois o que é só pode provir de um ente em ato, e não do nada. Ou seja: o absoluto nada é absolutamente impotente para dar o ser, pois se fosse potente, não seria o nada, mas algo. Para explicar a atualidade das coisas contingentes, portanto, a razão necessita postular a existência de um Ser necessário e subsistente. Fugir a esse caminho é, literalmente, cair no irracional. Assim, aceitemos o 1º grau da via: tudo o que pode não ser, com certeza um dia não foi, pois o que tem potência para não ser, com certeza não pode ter sido sempre.

2º Grau da via > Admita-se, portanto, a existência de um ser necessário, que sempre foi e existiu, como princípio da série causal essencialmente ordenada. Pois bem: esse ser necessário, ou tem por si mesmo a existência necessária, ou a recebeu de outro. Mas esta segunda hipótese suscita o mesmo problema anterior, pois numa subordinação de entes presumivelmente necessários, também não se pode proceder ao infinito, pelas razões já apontadas. É preciso pôr um fim à série. E este fim é a admissão da existência de um Ser Necessário, em sentido absoluto.

3º Grau da via > Conclusão. O Ser Necessário é o único que pode dar o ser aos contingentes, e tem a sua existência devida à sua própria natureza. Tal ser necessário, dirá Santo Tomás ao final desta via, é esse a quem todos chamam ‘Deus’ (quod omnes dicunt Deum). Aqui, novamente, a identidade entre ser necessário e Deus é quase imediata: ser absolutamente necessário é ser por si mesmo (subsistência/eternidade); é ser ato puro, sem mescla de potência (omniperfeição e omnipotência divinas); todos os contingentes, que têm ser, estão (de) pendentes do Ser Necessário (conservação de todas as coisas por Deus); etc.

4ª VIA – Dos graus de perfeição

Ponto de partida > A gradação na ordem do ser. Há coisas que comportam o mais e o menos. Mais quente, menos quente, maior e menor, mais perfeito, menos perfeito. Este ponto de partida também provém da experiência — a qual tem sua base radical nos dados fornecidos pelos sentidos. Negar haver gradações é negar uma evidência que até mesmo um animal irracional percebe, quando por exemplo foge de um calor excessivo, ou quando está com frio e se aproxima do calor para esquentar-se. Haver mais e menos na ordem do ser, portanto, é evidentíssimo.

1º Grau da via > Antes de tudo, faça-se a ressalva preliminar de que há de fato perfeições que não comportam graus — como todas as genéricas ou relativas às espécies. Por ex.: não existe mais ou menos animal, mais ou menos cachorro, mais ou menos homem, mais ou menos árvore, mais ou menos cor, etc. Entre as perfeições que podem ter graus, de acordo com o tomista Francisco Muñiz, destacam-se as acidentais que têm uma razão unívoca dentro de uma mesma espécie (a temperança, justiça e a ciência, etc. no homem); as transcendentais puras que têm razão análoga (o ser, a bondade, a verdade, etc.); e as não-transcendentais que também possuem razão análoga entre diferentes espécies (o querer, entender, etc.). Santo Tomás, OBVIAMENTE, refere-se nesta quarta via demonstrativa aos graus de perfeição nas realidades... que comportam graus! Isto considerado, o primeiro grau da via será, portanto, a consideração de que as perfeições realizadas em diversos graus são causadas, ou seja, são efeitos da ação de outrem, porque o mais e o menos se dizem de acordo com a sua proximidade ou distância do máximo (sed magis et minus dicuntur de diversis secundum quoq apropinquant diversimode ad aliquid quod máxime est). Por ex.: Os graus de calor nos planetas do sistema solar diferem na exata medida em que mais se aproximam ou mais se distanciam da causa do calor — o sol. E assim quanto às demais coisas. São efeitos, portanto.

2º Grau da via > Pois bem: tudo o que é, tem ser, está na posse do seu actus essendi, mas não possui o ser em plenitude — pois é limitado por sua forma entitativa específica. Eu, por exemplo, não posso atualizar todas as possibilidades do ser, mas apenas algumas poucas. E assim com todos os demais entes. A doutrina da participação, que Santo Tomás assimila de Platão (tirando-a da aporia da cisão entre a essência da Idéia pura e o seu correspondente nas essências mistas), tem aqui uma de suas belas sínteses metafísicas, e, se esquecermos que o ser, para Santo Tomás, é perfeição de todas as perfeições, talvez não dimensionemos o alcance desta quarta via. No plano metafísico, o corolário da premissa assumida no primeiro grau da via é o seguinte: todos os entes têm ser, em maior ou menor grau, na medida em que se aproximam ou se distanciam daquele que não apenas está na posse do seu ato de ser, mas é o próprio ser (ipsum esse). Existe algo que é máximo ser e causa do ser de todos os entes (na formulação do Angélico: ergo aliquid quod omnibus entibus est causa esse). A aceitação desse maximum do qual todos participam é uma adesão necessária do intelecto, ao considerar que ter uma perfeição em máximo grau é tê-la por si e essencialmente, e tê-la de um modo fragmentado é tê-la por participação naquela que é por si mesma. Assim, para que todas as coisas sejam (e o são conforme algum modo, e com os seus graus específicos), é preciso que haja um ser em sumo grau que não receba de outrem nada estranho à sua própria natureza (e o estranho à sua natureza seria o não-ser), mas, ao contrário, que participe a sua natureza a todos os outros. Assim, o segundo grau da via é a assunção, por uma via analítica (resolutio), da necessidade de conceber um ser absolutamente pleno, o Próprio Ser Subsistente, fim último e término da série de gradações. Grau máximo de ser e doador do ser.

3º Grau da via > Conclusão. Esse Próprio Ser Subsistente que é suma verdade, suma perfeição, suma unidade, suma bondade — e, como nos diz Aristóteles, “a máxima verdade e a máxima entidade coincidem”—, é a causa do ser, da verdade, da unidade, da bondade e da perfeição em todos os entes. A identidade entre o Próprio Ser Subsistente e aquele que todos entendem por Deus é manifesta: Ele é plenitude de ser (omnipotência); é princípio dos atos de ser de todos entes (Criação); etc.

5ª VIA – Da finalidade dos agentes naturais

Ponto de partida > O fato da teleologia, nos entes desprovidos de conhecimento. A experiência vulgar nos atesta que existem no mundo entes que, carecendo de conhecimento, obram por um fim. Prova disso é que sempre obram identicamente, como os próprios sentidos nos informam. Vemos, por exemplo, que todos os rios possuem uma nascente e correm para o mar. Negar que há entes sem inteligência que alcançam sempre (ou quase sempre) o mesmo fim em suas operações é negar, por exemplo, que numa cachoeira a água do rio não vai sempre cair e produzir o mesmo efeito, dadas as suas condições naturais. A finalidade nas operações da natureza é, portanto, o ponto de partida evidente desta via.

1º Grau da via > Os entes que carecem de inteligência, quando operam por um fim, o fazem ordenados por uma inteligência. Ou seja, são efeitos de uma ação inteligente. Para aceitar este primeiro grau da via, é necessário considerar que, ao dizer que obram por um fim, mesmo carecendo de conhecimento, Santo Tomás indica que operam de forma tal que, no próprio operar, alcançam a sua excelência, ou que é ótimo (ut consenquantur id quod est optimum), e esse ótimo é a própria conservação de suas espécies, pois, como S. Tomás frisa em diferentes pontos de sua imensa obra, os princípios de cada natureza são imutáveis. Se se alteram os princípios, corrompe-se a natureza, muda a espécie. Pois bem: ao se desenvolverem como espécies que obram por fins determinados, esses agentes naturais contribuem para o equilíbrio, ordem e harmonia do universo. O homem contemporâneo é talvez mais dócil a esta premissa, na medida em que hoje ninguém duvida de que a preservação do que hoje se conhece pelo vocábulo “natureza” é fundamental para a sobrevivência da própria espécie humana. Por outro lado, este é talvez o argumento das cinco vias mais difícil de assimilar, pois a mentalidade contemporânea não é afeita à idéia de finalidade (telos) nem mesmo quando se trata de entes racionais, pois a psicologia hoje em voga — em suas mais diversas variantes — credita vários atos humanos a uma instância “inconsciente”, o que para os escolásticos (e particularmente para Santo Tomás) seria absurdo. Quanto mais falar em finalidade em entes não inteligentes! Pois bem, feita esta ressalva, avancemos: a atividade desses entes desprovidos de conhecimento, orientada a fins específicos (quase sempre os mesmos, excluindo-se os casos em que a natureza apresenta deficiências, como quando uma árvore não dá frutos por algum problema, ou quando um olho não vê, etc.), indica uma ordem que, sem uma inteligência ordenadora, seria impossível, pelas razões metafísicas que adiante veremos. Por uma analogia, Santo Tomás indica isto ao afirmar que um arqueiro (inteligente) ordena a flecha (não inteligente) a um fim, que é o alvo. Isto para ilustrar que só pode haver propriamente ordem onde há uma inteligência ordenadora.

2º Grau da via > Essa inteligência ordenadora ou é a intelecção do próprio ser subsistente, a qual provê perfeitamente os meios para a consecução dos seus atos inteligentes, ou está ordenada a entender algo superior a ela, e neste caso poderia falhar — por não conhecer todos os meios e todos os fins. Noutras palavras, quando uma inteligência (como a do homem) não se identifica formalmente com o seu ato de ser e de entender, então se diz que está em potência para ser e para entender. Assim, qualquer ordenação a um fim será tanto mais perfeita quanto melhor o agente inteligente conhecer o fim. Neste contexto, diga-se que a harmonia na ordem do ser, manifestada no universo, não poderia ser efeito da ação de uma inteligência limitada como a do homem, nem da ação de entes sem inteligência, que não produziriam seus efeitos comuns de forma harmônica. Só uma inteligência perfeita poderia ordenar perfeitamente tudo ao seu fim próprio, e produzir a ordem que percebemos em todas as coisas naturais, malgrado os defeitos eventuais, as disteleologias, que trataremos no terceiro texto desta série. Portanto, como nas demais vias, é necessário admitir o fim da série de inteligências finitas, e postular uma inteligência suprema cujo inteligir seja o seu próprio ser, para que se possa produzir essa providência universal que, desde o ponto de partida da via, observamos: a disposição natural de todas as coisas aos seus fins específicos, ao seu optimum.

3º Grau da via > Conclusão. Esse Ordenador Supremo, cuja inteligência é o próprio ato de entender, identifica-se claramente com aquele a quem todos chamamos de Deus (et hoc dicimus Deus). Ora, ser maximamente inteligente implica infinidade cognoscitiva (omnisciência divina); perfeita adequação entre meios e fins (providência divina); etc.

(continua)

terça-feira, 23 de março de 2010

Do mistério da ordem à ordem do mistério




Sidney Silveira
A filosofia não é como um platô onde se mesclam a esmo, de forma indiferenciada, elementos de todos os tipos, pois é próprio da atividade noética estabelecer uma hierarquia de princípios e fins e extrair, da tensão advinda das relações entre as partes do conjunto conhecido, um sentido de unidade. Divisar o uno no múltiplo, como ensinava Platão. Este trabalho verdadeiramente artesanal é um reflexo do modo humano de chegar à região da inteligibilidade dos entes: compondo e dividindo raciocínios, nas famosas palavras de Santo Tomás, até lograr uma visão sinóptica do Ser.

Neste contexto, convém dizer que não se alcança tal visão unitária do saber sem uma construção de grandíssimo porte, uma monumental arquitetura feita de conteúdos inteligíveis que, agrupados, nos dão uma visão panorâmica (embora incompleta) da ordem do Ser. Como dizia com razão o tomista canadense Louis Lachance, la sagesse c’est architectonique, e não um flash intuitivo pelo qual se capte, num fugaz relance, o sentido maior das coisas. Esse caráter arquitetônico de todo genuíno saber filosófico pode ser comparado a um quebra-cabeças de incontáveis níveis superpostos — que nunca poderá ser preenchido, de todo, pela inteligência humana. Após determinado ponto, a esta última não lhe resta senão a contemplação extática do mistério. Ou melhor: a assombrosa percepção de que, por traz da insondabilidade do mistério, existe uma ordem superior.

A inteligência humana tem, portanto, como ápice de sua atividade cognoscitiva a contemplação da inteligibilidade inexprimível de Deus — do Próprio Ser cujos vestígios se encontram em todos os entes. Observe-se que, aqui, a referência ainda não é à visão beatífica da essência divina obtida na luz da glória, nem ao conhecimento místico que só pode ser representado por símbolos ou paradoxos, pois do esplendor da visio Dei não podemos ter o menor vislumbre nesta vida, dado que se trata de uma realidade não passível de ser enquadrada ou sintetizada por nenhum símbolo, nenhuma linguagem, nenhuma categoria.[1]

A alusão é à capacidade humana de obter, ainda neste mundo, um olhar agudo que, partindo de primeiros princípios auto-evidentes, conduza à certeza de haver uma uniformidade universal metafísica, una e perfeita, açambarcadora de toda a diversidade fenomênica — que pressupõe uma inteligência ordenadora.

Infelizmente, a perda da pretensão de construir grandes sínteses que agrupem os problemas fundamentais da condição humana acabou por pulverizar a filosofia num sem-número de questões tópicas que, desligadas do horizonte ontológico que lhes serve de abóbada e esteio, acabam esterilizadas, empobrecidas ou, o mais das vezes, simplesmente inócuas. Metida num bazar de idéias bizarras, ou presa a postulados reducionistas válidos para uma só esfera epistêmica, a filosofia condena-se à cegueira em relação às verdades mais elevadas e importantes.

No entanto, a partir de uma sólida metafísica, a procura da apoditicidade nos pode conduzir, pelas pegadas da inteligibilidade dos entes, à certeza de que há um Deus que move tudo e não pode ser movido por nada; que é a primeira causa eficiente; que é o único Ente necessário; que é o grau sumo de Ser, pois n’Ele essência e Ser se identificam perfeitamente; que é, por fim, a Inteligência providente que governa todas as coisas. E daí deduzir todos os divinos atributos e relacioná-los a tudo o que tem ser...

Uma inteligência não contaminada por sofismas é capaz, portanto, de fazer naturalmente o seguinte caminho: do mistério da ordem à ordem do mistério.

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[1]- Nenhum símbolo é capaz de representar a realidade absolutamente transcendente de Deus. Nenhuma linguagem pode referir-se a Ele, a não ser analogicamente. Nenhuma categoria pode enquadrá-lo. E o prova Santo Tomás com premissas bastante simples: Um ente é cognoscível na medida em que esteja em ato. Sendo assim, Deus (Ato Puro sem mescla de nenhuma potência passiva) é cognoscível em grau sumo. Ocorre o seguinte: o que é cognoscível em grau sumo só pode ser conhecido, na prática, por uma suma inteligência que atualize todos os inteligíveis num só ato. Ora, sendo Deus a única inteligência suma, por conseguinte nenhuma outra inteligência poderá conhecê-lo em si mesmo. (Suma Teológica, I, q. 12, a. 1, resp.). Aqui é necessário pontuar, profilaticamente, algumas coisas, para evitar equívocos. A primeira é: mesmo sendo o sumo cognoscível uma realidade que ultrapassa a capacidade de qualquer inteligência que não a d’Ele própria, isto não implica que o homem — inteligência limitada e mesclada de potência e ato — não possa ver a essência divina. Mas o pode não por suas próprias potências intelectivas, e sim pela lumen gloriæ participada por Deus aos bem-aventurados. Daí dizer Santo Tomás: “É impossível que uma inteligência criada, por sua própria capacidade natural, veja a essência de Deus. (...) Se o modo de ser da realidade cognoscível sobrepassa a natureza do cognoscente, é necessário que o conhecimento daquela esteja acima das possibilidades [cognoscitivas] desta. (...) Deve-se portanto concluir que conhecer o Próprio Ser Subsistente [que é Deus] é algo conatural apenas à inteligência divina, estando acima de qualquer inteligência criada.” (Suma, I, q. 12, a.4, resp.). Outra coisa: mesmo sendo possível aos bem-aventurados ver a essência divina pela luz da glória, isto não implica que eles esgotarão a inteligibilidade de Deus, mas sim que, contemplando a Deus com os olhos da inteligência elevada sobrenaturalmente à glória, verão todas as coisas em Deus — a partir do que lhes aprouver conhecer d’Ele. O Aquinate ensina: “Para qualquer inteligência criada, é impossível compreender a Deus (...). Nenhuma inteligência criada pode chegar a ter um conhecimento perfeito da essência divina naquilo que Ela tem de cognoscível” (Suma, I, q. 12, a.7, resp.). Tendo em vista esta doutrina do Aquinate assimilada pelo Magistério da Igreja, desenhemos um quadro esquemático: 1- Nenhuma inteligência pode naturalmente conhecer a Deus; 2- Somente as inteligências dos que são, pela graça, elevados à glória poderão ver a essência divina e conhecer sobrenaturalmente algo de Deus; 3- Este conhecimento obtido pela visio Dei, no entanto, não esgota a inteligibilidade de Deus porque só Ele pode conhecer-Se perfeitamente. 
Portanto, mesmo na visão beatífica, o mistério continuará a alimentar as almas...

sexta-feira, 19 de março de 2010

A vontade humana e a “præmotio” divina: o verdadeiro sentido da liberdade



Sidney Silveira
Já ouvi de estudiosos da obra de Santo Tomás que a vontade humana é livre em absoluto, ou seja: ninguém, nem mesmo Deus, poderia penetrar o íntimo da vontade e mudá-la, moldá-la, fazê-la passar internamente da não-volição à volição de um bem. Com o objetivo de preservar a liberdade — que o liberalismo, deturpando, converteu no grande bezerro de ouro a ser idolatrado por todos —, em geral esses professores apóiam a sua opinião em passagens da obra do Aquinate nas quais se afirma o seguinte: nenhum anjo, nenhum demônio, nenhuma criatura pode mudar internamente a vontade do homem. E, mais ainda, no famoso trecho em que o grande teólogo frisa, categoricamente, o seguinte: Deus não pode coagir a vontade humana (De Veritate, XXII, 8, resp.). Aqui, não posso senão concluir que o intuito de transformar a liberdade em valor absoluto fez esses estudiosos não enxergarem o óbvio: que, na resposta ao supracitado artigo, assim como em outros lugares de sua obra, Santo Tomás afirma que Deus pode mudar a vontade humana necessariamente (Deus potest mudare voluntatem de necessitate).

Estamos aqui no olho do furacão de uma polêmica que durou séculos entre tomistas e adversários do tomismo: defendeu ou não Santo Tomás a premoção divina (a præmotio) da vontade humana? E mais: ela é ou não contrária ao conceito de liberdade? Vejamos o problema mais de perto, não sem antes deixar de consignar que o contrário da liberdade não é a necessidade, mas a coação. Por exemplo: queremos necessariamente o nosso próprio bem*, sem ser coagidos a isto. Ademais, o que sucede espontaneamente provém do apetite interno (caso do ato propriamente voluntário: a escolha), enquanto o que vai contra o apetite interno, isto sim, é coação (caso de alguém obrigado a fazer algo que não quer).

Partamos da seguinte constatação: quanto mais poderosa é uma causa, mais perfeito é o seu influxo sobre os efeitos. Ora, Deus é a onipotente prima causa omnium, o que inclui a vontade livre do homem, também criada por Ele. Logo, o influxo da ação divina alcança todos os âmbitos do ser, inclusive a vontade criada. Além disso, em si mesma a atividade criadora de Deus não se distingue de sua atividade mantenedora, razão pela qual, como mostramos em outro artigo, a natureza (ou seja: o conjunto de todos os entes naturais do universo) depende ontologicamente de uma causa sobrenatural para manter-se, para ser o que é, pois nenhum ente tem, em si mesmo, a causa da sua conservação na ordem do ser. Pois bem: a atuação divina estende-se não apenas ao ser das criaturas, mas também às suas operações, que na verdade seguem o ser (opetatio sequitur esse). Sendo, pois, a vontade uma das operações próprias do homem, conseqüentemente estará também ela sob o poder e o governo da ação divina.

Uma das objeções contrárias à præmotio, e que hoje renasce com força entre teólogos modernistas, diz o seguinte: Deus não tem nenhum poder direto sobre os atos livres do homem, pois age apenas indiretamente mediante forças outorgadas à vontade para que se fixe no bem. Tal idéia não considera o que acima foi dito e acaba por transformar a vontade humana em algo absolutamente inexpugnável — e, por conseguinte, também a liberdade, que tem na volição o seu estatuto ontológico. A præmotio, neste caso, seria uma violência que iria contra a liberdade. Neste ponto, falta fundamentalmente a percepção de que, movendo a vontade humana ao bem, Deus não apenas não a coage, mas, ao contrário, a faz alcançar a perfeição, pois, conforme se lê na Suma Teológica (I, 105, a. 4), querer não é outra coisa senão a inclinação natural da vontade ao seu objeto, que é o bem em sentido absoluto (simpliciter).

O ato divino de mover a vontade humana, quando ocorre, é infalível, pois Deus não pode não ter êxito em tudo o que faz. Ademais, fala insistentemente Santo Tomás, em diferentes obras, de uma dupla atuação sobre a vontade: a primeira provém de fora (ab exteriori), dos objetos. Mas esta não é propriamente a præmotio, pois aqui se trata de um influxo ao modo de causa final, ou seja: apresenta-se um bem externo qualquer que leva a vontade a mover-se ao seu ato específico. A outra atuação é ab interiori, ou seja, vem de dentro, da própria potência da faculdade volitiva. Deste segundo tipo o Aquinate fala nas passagens em que aborda a atuação divina (como, por ex., em De Potentia Dei, III, 7), quando mostra que Deus, enquanto causa eficiente do ser e das atividades das criaturas, pode ser causa eficiente da vontade humana. Aqui sim, estamos no horizonte da præmotio.

Em resumo, a vontade do homem pode ser internamente movida ou por suas próprias potências (ex parte ipsius potentiæ) ou, então, por Deus, como causa eficiente infalível (cfme. De Malo, III, 3). Neste contexto, vale lembrar, como faz G. Manser em A Essência do Tomismo, que Santo Tomás considera absolutamente errôneo crer que a eficiência da ação divina suprima a atividade própria das criaturas. Igualmente errôneo para o Aquinate é pressupor que alguma atividade criada possa efetivar-se sem nenhum auxílio divino, porque, radicalmente, o operar dos entes tem como sustentáculo a virtude do primeiro agente, que é Deus (secundum agens agit virtute primi agentis. cfme. Suma, I, q. 105, a. 5 - “Deus opera em tudo?”).

Quando se dá, a operação divina sobre a vontade humana é direta e imediata, e não suprime a liberdade — mas a aperfeiçoa e a faz alcançar o optimum. A moção da vontade acontece, repitamos, tanto pelas próprias potências da vontade quanto por Deus (motus voluntatis directe procedit a voluntate et a Deo, quia est voluntatis causa. “De Veritate”, XX, 9). Mas como poderiam duas causas distintas (Deus e a vontade) causar diretamente a volição? O próprio Angélico colocou-se este problema e a resposta que deu foi a seguinte: a dupla moção da vontade é possível dada a prioridade causal da atuação divina com relação a todas as causas naturais. Ou seja, Deus e a vontade humana se ordenam entre si conforme prius et posterius, e, portanto, pode Ele agir simultaneamente com a vontade de um homem no ato de querer, em razão da prioridade ontológica de Sua ação. Este é, exatamente, o sentido da præmotio.

O influxo divino sobre a vontade é direito inalienável de Deus, e certamente não se dá contra naturam, como os críticos da premoção imaginaram, mas sim pro naturam, na medida em que se trata de um auxílio especial para que a natureza (no caso, da vontade humana) alcance o seu objeto. Neste contexto, vale lembrar que, além de todos os argumentos filosóficos com os quais Santo Tomás esgrime em favor da verdade, ele também se vale da Sagrada Escritura para defender a sua tese, como é o caso da Suma Contra os Gentios (III, 88-89), quando ao abordar o tema ele nos remete ao texto revelado: “O coração do rei está nas mãos do Senhor (Prov., XXI, 1); “Deus opera em vós tanto o querer como a sua execução, segundo o Seu beneplácito” (Filip. II, 13).

Para finalizar este breve texto, registremos que, para Santo Tomás, Deus — causa primeira e universal do ser — move todas as criaturas de acordo com a natureza que lhes é própria, sem comprometer a sua atividade específica**. Daí que possa Ele também mover necessariamente a vontade de acordo com a própria natureza desta, mas sem coagi-la. A título de exemplo, digamos que a ação de Deus sobre a nossa vontade acontece de forma similar à de um carpinteiro e seu instrumento em relação à madeira: o instrumento cortante é o que talha a madeira, de fato, mas o faz de acordo com a intenção e a força impressa pelo carpinteiro ao ato. Neste sentido, a causa superior (a ação do carpinteiro) é o influxo maior sem o qual a madeira não seria cortada pelo instrumento. O mesmo ocorre, segundo Santo Tomás, com a virtude da ação divina aplicada à vontade humana.

Tendo esta doutrina em vista, vale ainda lembrar que a liberdade é especificada não pela escolha livre e voluntária (mera causa instrumental), mas pelo objeto formal de sua atuação — que é o bem. Portanto, o verdadeiro sentido da liberdade está, formalmente, na escolha efetiva do bem, e não na potência para escolher entre o bem e o mal, a que Santo Agostinho chamava libero arbitro.

Peçamos, pois, a Deus — Sumo Bem — o excelso dom de querê-Lo.

Em tempo: Tudo isso nos leva à seguinte e angustiosa questão: por que Deus permite o mal? Ou melhor: por que permite Ele que alguns homens não escolham o bem, já que teria poder para, necessariamente, movê-los a tanto? Este é outro assunto, decorrente do problema ora abordado. A ele nos referiremos noutra oportunidade.
* Está implícito nesta premissa que a vontade, ao querer, é movida pela forma de um bem, seja este real ou ilusório. Mesmo um suicida, ao matar-se, deseja pôr fim aos seus tormentos, e neste caso o motor da vontade é a morte apetecida como um bem circunstancial maior do que a vida — do que a dor de viver. O mesmo se pode dizer de um assaltante que rouba um banco, de um estuprador que abusa de alguém, etc. Mesmo agindo mal, esses hipotéticos personagens são movidos por algo que se lhes apresenta como um bem, no ato: o dinheiro para o assaltante, o gozo para o estuprador e a morte para o suicida.
** A exceção são os milagres, de que não trataremos no presente texto. Apenas apontamos que, no caso do milagre, sobrenaturalmente um ente é levado por Deus a atualizar potências que, em princípio, estão muito além das inscritas em sua forma.

terça-feira, 16 de março de 2010

A Criação (II)



Sidney Silveira
De acordo com o estabelecido anteriormente, baseado na doutrina de Santo Tomás sobre a Criação, vale destacar os seguintes tópicos:

> Criar é produzir a coisa no ser segundo toda a sua substância (producere rem in esse secundum totam suam substantiam);
> Nada há que preexista à criação (quia nihil est quod creationi praexistat);
> A criação não é outra coisa senão uma relação da criatura a Deus com novidade no ser (creatio nihil est aliud realiter quam relatio quaedam ad Deum cum novitate essendi);
> A Criação é uma ação que não comporta movimento simplesmente porque, sendo ex nihilo, nela nada existe fora da mente divina — nem mesmo a matéria prima — que possa mover-se da potência ao ato.

Vejamos mais de perto as premissas implicadas nestas máximas, começando pela última delas.

A Criação não comporta movimento

Em todo movimento há um trânsito da potência ao ato e, portanto, algo suposto (chamemo-lo, por ora, de causa material) que passa de um estado a outro pela intervenção de um agente (causa eficiente). Como nenhuma operação preexiste ao agente que opera, e nenhum ente pode ser causado pelo seu operar próprio (ex.: o estômago não é causado pela digestão; as pernas não são causadas pelo caminhar, etc.), é evidente que em todo movimento há uma passagem de uma matéria anterior (que possuía uma forma x) a uma matéria posteriormente atualizada por uma forma y.[1]
Ocorre que, na Criação — sendo ela do nada —, não há nenhuma forma ou matéria anterior extra mentis divina que possa movimentar-se da potência ao ato; logo, a Criação não é propriamente um movimento, em sentido metafísico, pois criar não é um devir que produza novas formas, mas sim a produção de toda a substância das coisas na ordem do ser, por um só ato da omnipotência divina. Podemos dizer que as criaturas são causa particular de novas formas e/ou operações, enquanto Deus é causa universal do ser sem o qual sequer haveria formas nem, por conseguinte, operações formais.

As causas criaturais (ou, em linguagem moderna, as causas naturais) produzem sempre este ou aquele efeito, pois na atividade natural há sempre uma outorga de algo particular (alicuius entis particularis ab aliquo particulari agente”, diz Santo Tomás na Suma Teológica, ao lembrar que “o homem engendra o homem”). Tais causas particulares não podem senão gerar efeitos particulares — produzir algo de algo, como um homem se faz de algo que não era homem conquanto já fosse alguma coisa (no caso, óvulo fecundado pelo espermatozóide), pois o nada nada pode causar. No fazer das causas naturais, o imperfeito e inacabado precede o perfeito e acabado; no fazer que caracteriza a Criação (cujo efeito é o ser), o absolutamente perfeito precede a tudo.

Neste contexto, é importante registrar que o nada implicado na expressão creatio ex nihilo não é uma espécie de ponto de partida da Criação (como se fora um algo que Deus laborasse), mas a absoluta e inefável ausência de ser. Não se trata, pois, de um oceano de caos a ser ordenado por uma inteligência suprema, de uma realidade com estatuto ontológico próprio, embora fugidio, como entendeu equivocamente Sartre ao contrapor o nada ao ser, sem advertir que a contrariedade entre ambos não é uma coincidentia oppositorum — nem, muito menos, uma contradição (ou relação) entre duas realidades, duas coisas. O nada não é oposto ao ser como o quente o é em relação ao frio, daí o sem-sentido de Sartre ao falar em O Ser e o Nada sobre a “origem do nada” (l’origine du néant), pois não se trata de oposição entre duas categorias, propriamente, pois a ausência de ser a que chamamos “nada” é, em si mesma, incategorizável, e a ela só podemos referir-nos por analogia. Sartre, na verdade, substancializa o nada sem se dar conta da absurdidade do que faz. Com a surreal imaginação que lhe era peculiar, não sem alguma poesia, ele sub-repticiamente entifica o nada dando-lhe uma função própria.

Pois muito bem: considerando o nada como absoluta ausência de ser, e, portanto, absoluta impotência operativa, dado que o operar provém do ser (operatio sequitur esse, ensinava Santo Tomás), torna-se também por esta via evidente que na Criação não pode haver movimento. Pois, como se disse acima, o movimento (trânsito da potência ao ato, que parte sempre de um suposto) é “de algo a algo”, ao contrário da passagem do nada ao ser.

Mas se a Criação não é movimento, o que podemos dizer dela? É o que veremos no próximo texto sobre o tema, assim como a demonstrabilidade racional da Criação segundo Tomás de Aquino, que nisto se contrapõe a Alberto Magno.
[1]- Não entro no tema do trânsito da potência ao ato nas substâncias separadas da matéria (anjos, para a teologia; inteligências puras, para a metafísica) porque transcende ao objeto do presente texto.

domingo, 14 de março de 2010

Nova aula do curso de "História da Filosofia"

Sócrates

Sidney Silveira
Informamos aos inscritos no curso "História da Filosofia — Do Impulso Grego ao Abismo Moderno" — que já está no ar a nona aula: Sócrates — A Abertura da Estrada Real da Filosofia (1ª Parte). Veja-se aqui um trecho dela, em que jocosamente Nougué nos remete à imagem da pobre Xantipa, esposa de Sócrates, que não sem alguma injustiça entrou para a história como o paradigma da insuportabilidade feminina. Bem sei eu que isto não é verdade... Ademais, parece que foi intriga dos filósofos cínicos (ex-discípulos dele), ou de cínicos filósofos...

quinta-feira, 11 de março de 2010

"TV" Contra Impugnantes: precondições da beleza

Roeland Savery - O paraíso terrestre


Sidney Silveira
Veja-se um pequeno trecho de aula em que se fala de algumas das precondições para uma coisa ser dita "bela". Este é um tema que já abordamos em algumas oportunidades (por ex.: aqui e aqui), com críticas à visão liberal, e a ele voltaremos em breve...

quarta-feira, 10 de março de 2010

Metafísica e mistério (II): ventríloquos do demônio

Sidney Silveira
Do mesmo modo como a História dos Dogmas da Igreja anda no compasso das heresias de cada época, a História da Filosofia está intimamente ligada às aporias, pois, contemplada em perspectiva, ela não é outra coisa senão a resolução — real ou presumível — das aporias no decorrer do tempo.

A diferença específica reside no fato de que, no primeiro destes dois casos, a definição solene do Magistério da Igreja tem caráter de verdade absoluta válida para todos os tempos e lugares, pois, quando a Igreja proclama uma doutrina relativa à fé e aos costumes como dogmática*, a alternativa é a seguinte: ou se calam as vozes obstinadas em contrário, ou serão expurgadas do corpo místico pela medicina do anátema. Roma locuta, causa finita est. Esta pelo menos é a doutrina tradicional, e isto acontece porque a Igreja define o Dogma com autoridade superior à humana, uma autoridade participada pelo próprio Cristo, em pessoa (cfme. Mt. XVIII, 19-20) — para horror do catolicismo liberal, engolfado no magma eclético das opiniões derrogadoras da fé —, ao passo que a filosofia, não tendo nenhuma autoridade suma que dirima as questões sobre as quais pairam dúvidas, percorre a sua trajetória nas marchas e contramarchas da humana busca da verdade.

Como se pode entrever do que acima se disse, a verdade filosófica é uma conquista humana; a verdade da fé é uma dádiva dos céus. Entre as duas não há distinção de gênero, mas apenas de objeto e de graus, pois, como demonstra de forma suficiente Santo Tomás na Suma Teológica (Iª, q. 16, artigos 6, 7 e 8), uma só é a Verdade eterna e imutável que serve de critério para todas as coisas ditas verdadeiras, sendo estas últimas mutáveis e não-eternas. Em resumo, sendo uma espécie de adequação entre o intelecto e a coisa, a verdade se dá formalmente no entendimento e, por isto, está em alguma medida condicionada por sua posse pela criatura racional**; mas em Deus, Ato Puro sem mescla de potência, ser e entender são a mesma coisa, por isso a verdade em Deus, que é o Próprio Ser Subsistente, não está sujeita a mudança e é eterna e imutável, além de ser o fundamento de todas as demais verdades.

Não nos estenderemos nisto porque não é o propósito deste breve texto. Mas, a título de exemplo, podemos dizer que as verdades temporais captáveis pelo entendimento da criatura racional estão para a Verdade eterna que é Deus assim como os entes estão para o Ser, numa relação de estrita dependência ontológica: se não houvesse a Verdade que se identifica em absoluto com o Ser, não haveria verdades que são a captação de algum aspecto do Ser pelas criaturas racionais; e se não houvesse o Ser (Ipsum Esse), não haveria entes, ou melhor: não haveria absolutamente nada — e, por conseguinte, nada cognoscível. Este é o arco metafísico codificado por Tomás de Aquino e que serve de base para a sua gnosiologia realista: o intelecto se faz inteligente mediante um inteligível em ato (cfme. Super Librum de Causis Expositio, Lectio III); ora, as coisas são inteligíveis na exata medida em que têm ser; logo, se não houvesse o Ser, não haveria nenhum inteligível que pudesse ser conhecido. Dito assim, parece simples...

No contexto destas distinções, vale lembrar que a filosofia não admite dogmas, dado que caminha sustentada pelos teoremas e doutrinas que propõe, os quais se aproximam da verdade sempre como uma assíntota. Dela pode servir-se a Sagrada Teologia — esta sim, sempre partindo da Revelação — para mostrar que a fé não apenas não se contrapõe à razão humana, como também jamais poderia falhar, pois parte de fonte divina inerrante. Quando os escolásticos do século XIII, o verdadeiro século das luzes, afirmavam que a filosofia é “serva da teologia” (ancilla theologiaæ), tinham em mente, com toda a clareza, que não há duas espécies de verdade incomunicáveis ou contraditórias entre si, uma natural e outra sobrenatural, mas uma só verdade — em parte alcançável pela razão natural, em parte apreendida pela razão graças à luz da fé (sub lumine fidei). Com Duns Scot e sua artificiosa separação entre metafísica e teologia, esta noção começa a perder-se.

Assim, quando teólogos liberais e liberais não-teólogos fazem as suas proposições totalmente à margem da Revelação, baseados em hermenêuticas as mais estapafúrdias e valendo-se de um arcabouço conceptual viciado na raiz (como seja, por exemplo, o da dialética hegeliana: tese-antítese-síntese), estão não apenas contrariando a fé, mas também a razão e o bom senso. Ademais, sem base metafísica e, por conseguinte, sem uma antropologia filosófica consistente, acabam perdendo o sentido do mistério do ser.

Estão na verdade fazendo o papel de ventríloquos do demônio, dando voz a tantos erros em matéria grave.

* Vale dizer que a guarda do precioso depósito da fé, pela Igreja, tem alcance filosófico, na medida em que o Magistério condena proposições ou doutrinas que, se aceitas em seus princípios, levariam à negação ou de algum dado da Sagrada Escritura ou a de alguma verdade que, embora não tenha sido expressamente revelada, está de tal forma integrada à Revelação que a sua derrogação alcançaria o âmago da fé. Assim, por exemplo, diferentes Papas do século XIX condenaram o ontologismo do padre e teólogo Antonio Rosmini, em razão dos grandes riscos que suscitavam para a defesa racional da fé.
** Não é ocioso lembrar que as criaturas irracionais — embora tendam a seus fins próprios na medida em que todo e qualquer ente está orientado ao optimum da espécie — são incapazes de verdade porque as operações de sua alma se dão no plano sensorial. Noutras palavras, não existe conteúdo inteligível para as criaturas irracionais. O animal irracional é, portanto, incapax veritatis porque as suas operações entitativas não transcendem à matéria.

terça-feira, 9 de março de 2010

Segunda Parte do “Trivium”: A Lógica Menor (ou Formal) Aristotélico-Tomista

"O Filósofo em Meditação"(1632), de Rembrandt

Carlos Nougué
Começará dentro de pouco tempo a Segunda Parte de nosso “Trivium”: “A Lógica Menor (ou Formal) aristotélico-tomista”.

BREVE APRESENTAÇÃO

1. Aristóteles queria conhecer os fatos, mas não apenas enquanto são; queria conhecê-los sobretudo enquanto devem ser. Para ele, o contingente resolve-se no necessário. Por esta razão, e porque para ele há proporção e acordo entre a realidade e o pensamento, o Estagirita teve de estudar as condições em que o intelecto humano concebe algo como necessário. Em outras palavras: teve de, primeiramente, estudar a ciência do ângulo formal. Fundava assim a Lógica.

2. Há quem o negue. Vejamo-lo. A Lógica é, antes de tudo, a ciência do raciocínio. Ora, como o raciocínio consiste essencialmente no silogismo, e como o Estagirita criou a teoria do silogismo e da demonstração ou silogismo perfeito, deve-se concluir que é ele, propriamente, o criador da Lógica.

3. Kant escreveu que desde Aristóteles a teoria do silogismo não tinha dado um passo, nem para a frente nem para trás. Antes de tudo, há nessa afirmação um quê de desprezo pela Escolástica e, especialmente, por Santo Tomás de Aquino (os quais, afinal, Kant só conhecia por textos de vulgarização!), o mesmo Santo Tomás com que a teoria do silogismo alcançou suma sistematização. Além desse desprezo, há uma imprecisão: a ciência da Lógica já estava ferida, desde o século XIV, de nominalismo e, desde o século XVII, de racionalismo, o que obviamente lhe afetava o núcleo, ou seja, a mesma teoria do silogismo. Por fim, o certo é que, em essência, ela nunca deveria ter saído do lugar em que estava: é insuperável. Se saiu, foi precisamente pelo descarrilamento lógico-filosófico do nominalismo, do racionalismo, do próprio kantismo, etc.

4. Em razão de sua forma, o raciocínio ou silogismo é correto ou incorreto; em razão de sua matéria, é verdadeiro ou falso. Logo, a Lógica deve ocupar-se tanto da forma como da matéria dos silogismos, razão por que se divide em Menor e Maior: a primeira estuda e ensina as regras que se devem seguir para que o raciocínio seja correto ou adequadamente construído; ao passo que a segunda, estudando as condições materiais da ciência, mostra as condições para que se chegue a conclusões perfeitamente certas e verdadeiras.

5. Neste curso, estudaremos apenas a Lógica Menor, deixando para outra oportunidade a Lógica Maior.


PROGRAMA DO CURSO

“A Lógica Menor (ou Formal) Aristotélico-Tomista”

I) Preâmbulo:
1)
Que é a Lógica
2) Suas divisões

II) Lógica Menor ou Formal:
1)
A simples apreensão
a) O conceito
● Noção
● Extensão e compreensão
● As espécies de conceitos
b) O termo
● Noção
● As espécies de termos
● Definição e divisão

2) A proposição
a) Juízo e proposição
b) As espécies de proposições
● Simples e compostas
● Afirmativas e negativas
De inesse e modais
§ O sujeito e o predicado quanto à quantidade
c) Oposição e conversão das proposições

3) O silogismo
a) Noções preliminares
b) O silogismo categórico
● Figuras e modos
● Silogismo expositivo
c) O silogismo condicional
d) Divisão:
● Demonstrativos, prováveis, equivocados e sofísticos
● Incompletos
● Oblíquos
● Compostos
e) A indução
● Divisão
● Raciocínio por semelhança

III) Duração e mensalidade:
1) Em Belo Horizonte: 12 aulas (uma por mês, sempre num sábado) de 9 horas cada. (Datas exatas, por decidir.) Mensalidade: R$ 120,00. Os interessados devem escrever para Frederico Castro (
bonorvm@yahoogrupos.com.br).
2) No Rio de Janeiro (segunda turma): como em Belo Horizonte, carga de 108 horas, que porém podem distribuir-se, como em Belo Horizonte, por 12 sábados ou, diferentemente, por 24 dias de semana. Mensalidade: R$ 80,00 na primeira modalidade; R$ 110,00 na segunda. Os interessados devem escrever para mim (
carlosnougue@hotmail.com).
Observação: Outra possibilidade é o curso ser dado integralmente via Internet, com a mesma carga horária. Neste caso, a mensalidade seria de 70,00. Os de qualquer lugar do Brasil que prefiram a modalidade via Internet, escrevam por favor para mim (
carlosnougue@hotmail.com).