Carlos Nougué
Passo a escrever esta série por duas razões: 1) porque em “Pensamento mágico e bom senso (IV)” prometi a uma amiga que a escreveria; 2) para fazer um contraponto com a excelente série sobre Descartes iniciada anteontem pelo Sidney neste mesmo blog: enquanto a dele terá por ponto de partida a relação entre a “dúvida metódica” e o Cogito cartesianos, a minha tratará esse mesmo Cogito do ponto de vista lógico, embora, por razões óbvias, não vá cingir-se a este ângulo. Mas, em verdade, há uma terceira razão: o mostrar um pouco o que é a lógica aristotélico-tomista (para quem quiser aprofundar-se, é obrigatória a leitura, pelo menos, dos “Segundos Analíticos” ou “Analíticos Posteriores” do Órganon aristotélico e a Expositio libri Posteriorum Analyticorum de Santo Tomás de Aquino), e mostrá-la até para eventuais opositores da nossa tese, porque sem essa base comum, estou convencido, qualquer disputa se torna muito difícil, se não impossível.
Pois bem, venho repetindo ao longo da série “Pensamento mágico e bom senso” que o “Penso, logo sou” cartesiano é um entimema cuja premissa maior é “Para ser, é preciso pensar”, ou seja: para Descartes, é o pensar a causa do ser, e não o inverso, o ser é a causa do pensar, como sempre disse ou pressupôs toda e qualquer filosofia fundada nos primeiros princípios e no bom senso. Poder-se-iam levantar duas objeções à tese: primeira, a premissa maior do entimema cartesiano é de fato “Para pensar, é preciso ser”, ou seria preciso pressupor uma espécie de loucura em Descartes; segunda, o “Penso, logo sou” não é um entimema, porque de fato nem sequer é um silogismo: é um juízo. Vou responder às duas, mas começarei pela última, porque responder a ela é já lançar para o debate fundamentos lógicos aristotélico-tomistas.
Ora, a razão humana tem por ato próprio o raciocinar, ou seja, o produzir silogismos ou raciocínios. Raciocinava Santo Agostinho ao dizer:
● Para equivocar-se é preciso ser (ou seja: todo aquele que se equivoca tem ser, ou, propriamente, é um ente);
● Ora, eu me equivoco (ou seja: eu sou um “equivocante”);
● Logo, sou (ou seja: eu tenho ser, ou, propriamente, sou um ente).
Dizer que produzir silogismos é o ato próprio da razão humana é dizer que, em termos humanos, sem silogismo não se pensa propriamente. Naturalmente, se qualquer silogismo é uno e indiviso enquanto ato de três passos, é também complexo e divisível enquanto composto precisamente desses três passos, assim como uma caminhada é, enquanto ininterrupta, um ato uno e indiviso, mas complexo e divisível enquanto composta de passos.
Que são esses passos do raciocínio? Ora, justamente juízos ou proposições. Trata-se de operações do intelecto humano anteriores aos silogismos e por eles supostas. Assim, o silogismo de Santo Agostinho mencionado acima é composto exatamente dos seguintes três passos ou juízos (e repito-o porque terá grande importância para demonstrar a absurdidade do raciocínio cartesiano):
1) Para equivocar-se é preciso ser (ou seja: todo aquele que se equivoca tem ser, ou, propriamente, é um ente).
2) Eu me equivoco (ou seja: eu sou um “equivocante”).
3) Eu sou (ou seja: eu tenho ser, ou, propriamente, sou um ente).
Pelo primeiro juízo ou proposição, atribui-se ao termo “todo aquele que se equivoca” este outro termo: “tem ser”; pelo segundo juízo ou proposição, atribui-se ao termo “eu” este outro termo: “me equivoco”; e, pelo terceiro juízo ou proposição, atribui-se ao termo “eu” este outro termo: “tenho ser”. Em cada juízo, portanto, afirma-se que um segundo termo convém a um primeiro termo. O primeiro termo será sempre o sujeito (do lat. subjectus, a, um, “posto sob” o que se vai predicar dele), e o segundo, justamente seu predicado ou atributo, podendo o predicado ou atributo, em termos gramaticais, reduzir-se sempre a verbo de ligação (“ser”, estar”, “tornar-se”, etc.) + predicativo (assim, “me equivoco” pode reduzir-se a “sou [verbo de ligação] um ‘equivocante’ [predicativo]”).
Mas são duas coisas o que mais importa reter aqui com relação ao juízo:
a) O ato de julgar, assim como o ato de caminhar, é uno e indiviso, mas, ao contrário deste, propriamente falando, é um ato indivisível. Com efeito, o juízo “Eu sou um ‘equivocante’” não é uma sucessão de três passos do pensamento: um passo “eu”, um passo “sou” e um passo “um equivocante”. É bem verdade que, assim como um passo de uma caminhada é um movimento entre um ponto de partida e um ponto de chegada, movimento que faz parte de um conjunto de movimentos cuja unidade é dada por um mesmo impulso, assim cada um dos termos de um ato de julgar (o termo sujeito [no exemplo acima, “Eu”] e o termo atributo ou predicado [“um ‘equivocante’”]) é um elemento seu, elemento que faz parte de um conjunto de dois elementos cuja unidade é dada pelo verbo de ligação (“sou”). Mas, então, como é possível dizer que algo é indivisível se esse algo é composto de elementos? Tal é possível porque cada juízo se apresenta ao nosso intelecto em conjunto, como um todo, ou seja, é formalmente indivisível, e, de fato, se dividíssemos esse todo, seus elementos deixariam de ser o que são nele: passariam a ser apenas dois conceitos e, portanto, já não seriam um sujeito e um predicado, perdendo desse modo a função lógica, assim como uma mão separada de um corpo perde a função orgânica e já não se pode dizer “mão” senão impropriamente. Todo e qualquer juízo, portanto, é um só ita est (é assim).
b) Já se pode vislumbrar, pelo que se disse até aqui, a resposta à objeção de que o “Penso, logo sou” de Descartes não seria um entimema, mas um juízo. Desenvolverei esta resposta no próximo artigo, deixando porém registrado desde já: veja-se que entre o silogismo de Santo Agostinho e o rol de seus três juízos há uma grande diferença – a ausência, neste rol, sobretudo da conjunção “logo”, mas também do ponto-e-vírgula entre os juízos.
Em tempo: Cada conceito ou noção, enquanto elemento de um juízo, corresponde em si a determinado ato do intelecto chamado percepção ou simples apreensão. Trata-se, com efeito, de uma operação anterior a qualquer juízo e por ele suposta, e é a primeira operação propriamente intelectual de conhecimento, seguindo-se imediatamente às operações de conhecimento próprias dos sentidos externos e internos. Este ponto, porém, ultrapassa a finalidade desta série.
Passo a escrever esta série por duas razões: 1) porque em “Pensamento mágico e bom senso (IV)” prometi a uma amiga que a escreveria; 2) para fazer um contraponto com a excelente série sobre Descartes iniciada anteontem pelo Sidney neste mesmo blog: enquanto a dele terá por ponto de partida a relação entre a “dúvida metódica” e o Cogito cartesianos, a minha tratará esse mesmo Cogito do ponto de vista lógico, embora, por razões óbvias, não vá cingir-se a este ângulo. Mas, em verdade, há uma terceira razão: o mostrar um pouco o que é a lógica aristotélico-tomista (para quem quiser aprofundar-se, é obrigatória a leitura, pelo menos, dos “Segundos Analíticos” ou “Analíticos Posteriores” do Órganon aristotélico e a Expositio libri Posteriorum Analyticorum de Santo Tomás de Aquino), e mostrá-la até para eventuais opositores da nossa tese, porque sem essa base comum, estou convencido, qualquer disputa se torna muito difícil, se não impossível.
Pois bem, venho repetindo ao longo da série “Pensamento mágico e bom senso” que o “Penso, logo sou” cartesiano é um entimema cuja premissa maior é “Para ser, é preciso pensar”, ou seja: para Descartes, é o pensar a causa do ser, e não o inverso, o ser é a causa do pensar, como sempre disse ou pressupôs toda e qualquer filosofia fundada nos primeiros princípios e no bom senso. Poder-se-iam levantar duas objeções à tese: primeira, a premissa maior do entimema cartesiano é de fato “Para pensar, é preciso ser”, ou seria preciso pressupor uma espécie de loucura em Descartes; segunda, o “Penso, logo sou” não é um entimema, porque de fato nem sequer é um silogismo: é um juízo. Vou responder às duas, mas começarei pela última, porque responder a ela é já lançar para o debate fundamentos lógicos aristotélico-tomistas.
Ora, a razão humana tem por ato próprio o raciocinar, ou seja, o produzir silogismos ou raciocínios. Raciocinava Santo Agostinho ao dizer:
● Para equivocar-se é preciso ser (ou seja: todo aquele que se equivoca tem ser, ou, propriamente, é um ente);
● Ora, eu me equivoco (ou seja: eu sou um “equivocante”);
● Logo, sou (ou seja: eu tenho ser, ou, propriamente, sou um ente).
Dizer que produzir silogismos é o ato próprio da razão humana é dizer que, em termos humanos, sem silogismo não se pensa propriamente. Naturalmente, se qualquer silogismo é uno e indiviso enquanto ato de três passos, é também complexo e divisível enquanto composto precisamente desses três passos, assim como uma caminhada é, enquanto ininterrupta, um ato uno e indiviso, mas complexo e divisível enquanto composta de passos.
Que são esses passos do raciocínio? Ora, justamente juízos ou proposições. Trata-se de operações do intelecto humano anteriores aos silogismos e por eles supostas. Assim, o silogismo de Santo Agostinho mencionado acima é composto exatamente dos seguintes três passos ou juízos (e repito-o porque terá grande importância para demonstrar a absurdidade do raciocínio cartesiano):
1) Para equivocar-se é preciso ser (ou seja: todo aquele que se equivoca tem ser, ou, propriamente, é um ente).
2) Eu me equivoco (ou seja: eu sou um “equivocante”).
3) Eu sou (ou seja: eu tenho ser, ou, propriamente, sou um ente).
Pelo primeiro juízo ou proposição, atribui-se ao termo “todo aquele que se equivoca” este outro termo: “tem ser”; pelo segundo juízo ou proposição, atribui-se ao termo “eu” este outro termo: “me equivoco”; e, pelo terceiro juízo ou proposição, atribui-se ao termo “eu” este outro termo: “tenho ser”. Em cada juízo, portanto, afirma-se que um segundo termo convém a um primeiro termo. O primeiro termo será sempre o sujeito (do lat. subjectus, a, um, “posto sob” o que se vai predicar dele), e o segundo, justamente seu predicado ou atributo, podendo o predicado ou atributo, em termos gramaticais, reduzir-se sempre a verbo de ligação (“ser”, estar”, “tornar-se”, etc.) + predicativo (assim, “me equivoco” pode reduzir-se a “sou [verbo de ligação] um ‘equivocante’ [predicativo]”).
Mas são duas coisas o que mais importa reter aqui com relação ao juízo:
a) O ato de julgar, assim como o ato de caminhar, é uno e indiviso, mas, ao contrário deste, propriamente falando, é um ato indivisível. Com efeito, o juízo “Eu sou um ‘equivocante’” não é uma sucessão de três passos do pensamento: um passo “eu”, um passo “sou” e um passo “um equivocante”. É bem verdade que, assim como um passo de uma caminhada é um movimento entre um ponto de partida e um ponto de chegada, movimento que faz parte de um conjunto de movimentos cuja unidade é dada por um mesmo impulso, assim cada um dos termos de um ato de julgar (o termo sujeito [no exemplo acima, “Eu”] e o termo atributo ou predicado [“um ‘equivocante’”]) é um elemento seu, elemento que faz parte de um conjunto de dois elementos cuja unidade é dada pelo verbo de ligação (“sou”). Mas, então, como é possível dizer que algo é indivisível se esse algo é composto de elementos? Tal é possível porque cada juízo se apresenta ao nosso intelecto em conjunto, como um todo, ou seja, é formalmente indivisível, e, de fato, se dividíssemos esse todo, seus elementos deixariam de ser o que são nele: passariam a ser apenas dois conceitos e, portanto, já não seriam um sujeito e um predicado, perdendo desse modo a função lógica, assim como uma mão separada de um corpo perde a função orgânica e já não se pode dizer “mão” senão impropriamente. Todo e qualquer juízo, portanto, é um só ita est (é assim).
b) Já se pode vislumbrar, pelo que se disse até aqui, a resposta à objeção de que o “Penso, logo sou” de Descartes não seria um entimema, mas um juízo. Desenvolverei esta resposta no próximo artigo, deixando porém registrado desde já: veja-se que entre o silogismo de Santo Agostinho e o rol de seus três juízos há uma grande diferença – a ausência, neste rol, sobretudo da conjunção “logo”, mas também do ponto-e-vírgula entre os juízos.
Em tempo: Cada conceito ou noção, enquanto elemento de um juízo, corresponde em si a determinado ato do intelecto chamado percepção ou simples apreensão. Trata-se, com efeito, de uma operação anterior a qualquer juízo e por ele suposta, e é a primeira operação propriamente intelectual de conhecimento, seguindo-se imediatamente às operações de conhecimento próprias dos sentidos externos e internos. Este ponto, porém, ultrapassa a finalidade desta série.