sexta-feira, 27 de abril de 2012

Enfim, o livro "Inteligência e Pecado em Santo Tomás de Aquino"




Sidney Silveira

Disse eu há algumas semanas que o Contra Impugnantes só seria eventualmente atualizado, nos próximos meses, para dar notícias de livros, cursos, etc. É o presente caso: com muita alegria informo que, finalmente, está prestes de vir à luz a obra Inteligência e Pecado em Santo Tomás de Aquino, de Celestino Pires — como primeiro livro do Instituto Angelicum. Faremos venda direta; darei em breve informações aos interessados em adquirir o livro.

Trata-se de uma obra-prima da melhor cepa teológica tomista, sem quaisquer concessões ao modernismo.

Já dei alguns tira-gostos dessa obra noutras postagens do blog. Abaixo, mais uma: a breve apresentação, da lavra do próprio Celestino.


Introdução



Este livro estuda o seguinte problema em Santo Tomás de Aquino.[1] Desde Sócrates a filosofia se ocupa com a questão de saber se a ação má é fruto da ignorância ou provém só da pura liberdade finita. Sócrates identificou ciência com virtude. Quem sabe o que é o bem, não faz o mal. A conclusão imediata é que, para a formação do homem, basta a instrução que cultiva a inteligência; a educação da vontade ou se abandona por desnecessária ou passa para segundo plano. O problema da relação entre ciência e virtude, entre o papel da inteligência e da vontade na ação má, recebeu-o Santo Tomás da filosofia antiga através de Aristóteles, que o elaborou na Ética a Nicomaco. Contudo, o progresso de Aristóteles não basta ainda. O Estagirita não chegou a elaborar a teoria da liberdade indispensável para a plena e clara solução do problema.

Trata-se, por conseguinte, de determinar a causalidade peculiar da inteligência na ação má. O problema, na sua forma mais simples, é o seguinte. O pecado é um ato da vontade; mas a vontade tende ao bem e só ao bem. Se tende ao mal é porque o homem não conhece o verdadeiro bem. O pecado na vontade proviria de um erro na inteligência.

Santo Tomás refere-se ao problema em muitas passagens da sua obra teológica. Quase todos os comentadores passam por cima sem lhe prestar atenção particular. E, contudo, cremos que está no centro de muitas questões interessantes de teologia, de filosofia e psicologia. Toda a complexidade da ação humana como liberdade, paixões, hábitos, virtudes morais e dons sobrenaturais, o dinamismo fundamental do homem para o último fim, se revela na análise desta ação misteriosa que é o pecado.

Em geral, os chamados tomistas admitem, sem crítica, que no pecado se pressupõe um erro e pensam assim seguir a doutrina do mestre. V. Cathrein, em 1930, ao escrever o seu artigo do “Gregorianum” dizia que tinha encontrado pouca bibliografia sobre o assunto “talvez porque se trata de uma questão difícil e obscura”. E depois de 1930, que trate diretamente e com algum desenvolvimento do tema encontramos apenas parte de um capítulo de uma tese sobre o pecado de Adão, e, menos diretamente, o vigoroso artigo de J. de Blic sobre o intelectualismo moral de Santo Tomás de Aquino a propósito do pecado dos Anjos.[2] Indiretamente, ou porque refutam as posições de de Blic ou porque, a propósito do problema da pecabilidade, se encontram várias alusões ou posições aceites, em geral, sem as discutir e confrontar com os textos.

As duas posições extremas personificam-se em de Blic e Jacques Maritain. O primeiro sustenta que Santo Tomás é um intelectualista exagerado, mais ainda que Aristóteles, e renova, nos princípios que admite, a teoria de Sócrates. De Blic apóia a sua interpretação numa massa imponente de textos e faz, em última análise, de Santo Tomás um determinista.[3] Por outro lado Maritain, em nome da concepção da liberdade que diz ser a autêntica de Santo Tomás, nega que para o pecado seja necessário admitir qualquer espécie de erro ou ignorância e que, quem não entende isto, conserva a palavra liberdade, mas não sabe nada do que ela é. Maritain não se demora a acumular e analisar textos contentando-se com indicações sumárias.[4] As posições são claras e decididas. De Blic, falando de determinismo moral, recusa-se a aceitar as posições de Santo Tomás em nome da liberdade; Maritain em nome da concepção de liberdade própria da filosofia e teologia do Angélico nega-se a aceitar a interpretação de de Blic.

Não pomos o problema nestes termos. O problema é mais geral e mais radical. Perguntamos pela causalidade da inteligência no pecado. O pecado é um ato humano; e os atos humanos são atos da inteligência e da vontade. Ou, doutro modo, mas que vem a dar no mesmo, o pecado é ato da vontade e a vontade pressupõe sempre a atividade da inteligência. É a natureza desta atividade e a causalidade que exerce no ato humano que é o pecado o que nos propomos a estudar.

Estudamos o problema em Santo Tomás. E isto quer dizer que nos sujeitamos à sua perspectiva, que é uma perspectiva teológica e não puramente filosófica. Todos os elementos da filosofia da ação entram nesta perspectiva. Sem perder em reflexão racional, ganha em amplidão e em verdade. O pecado não é tema puramente filosófico. É sobretudo problema teológico. Ao estudar as relações da inteligência e da vontade no pecado podemos tomar dois pontos de perspectiva: ou estudar a influência do pecado na inteligência ou da inteligência no pecado. A primeira perspectiva, mais teológica, trataria da influência que a ação má tem na inteligência, diria em que sentido o pecado diminui a capacidade do homem para atingir a verdade moral e religiosa. A segunda estuda o influxo da inteligência na ação má. Em Santo Tomás encontramos as duas perspectivas, mas aqui a atenção incide principalmente sobre o último aspecto. O primeiro aparece enquanto pode iluminar o segundo.

Estudar o problema em Santo Tomás não significa estudá-lo com interesse exclusivamente histórico. O que interessa é a coisa mesma, o problema considerado em si. Estudar o problema em Santo Tomás significa estudá-lo através do seu espírito, aceitá-lo como mestre. E o mestre autêntico não guia para si, mas para a verdade das coisas. Por isso a leitura que prescinda dos textos citados, que não verifique e não confronte, a leitura que não obrigue a pensar e a dialogar, não terá a recompensa do encontro com o pensamento do mestre.

Um tal leitor não se encontrará a pensar, simplesmente porque não pensa, em rigor nem sequer lê.

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1- Foi escrito como tese para o Doutoramento em Teologia Dogmática na faculdade de Teologia da Universidade Gregoriana. Esta finalidade explica algumas das suas características. Aparece agora com ligeiras modificações.

2- E. J. Fitzpatrick, The Sin of Adam in the Writings of St. Thomas Aquinas, Saint Mary of the Lake Seminary, Mundelein, Illionois, U.S.A., 1950, ch. IV: The Casuality of the Sin, The Role of the Intellect, pp. 78-108. J. de Blic, Saint Thomas et l’Intellectualisme moral, à propos de l´Impéccabilité des Anges, “Mélanges de Science Religieuse”, 1944, pp. 241-280.

3- J. de Blic, o. c., pp. 264, 265, 266, 274 e nota 90.

4- J. Maritain, Le Péché de l’Ange, Revue Thomiste (1956), 197-239; cfr. pp. 198-201.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

À sombra dos bigodes de Nietzsche: "A Vontade Derrotada"

[O Contra Impugnantes não tem sido atualizado nas duas últimas semanas, e a partir de agora continuará alguns meses sem novos textos. No momento estou totalmente concentrado na redação do livro A Vontade Derrotada — Nietzsche e o Avesso do Homem, do qual deixo aqui um pequenino tira-gosto: a Nota Introdutória e pequenos trechos do 1º capítulo da obra, intitulado Elementos para a diagnose. Ainda estou conferindo as citações em algumas notas (para cuja redação recorri à memória); noutras, o texto está adaptado para este "belisco" de internet. O trabalho caminhou rápido em duas semanas e já está com cerca de 40 páginas, das quais disponibilizo as 20 primeiras. Trata-se de um projeto antigo, que começou a materializar-se repentinamente, quando comecei a escrever um artigo para o blog e as idéias maturadas durante longo tempo começara a fluir).

Proximamente, em respeito aos nossos fiéis leitores, publicarei uma única coisa por aqui: uma breve exposição de motivos para a interrupção da publicação de novos textos no Contra Impugnantes; as exceções ficarão por conta de notícias sobre lançamento de livros, cursos, etc.

Agradeço, de coração, a todos os que acompanharam o trabalho do Contra Impugnantes ao longo dos últimos quatro anos.]





Sidney Silveira



A Vontade Derrotada


Nietzsche e o Avesso do Homem






Breve Nota Introdutória


“A injustiça de vosso ódio ao cristianismo torna mais grave o motivo sob o qual se esconde: a ignorância”.


Tertuliano, Apologeticum.



As astuciosas e virulentas invectivas de Nietzsche contra o cristianismo permeiam toda a sua obra: do rumoroso livro de estréia, O Nascimento da Tragédia, no qual em suas conhecidas palavras “se guarda um circunspecto e hostil silêncio sobre o cristianismo”, até os escritos imediatamente anteriores ao fim de sua vida consciente, em janeiro de 1889, crescem em progressão geométrica os juízos desfavoráveis, as acusações brutais, os ataques retóricos e as impugnações doutrinárias contra a moral cristã — e tudo o que a ela se refira: Deus, Jesus Cristo, São Paulo, o Evangelho, a cruz, os dogmas, os santos, os sacerdotes, a castidade, o pecado, a redenção, etc. Somente uma visão do corpus nietzschiano em sua inteireza é capaz de dar a conhecer a magnitude deste embate, de tão revolucionárias conseqüências.


Em síntese, o cristianismo é acusado de ser o maligno artífice da completa degeneração do mundo moderno. Ele é, segundo Nietzsche, o verdadeiro niilismo, pois retira da vida o seu real centro de gravidade — ela mesma —, para colocá-lo no “além”, ou seja, no nada. Nesta perspectiva, cristianismo e niilismo seriam conceitos quase unívocos, na medida em que induziriam o homem a abdicar de sua força vital, cuja natureza é expandir-se, afirmar-se no mundo, superar obstáculos, impor-se pela vontade. Alegando razões tais, Nietzsche faz as mais terríveis imprecações contra tudo o que leva o nome de “cristão”, num tom avassalador que nem mesmo Voltaire, em seu persistente ódio à Igreja, logrou alcançar.


Tendo como modelo um corrompido conceito de divindade — contraditório, hostil à natureza e à vida —, o cristianismo teria forjado um “mundo-manicômio-católico”,[1] no qual o pecado foi inventado para tornar a ciência, a civilização e o enobrecimento do homem impossíveis. Por isso, segundo Nietzsche é preciso esmagá-lo com todas as forças, combatê-lo em todas as frentes, opor-se à sua moral de ressentidos, tão contrária ao vigor das “raças nobres”, fatidicamente destinadas a prevalecer sobre as “inferiores”. Esta religião concebeu a crueldade louca de um Deus que se deixa crucificar pela salvação da humanidade, e com isto domesticou a “besta loura”, o bárbaro ariano, forte por natureza, que existe no fundo de todas as raças aristocráticas. A propósito, veremos como o tortuoso conceito nietzschiano de “raça” pôde ser facilmente instrumentalizado pela ideologia responsável por alguns dos mais hediondos crimes da história humana. E o quanto é forçoso pôr na conta de um simples mal-entendido a assimilação de suas doutrinas por ideologias anti-semitas e por defensores da eugenia como método de higiene social.


Neste contexto, é preciso ressaltar que não é arbitrária a identificação de Nietzsche com um anti-semitismo de cunho racista, visto que, ao lado do horror ao cristianismo, a judeofobia está presente na obra nietzschiana desde os primeiros escritos. Já em O Nascimento da Tragédia, a comparação entre o mito grego de Prometeu e a doutrina do pecado original é colocada na perspectiva do confronto entre o ariano e o semita. À força do ariano identificado com o mito de Prometeu — homem destemido, capaz de olhar o mundo de frente —, Nietzsche contrapõe a fraqueza da decaída raça semítica, que covardemente fecha os olhos para o caráter inquietante da realidade e é personificada na mulher pecadora.[2] O jovem Nietzsche dessa época se dizia feliz por ter finalmente encontrado um lugar onde era possível apreciar a comida “sem precisar tolerar os feios focinhos judaicos”, conforme diz numa carta à família datada de 22 de abril de 1866. A referência aos judeus no epistolário nietzschiano desse período é como “nojentos macacos”.[3] No Nietzsche maduro, os cristãos chegarão a ser considerados como a última conseqüência do judaísmo.[4]


Numa ambiência conceptual em que o cristianismo, como doença da alma, é contraposto à ébria vitalidade do helenismo dionisíaco, por meio de um pujante estilo literário Nietzsche destila o seu rancor contra tudo o que, para ele, representa a morte do espírito. Em suma, pesadas todas as coisas, o cristianismo é apontado como o grande catalisador e propulsor das enfermidades que, milenarmente, acometeram o Ocidente e tornaram o solo civilizacional insalubre, na medida em que, ao longo dos séculos, “a Igreja concedeu nomes sagrados apenas a lunáticos e impostores in majorem Dei honorem”.[5] De acordo com Nietzsche, a imoral idéia de ressurreição, na qual nem o próprio Messias acreditava, foi crida pelos idiotas entre os quais a sua doutrina foi semeada, gerando a partir de então a maior desgraça da humanidade.


Pois bem. Considerando que o ódio ao cristianismo é um dos maiores vetores do labor de Nietzsche como escritor e crítico da cultura, e em vista de tão severas certezas, proclamadas em forma de libelo incendiário, ocorre-nos indagar o seguinte: o que propriamente conhecia Nietzsche do cristianismo e da História da Igreja? O que sabia ele sobre a filosofia cristã? Qual o real valor filosófico de sua impugnação da metafísica, geralmente associada ao que chama de “opiniões religiosas”? A resposta a estas e outras questões implica expor algumas das teses centrais da filosofia nietzschiana e seus evidentes pressupostos — retirados diretamente dos textos de Nietzsche e não de seus intérpretes, muitas vezes ciosos em matizar as conseqüências inelutáveis de várias de suas teorias, pintá-las com róseas cores. A estes recorreremos apenas quando julgarmos necessário enfatizar algo que, de alguma forma, já esteja evidenciado nos próprios escritos do autor d’O Anticristo.


O exame crítico dos textos leva a um resultado acachapante: o conhecimento de Nietzsche a respeito da moral cristã, da Igreja e de seus dogmas é totalmente incompatível com as certezas das quais se diz o grande portador. Em síntese, contemplada em seu caótico conjunto, a feroz crítica nietzschiana ao cristianismo revela-se como uma monumental petitio principii, e não como o resultado de uma análise honesta acerca da realidade criticada, malgrado o tamanho do estrago feito por suas acusações. Neste contexto, mostraremos que o autor alemão desconhecia totalmente a moral cristã por ele colocada no banco dos réus, em nome de sua deturpada concepção de natureza humana — mais do que aporética, absurda.


A propósito, toda má teoria moral tem raiz numa equivocada antropologia, e o caso de Nietzsche é bastante significativo: a inconsistência de sua análise genealógica da moral parte do erro de conceber o homem como um mero feixe de impulsos e afetos cegos, e não como realidade complexa da qual constam potências que o capacitam a ordenar a afetividade e os impulsos à realização dos atos que propriamente o distinguem — realizados pela inteligência e pela vontade. Que o capacitam a ir além dos dados apreendidos pelos sentidos e do princípio da busca do prazer e fuga do desprazer que, de acordo com Nietzsche, seriam a suprema norma do obrar humano no período por ele chamado de pré-moral (o qual, em sua mitologia genealógica, é anterior à constituição do Estado). Nessa época, os homens matavam uns aos outros para a satisfação das necessidades de conservação da vida, sem que nisso houvesse qualquer imoralidade, pois a moral surge com a coação estatal. Veremos o caráter absolutamente quimérico e fantasioso desta doutrina.


Na verdade, o homem nietzschiano nada tem de humano ou “demasiado humano”. Ele é o anti-homem por excelência, produto de uma concepção primária na qual se mesclam evolucionismo, biologismo, perspectivismo e um insano voluntarismo. E o seu “super-homem”, ou “além-homem”, a mais dolente aspiração que, com fumos de teoria filosófica, o orgulho humano já concebeu: anseio de poderio ilimitado de uma vontade irrefreável que se afirma sobrepujando todas as demais e plasmando novos valores. Não à toa, Nietzsche identifica a felicidade humana com essa vontade que, vencendo quaisquer obstáculos, impõe aos homens débeis uma estrita obediência, dada a supremacia e o caráter imperioso de seus mandatos. Em tal horizonte, se o homem da raça “aristocrática” é chamado a superar-se a partir de suas próprias forças vitais, não é com outro propósito senão o de transformar-se neste sombrio arquétipo.


O intuito deste estudo não é analisar a evolução do pensamento de Nietzsche ao longo de sua trajetória, ou seja, investigar os seus motivos ou a ambiência histórica em que lograram manifestar-se — ao modo de uma biografia intelectual —, mas apresentar em bloco algumas das principais teorias nietzschianas, com base nos próprios textos do autor da Genealogia da Moral, e apontar a ausência de verdadeiro estatuto filosófico em suas impugnações; estas, contempladas em seu conjunto, manifestam mais do que qualquer outra coisa um projeto político de “salvação” da cultura ocidental por um arianismo que busca apoiar-se numa Hélade conformada, em boa parte, à sua poderosa imaginação. Mostrar também que essas teorias padecem de incurável corrosão espiritual, manifesta com particular ênfase no conceito de vontade de potência, seja como violenta autodeterminação individual ou como misteriosa força atuante no mundo.


Na presente obra, a autópsia da negação da metafísica por Nietzsche passa pela utilização dos próprios princípios metafísicos contra o autor alemãonuma espécie de contraveneno, de antídoto contra a sua volúpia irracionalista. Isto porque não basta apenas mostrar o quanto tal negação foi feita com barulho, malícia, retórica e arte literária, mas sem nenhuma consistência; a nosso ver, é preciso ir além e opor à cega gritaria de Nietzsche contra a inalienável natureza teorética da filosofia o caráter universal da metafísica como ciência. Neste sentido, o capítulo intitulado Tomás de Aquino contra Nietzsche, que muito bem poderia dar título a este livro, colocará frente a frente a metafísica do ser e aquele para quem o ser “é pura ficção”. Mais do que profilático, um confronto como este no atual momento da história da filosofia serve para mostrar a caducidade da crítica nietzschiana e contribuir, ainda que no modestíssimo âmbito desta publicação, para recolocar a metafísica no lugar que lhe é de direito.



Assim, à psicologia nietzschiana, eivada de biologismo, contraporemos a psicologia tomista — baseada no ser. E não se espante o leitor ao ver a identificação de algumas das teses de Nietzsche com doenças da alma classificadas por Santo Tomás. Não se espante ao vê-las ganhar contornos de uma realidade espiritual que o Doutor Comum da Igreja chamava de cæcitas mentis: dolorosa cegueira da mente nascida de uma habitual disposição psicológica contrária à verdade. Não se espante, pois, se enxergar sob os vastos bigodes de Nietzsche a azeda baba de Caim. E se concluir que a sua visão da moral como “a Circe sedutora dos filósofos” é palha, e nada mais. Mas sobretudo não se escandalize; lembre-se de que é abundante no próprio Nietzsche o uso de categorias da psicologia e da psiquiatria para atacar os moinhos de vento do mundo cristão por ele imaginado, repleto de “epiléticos das idéias”.[6]


Sem dúvida, Nietzsche se transformou no ídolo crepuscular de uma época que, em muitos aspectos, parece dar a algumas de suas idéias um caráter profético, razão pela qual Giovanni Reale, num livrinho chamado Sagezza Antica – terapia per i mali dell’uomo d’oggi, afirma que o autor de Além do Bem e do Mal é o profeta do niilismo, citando um fragmento de 1887 no qual Nietzsche dizia ser o niilismo identificável pelo seguinte fato: os valores supremos se desvalorizaram. Seja como for, não caiamos no erro de confundir a maior ou menor projeção histórica de uma concepção de mundo, de uma idéia — ou ainda de uma ideologia, ao modo como a concebia Antoine Destutt — com a verdade ou falsidade dos seus postulados. Estes podem e devem ser permanentemente expostos à crítica filosófica, em vista da qual muitas vezes os ídolos mostram os seus pés de barro.


Seria anacrônico imputar a Nietzsche o fato de ter criado uma obra que tem o deicídio como vértice, a partir de uma acusação à religião cristã que diz mais do seu cobiçoso projeto transformação estética e política da realidade do que da essência do cristianismo. Preferimos atribuir a ele a responsabilidade de conceber um homem que não existe. De supor que essa sua ficção abismal — mescla ilógica de forças cegas e indômitas — reflita algo do que é o homem.


Portanto, acusamos a Nietzsche do crime de lesa-humanidade.




Capítulo I


Elementos para a diagnose: primeira aproximação às teses nietzschianas



A obra de um homem sempre expressa algo de sua personalidade. No caso da filosofia, é natural que assim o seja, pois a verdade é uma espécie singular de interseção entre duas intimidades: a da pessoa e a da coisa. Ela acontece quando a pessoa, por meio de uma de suas potências mais recônditas (a inteligência, que é imaterial no ato de entender), penetra, descortina, assimila a forma da coisa — que está para além das exterioridades, dos contornos visíveis a olho nu. Nestas ocasiões, o íntimo da pessoa o íntimo da coisa, ou, noutras palavras, o que é imaterial na pessoa apreende o que é imaterial na coisa: o eidos enquanto princípio de organização formal, de operação e de inteligibilidade.[7] Ora, sendo o problema da verdade absolutamente central em filosofia, sempre será possível entrever na obra de um filósofo algo de sua personalidade, ou seja, apreciar o seu estilo pessoal e único de assimilar a verdade ou dela aproximar-se.


Mas tenhamos cuidado. Isto não significa que toda obra filosófica seja, como certa vez escrevera Nietzsche, um tipo de memória involuntária, confissão espontânea do filósofo que, in actu exercito de seu labor intelectual, presta contas com a vida. Concedamos porém que a sua obra seja assim: autobiografia espiritual do princípio ao fim, na medida em que poucos filósofos falaram tanto de si mesmos como Nietzsche — poucos fizeram tantas e tão apaixonadas referências ao próprio “eu”. Ocorre que esse personalismo exacerbado, essa excessiva auto-referência, que beira a egolatria, indica um sestro e não uma virtude. Indica uma apaixonada projeção do eu sobre as coisas, e não a assimilação das coisas pelo eu. Indica, pois, certa incapacidade de alcançar a região das formas inteligíveis, onde mora a verdade.



O caso de Nietzsche é patente. À sua filosofia poderia perfeitamente aplicar-se, mais do que à de qualquer outro, o que dissera Éttienne Gilson[8] da de Kant: ser contemplada à luz do patológico. A propósito, tomamos aqui o vocábulo “patológico” numa acepção radical, a saber, como razão das dores da alma — que em Nietzsche possui material abundante a ser analisado: das primeiras obras àquelas que antecederam à sua entrada em estado catatônico irreversível, durante aproximadamente dez anos. Noutras palavras, em seus livros há incontáveis indicadores, diretos ou indiretos, do estado de enfermidade psíquica de que padecia, no qual a vontade, de instância inexpugnável da liberdade, desvirtua-se e se transforma em potência opressora da personalidade, na medida em que deixa de ser uma inclinação conseguinte ao ato do conhecimento para absolutizar-se, anular-se como apetite intelectivo tendencial ao bem. Em suma, ao apetecer narcísica e exageradamente o próprio bem — em detrimento de todos os demais bens —, a pessoa se destrói pela vontade.[9]


Não seria demasiado dizer que o brilho da obra de Nietzsche é o da morbidez, virulenta luz de um talento materializado em meio a crises nervosas agudas — das quais desde o final da adolescência ele dera sinais intermitentes, como cegueira passageira, terríveis dores de cabeça, náuseas, vômitos e vários outros sintomas que costumavam prostrá-lo, física e psiquicamente. Crises que, no parecer de alguns especialistas, foram lentamente preparando a fase final de sua loucura. É bastante conhecido dos estudiosos da filosofia e da vida de Nietzsche o diagnóstico do renomado neurologista P. J. Möebius (que escreveu um livro sobre as patologias de Nietzsche[10] e tem em sua obra descobertas importantes, como a da síndrome que leva o seu nome): Nietzsche já era um alienado mental na época em que escreveu A Gaia Ciência.


Alguns autores, médicos e não médicos, procuraram explicar a loucura de Nietzsche pela sífilis de que, presumivelmente, ele teria sido acometido na juventude,[11] e a isto nos referiremos adiante. O nosso propósito por ora é apontar para algumas evidências de que a sua obra é reflexo de um habitual estado de desordem espiritual que afeta a relação da inteligência com as coisas — além de deixar consignado o caráter arbitrário e a inconsistência de algumas das suas principais teorias. Apontar para o fato de que o vitalismo irracionalista (como alguns com precisão caracterizaram a sua obra) é sintoma da doença da alma à qual Santo Tomás de Aquino chamava de infirmitas:[12] debilidade proveniente de paixões desregradas que levam a distúrbios na imaginação e acabam por induzir o homem a agir contrariamente à sua estrutura essencial, ou seja, agir contra a própria natureza que o constitui. E, no final das contas, agir contra a razão.


É evidente que um psicólogo de orientação materialista (verdadeira contradictio in terminis) preferirá associar as enfermidades psíquicas de Nietzsche, que culminaram em sua demência, aos problemas físicos que claramente o acometiam desde a juventude, e nem nós negamos que existam transtornos de ordem corporal com sintomatologia psíquica. Mas, como demonstra o psicólogo tomista Martín Echavarría no extraordinário livro La Práxis de la Psicología y sus niveles epistemológicos según Santo Tomás, neste caso se trata de doença da alma per accidens. E a enfermidade da alma a que nos referimos, como causa primária de outras patologias, é distinta tanto das doenças corporais, como das desordens da vontade e da inteligência típicas dos transtornos da personalidade. Ela é, segundo Echavarría, uma enfermidade psico-sensitiva, pois afeta a alma a partir dos sentidos internos, sobretudo a imaginação.[13]


Em Ecce Homo, obra escrita em data bastante próxima à crise final que o silenciou definitivamente, e que é a um só tempo relato biográfico, comentário de livros anteriores e autodefesa exaltada, os epítetos aplicados por Nietzsche a si mesmo já denunciam um estado narcísico fora de qualquer padrão de normalidade: “Eu sou o Anticristo”. “Sou o primeiro imoralista”. “Sou o homem mais terrível que jamais houve”. “Sou o destruidor por excelência”. “Sou dinamite”. E não se suponha que se trate de estilo retórico, pois estes e muitos outros ditos são uma constante em sua obra, inclusive no epistolário. Em cartas a amigos — sobretudo nas que se aproximam do momento paroxístico de sua doença — Nietzsche escrevia coisas megalômanas como “eu sou Deus”, “sou Dioniso”, “sou o Crucificado”, “sou uma deusa”, “sou César”, etc. E hoje, à luz de sua biografia, temos elementos suficientes para supor que, de uma forma ou de outra, Nietzsche acreditava firmemente identificar-se com esses personagens. Lembremos que, em data não muito distante do fim de sua vida consciente, o amigo Franz Overbeck encontrara-o em casa dizendo-se “sucessor de Deus”, “o Crucificado”, etc., chorando convulsivamente e dançando de forma grotesca, cheio de terror nos olhos.


O fato é que, na maior parte de sua obra — e não apenas no Ecce Homo —, há sinais de uma delirante enfermidade mental, impressionantes saltos lógicos nas teses, associações fantasiosas e anacrônicas entre realidades distantes entre si no tempo (e díspares em seus princípios e fins), razão pela qual houve estudiosos que apontaram para o seguinte fato: teorias como as do super-homem, do eterno retorno, da transvaloração de todos os valores, da rebelião dos escravos, da vontade de potência (ou de poder), etc., seriam a expressão de diferentes desordens psicopatológicas.[14] O resultado não de raciocínios ou pensamentos concatenados entre si, mas de estados subjetivos de reação e autodefesa contra o inóspito mundo produzido por sua imaginação.


Como afirma Teofilo Urdañoz, o que Nietzsche ofereceu ao mundo foi sua própria tragédia de enfermo em dolorosa exaltação da ânsia de viver.[15]




Breve quadro da assistematicidade, das contradições e aporias nietzschianas


Diga-se, antes de tudo, que é inegável a inspiração poética dos escritos de Nietzsche. É inegável o caráter atrativo do seu estilo demolidor, de apaixonada veemência, assim como a sua sensibilidade artística, que ele próprio elogia ao dizer que levou à perfeição o idioma alemão em prosa[16]. Ocorre que, não obstante esta qualidade de escritor, a sua obra carece dos traços elementares que distinguem um filósofo: unidade, coerência, profundidade, sistematicidade, verdade, etc. Ademais, os problemas inerentes a dois dos principais pontos cardeais da filosofia (metafísica e gnosiologia) passam ao largo de seus escritos, pois, quando são citados, é para expressar a ojeriza de Nietzsche e sobretudo os seus preconceitos contra matérias que patentemente desconhecia.


Em sua negação da metafísica, Nietzsche contrapõe o devir ao ser de forma primária, por desconhecer ou simplesmente recusar com obstinação as resoluções dadas desde Aristóteles, e também ao longo da história da filosofia, às aporias heraclíteas, o que na verdade é congruente com o quase completo esmagamento da dimensão teorética em sua filosofia vitalista. Assim, Heráclito — uma de suas referências intocáveis — foi aquele que “descobriu que o ser é uma ficção vazia”, conforme afirma numa passagem de O Crepúsculo dos Ídolos. Tal negação, como a propósito é regra em Nietzsche, é feita sem que ele arrole quaisquer elementos probatórios a favor do seu “argumento”; basta-lhe pontificar que assim o é, e ponto final.



Vale dizer que o mesmo ocorre com a sua irracional negação de todas as categorias ontológicas que a metafísica ensina, sem se dar conta de que, sem elas, os seus próprios escritos estão invalidados in nuce. Mas não importa: Nietzsche encasquetou que o mundo metafísico, chamado por ele de “transmundo” (Hinterwelt), é um dos sintomas da decadência da mentalidade moderna, razão pela qual ele se coloca orgulhosamente, em A Gaia Ciência, “entre os homens ímpios e antimetafísicos”, em nome do superior conhecimento da ciência. [17] Isto devido ao fato de que a metafísica é pervertida e “ilógica” (unlogisch), curiosa crítica em se tratando de um autor que escrevera reiteradas vezes que a lógica dedutiva de nada serve.


Como se pode inferir de tais malogradas idéias, algumas páginas da metafísica de Duns Scot, Avicena ou Santo Tomás de Aquino talvez ensandecessem de vez o nosso filósofo, cujos conhecimentos sobre a natureza da metafísica não eram, em verdade, iguais a zero; eram simplesmente negativos. Hoje, temos elementos suficientes para concluir que, ao acusar a metafísica de “prodigiosa inconsciência” e “cegueira”, Nietzsche o fazia com total desconhecimento de causa, por canhestramente confundi-la com opiniões religiosas e por supor que fosse ela o resultado da “crença indevida na noção de “sujeito”.[18] Veremos isto a seu tempo.


Analisados os textos em que se refere à metafísica, impressiona a ignorância de Nietzsche em questões sobre as quais opina com certeza absoluta. Sua atitude é nestes casos análoga à do neófito que, não conhecendo o que é uma artéria, chega a um seminário de cardiologia para pontificar acerca das novas técnicas de cirurgia aórtica. E isto não acontece apenas em relação à metafísica — contra a qual escreveu páginas de desastrosa beleza —, mas também em gnosiologia, em cosmologia, em antropologia, em psicologia, etc. Diga-se que os escritos nietzschianos referentes a tais âmbitos do conhecimento pegam apenas de empréstimo o nome deles, por uma espécie de analogia imprópria de caráter metafórico. São teorias cujo fulgor não reside em haver nelas verdade, mas sim um tipo enfermiço de certeza: a das idéias-fixas. Trata-se, no entanto, de idéias-fixas entre as quais se vislumbra um ponto comum, motor de boa parte de seus escritos: o profundo ódio ao cristianismo e aos aspectos da filosofia grega que os cristãos assimilaram.



Vitalismo irracionalista, uma marca distintiva


Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche já deixara claro o princípio que regeria toda a sua obra: o de uma brutal afirmação da vida. Assim, ao dizer que o “socratismo lógico” e o “sacrilégio de Eurípides”[19] assassinaram o espírito dionisíaco da tragédia grega, Nietzsche identifica esses dois autores não apenas como o ponto incisivo de decadência da cultura helênica, mas sobretudo como os grandes incentivadores do pensamento metafísico — que seria tão importante para o cristianismo. Pensamento metafísico doentio e contrário à afirmação da vida, de acordo com o seu parecer. Neste contexto, dirá Nietzsche com acerto, e indisfarçável desgosto, que a influência de Sócrates se estendeu sobre o mundo como “uma sombra que cresce sob os raios do sol poente”.[20] E referindo-se retrospectivamente a esta sua obra inaugural, confessará a certa altura:


“Em todo o livro há um silêncio circunspecto e hostil contra o cristianismo. Este não é apolíneo nem dionisíaco; nega todos os valores estéticos, os únicos valores que O Nascimento da Tragédia reconhece”.[21]


A vida que o alemão glorifica — da qual já dera indicações em seu livro de estréia — tem como emblema o deus grego Dioniso (ou Diónisos - Διώνυσος), contemplado como um símbolo divinizado da afirmação das forças instintivas e primitivas do homem, constituídas por uma vitalidade irracional, cega, que não se detém perante obstáculos. Nietzsche manteve tal ideal ao longo de toda a sua trajetória de escritor e crítico da cultura. Ele é a bandeira das suas reivindicações, coerente com a concepção primordial do seu projeto para os homens, conforme se lê numa das Considerações Intempestivas: “Amar a vida cega e loucamente”. Ora, é justamente esse amor desprovido de Logos, já que as coisas não são amáveis pelo grau de ser que possuem (lembremos que Nietzsche negara o ser em favor do devir), esse amor como brutalidade instintiva, que o profeta Zaratustra anuncia como zeloso ratificador da vida[22] e adorador da natureza.


Cumpre neste ponto salientar o seguinte: não peçam ao autor alemão uma coerente definição de natureza, ao modo aristotélico. Não lhe peçam para definir o caráter da matéria, e muito menos para esboçar uma teoria sobre o papel da matéria nos entes compostos de matéria e forma. Ou ainda para definir satisfatoriamente a vida e sobretudo a vida humana, demarcando-lhe características próprias e inalienáveis a partir das potências que distinguem a sua essência, até porque para ele essas categorias de nada valem. Não, a sua glorificação da vida (e da natureza) é totalmente irracional, ou seja, não há por que buscar nela um sentido maior, uma ratio. A vida é, pois, valor absoluto ao qual todos os demais se subordinam. Instinto de uma existência que se afirma no mundo sem qualquer telos, sem qualquer finalidade preestabelecida. Como revela uma conhecida passagem de Humano, Demasiado Humano, “para o homem comum, (...) o valor da vida consiste apenas no fato de ele considerar-se mais importante que o mundo”.[23] Com muito acerto diz o prof. Valmor Luiz Oselame, da PUC-RS, que, “para Nietzsche, vida é um processo individualizado sem nenhuma finalidade senão a de incrementar-se a si mesma”.[24]



Ora, nada mais conseqüente com a glorificação da vida em tais termos do que a pressuposição de que toda vida humana é a afirmação de uma vontade que se contrapõe às demais. E, movido pelo ódio à “moral dos escravos”, ou seja, ao cristianismo com o seu ascetismo contrário à vida (no parecer de Nietzsche), a partir daí realizar um salto para a idéia de que o homem do porvir é o super-homem ou além-homem, o homem superior que realizará uma espécie de libertação do mundo por meio da transvaloração de todos os valores da moral do rebanho. Libertação refletida na completa superação da moral e na aniquilação de Deus. É neste exato contexto que Zaratustra considera que “o homem é algo que deve ser superado”.[25]


A sutil identificação do super-homem (que transvalora todos os valores e impõe a sua vontade) com a “besta loura, bárbara”, germânica — homem forte e ardiloso, qual ave de rapina, que Nietzsche elogia com ditirâmbicas expressões — é congruente com esse vitalismo irracional, pano de fundo de toda a sua obra. O ariano quase divinizado expressa a força radical da vontade de potência (ou de poder), a besta loura que apenas responde a impulsos cegos, é violenta, devastadora, cruel e não teme a morte. Ou melhor, não sente medo de nenhum perigo, pois é pura espontaneidade e ébria afirmação de sua própria força no mundo — modelo de saúde espiritual, segundo Nietzsche. Ora, é provavelmente tendo no horizonte mental esse bárbaro personagem que Nietzsche põe na boca Zaratustra outra frase bastante famosa: “Onde encontrei vida ali também encontrei uma vontade, mas não a simples vontade de viver, e sim uma vontade de domínio [ou de potência]”.[26]


Em suma, a vida humana é, essencialmente, vontade de poder. E, em tal contexto, não existe vontade livre, mas apenas vontades fortes ou débeis, sendo as débeis destinadas a ser dominadas pelas fortes. Também aqui, como não poderia deixar de ser, não se peça a Nietzsche para definir o que ontologicamente seja a vontade, pois essa coisa de definições é típica da “cultura socrática”, quer dizer, do homem teórico e antidionisíaco que ele tanto odeia. Passa bem longe de suas apaixonadas idéias que a vontade seja uma das potências superiores da alma humana, sobre a qual falaremos amiúde.


Entre os aspectos fundamentais das idéias de Nietzsche está, portanto, o mais radical voluntarismo antiintelectualista, cego, terrífico, avassalador, que não logra sair do abismo em que jaz. Ele serve como pano de fundo de boa parte das teorias nietzschianas. Mas podemos aproximar-nos de algumas outras características facilmente identificáveis em seus escritos.


Vamos a elas.




Esteticismo — a apaixonada recusa da ordem


O esteticismo nietzschiano ganha o seu peculiar contorno no contexto da sui generis concepção da cultura como resultante de um jogo de forças vitais, apolíneas e dionisíacas. Neste ponto, convém salientar que Nietzsche é, por excelência, um esteta, pois considera os valores estéticos como o solo fértil da civilização — tendo em vista que, na própria natureza, “os instintos estéticos são onipotentes”.[27] Esta visão do jovem Nietzsche em O Nascimento da Tragédia pode ser considerada como uma profissão de fé artística, o princípio que, com diferentes formulações, foi mantido ao longo de sua obra: o da supremacia dos valores estéticos sobre os inúteis valores morais; o do vigor da jubilosa fruição da beleza em detrimento da tibieza de sua teorização racional.



O projeto de valorização da vida pelo viés da estética é, em Nietzsche, caudatário de sua forçosa contraposição entre a racionalidade, como frio instrumento técnico, e a vida como percepção vertiginosa e intuitiva do devir, sendo este a única realidade verdadeiramente real na perspectiva nietzschiana — não captável por raciocínios ou sutilezas dialéticas. Assim, tendo cindido o homem em duas instâncias aparentemente incomunicáveis entre si, é conseqüente que o autor alemão afirme que a razão é frágil e insuficiente para apreender os fenômenos artísticos.[28] Entre o conhecimento científico e a fruição da beleza haveria, portanto, um hiato impossível de ultrapassar; a beleza seria percebida apenas pela intensificação da vida em condições extremas, experiência tipicamente dionisíaca, ao modo de um profundo espasmo estético que a razão não lograria alcançar, frêmito artístico passível de ocorrer no ditirambo dionisíaco “em que o homem é incitado à máxima manifestação de todas as suas capacidades simbólicas”.[29]


Apaixonado pela idéia de que a modernidade foi engendrada pelo corruptor “socratismo lógico”, Nietzsche realiza uma arbitrária separação entre processo cognoscitivo e percepção da beleza, sem imaginar que todas as atividades propriamente humanas são, por assim dizer, iluminadas pela refluência do intelecto sobre as coisas percebidas pelos sentidos, por aquilo que Santo Tomás de Aquino chamava de reditio completa: o movimento de ida à realidade e retorno a si realizado pela inteligência. Em síntese, dada a constituição noético-pneumática das potências superiores do homem, a sua percepção da beleza sempre se dá pelo fulgurante ato em que intelecto e inteligido se tornam uma só coisa, ou seja, identificam-se formalmente. Sendo assim, não é possível ao homem perceber algo como belo sem esta peculiar intervenção da inteligência que se projeta sobre as coisas, num caudaloso refluir sobre elas em que os olhos do espírito se mantêm totalmente abertos.



Não há, portanto, estética humana (aisthesis) sem algum grau de entendimento (logos), e por isso a compreensão de toda a vida humana como fenômeno estético[30] é de um reducionismo somente concebível no contexto de uma teoria irracionalista na qual beleza e racionalidade são colocadas como realidades estanques ou contrapostas. Ora, mesmo sendo a arte, como observava Nietzsche, capaz de proporcionar as mais ébrias experiências dionisíacas, isto não implica dizer que o valor de beleza deixe de ser atribuído pela inteligência, pois o homem é constituído de forma tal que mesmo o mais cego mergulho na imanência e na matéria se dá por meio de algo que nele transcende ao imanente e ao material: esta secreta potência para os inteligíveis que Aristóteles chamava de “intelecto possível”, sem o qual o homem sequer pode dizer-se propriamente “humano”. Em suma, o belo e o sublime não podem entrelaçar-se para além da racionalidade, como pressupõe a concepção nietzschiana, porque são reconhecidos como tais... justamente pela inteligência![31]


Em resumo, uma sociedade em que os valores estéticos são os únicos (ou os predominantes) é uma sociedade da qual a beleza foi, paradoxalmente, expulsa, pois transformar a beleza em valor “absoluto” implica deformá-la, tornar-se incapaz de enxergar que o belo (pulchrum) só pode lograr algum estatuto como um dos transcendentais do ser. Mas lembremos que o ser para Nietzsche é uma “ficção”, e nada mais conseqüente com isto de que cair em alguma forma de esteticismo, embora estudiosos contemporâneos de sua obra tentem negar tal característica. A recusa da inteligibilidade do belo é uma recusa da ordem natural das coisas conforme captada pela inteligência.



A intenção de revigorar a arte pelo espírito da tragédia grega é, em Nietzsche, orientada pela idéia de que a arte tem valor em si mesma — de forma autônoma, sem qualquer orientação teleológica —, o que está totalmente de acordo com a sua premissa de que os valores estéticos são os verdadeiros e fundamentais. A propósito, num texto do Nietzsche maduro, chama atenção a sua observação de que “o combate à finalidade na arte é sempre o combate contra a tendência moralizante na arte, contra a sua subordinação à moral”.[32] Aqui, mesmo levando em conta a benevolente defesa do seu amigo Erwin Rohde contra as críticas do filólogo alemão Ultrich von Williamowitz-Möllendorf, para quem Nietzsche menosprezara Aristóteles por conceber uma estética sem considerar o problema da catarse,[33] apontamos para um fator importante: a percepção de Nietzsche, beirando a inconsciência, de que racionalidade e moralidade possuem íntima ligação, inextricável liame; a partir disto, é possível considerar que a sua negação da razão na apreciação da arte não seria outra coisa senão a afirmação do agir humano como essencialmente imoral e irresponsável, em apoio à idéia de que juízos morais não valor algum. Em tal contexto, o que Nietzsche chama de “inocência do devir” seria identificável tão-somente pelo olhar artístico, amoral por definição.


(...)


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1-Vale lembrar que o protestantismo também não é poupado por Nietzsche. Em suas famosas palavras, o pastor protestante é o avô da filosofia alemã, e o protestantismo, o pecado original dessa filosofia. Ao longo de sua obra, reiteradas vezes Nietzsche se volta não apenas contra a Igreja, mas também contra o protestantismo em cujo ambiente familiar fora criado — sendo pastores o seu pai e os seus avós e bisavós maternos. Isto não o impediu de sentir desde cedo que o ateísmo lhe chegava como por instinto (cfme. Ecce Homo, Por que sou tão discreto).



2- O Nascimento da Tragédia, 9.



3- cfme. Domenico Losurdo. Nietzsche, O rebelde aristocrata. Biografia intelectual e balanço crítico. 3. Socratismo e judaísmo “atual”.



4- Em verdade, Nietzsche não foi “instrumentalizado” apenas por anti-semitas vinculados ao que posteriormente seria o nazismo: já no começo de sua trajetória ele era louvado por grupos anti-semitas que lhe enviavam jornais e panfletos e o saudavam como grande filósofo. No último Nietzsche, a identificação dos judeus como o povo mais funesto de toda a história universal não deixa margem a dúvidas quanto a este ódio perene, duradouro, obstinado. Quanto à eugenia, é expressa a preocupação de Nietzsche com o fato de que, de acordo com os seus devaneios, a raça dos conquistadores e dos senhores arianos estaria sucumbindo fisiologicamente (Genealogia da Moral, I, 5), razão pela qual dever-se-ia estar atento à “comprometedora fecundidade” das classes inferiores, dos fracos e mal-sucedidos (cfme. Vontade de Potência, 19, 3).


5- O Anticristo, n. 51.


6- O Anticristo, 54. A diferença é que, num caso, trata-se da projeção de idéias preconcebidas, moldadas por um ódio pertinaz; noutro, da sólida construção de uma psicologia que não se fecha às evidências e se baseia na profunda análise da estrutura da psique humana, suas potências, tendências e características distintivas.


7- Mesmo nas coisas materiais, a forma como princípio de operação e de inteligibilidade é absolutamente imaterial. Ela é, como dizia Santo Tomás, ato primeiro organizador da matéria e está unida a ela sem se confundir com a sua materialidade; ela é a essência daquela existência — que, a propósito, são distintas na coisa.


8- Em Réalisme thomiste et critique de la connaissance.


9- Uma das conquistas da filosofia de Santo Tomás foi provar com razões suficientes — neste ponto, aperfeiçoando a doutrina aristotélica — que a vontade é, por natureza, apetite intelectivo do bem. Ou seja: tudo o que ela deseja (mesmo no caso das coisas mais torpes), deseja-o sub ratione boni. Noutras palavras, esse apetite tende naturalmente a algo apresentado pela potência cognoscitiva como bom em si, mesmo que não o seja na realidade. Assim, tendo a vontade como objeto formal o bem em sentido universal, pode-se dizer que a vontade de potência de Nietzsche — quando referida aos indivíduos —seria o seu estado mais patologicamente antinatural, ou, noutras palavras, representaria uma desnaturação completa, esterilidade caracterizada pelo constante e violento movimento de auto-referência, de eleição do próprio bem apetecido em contraposição aos demais. Uma vontade em tal estado destrói a personalidade por ferir o âmago da pessoa — retirar-lhe esse verter-se naturalmente às coisas que estão fora e além dela.



10- Paul Julius Möbius. Über das pathologische bei Nietzsche, Leipzig, 1902.



11- Richard Blunck, autor de Nietzsche, Enfance et jeunesse, é um dos que defendem a tese de que o estado apoplético final de Nietzsche deve ser explicado pela sífilis da qual o escritor alemão teria sido contaminado em 1866.



12- “Quando uma afecção não é moderada de acordo com a regra da razão, mas sim por algum excesso ou defeito, se chama enfermidade (infirmitas) da alma. E isto acontece sobretudo nas afecções do apetite sensitivo que se chamam paixões”. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II, q.77, art.3. Ocorre que, afetando a imaginação, esse tipo de enfermidade acaba por afetar a inteligência — e por conseguinte a vontade —, pois o homem conhece as coisas a partir dos dados que são recebidos pelos sentidos externos e laborados pelos sentidos internos, ocasião em que se transformam em imagens (phantasmata) a ser iluminadas pelo intelecto agente, como ensinava Santo Tomás. A propósito, sobre a teoria da conversão aos fantasmas encontramos na internet um bom resumo, escrito por Jonas Madureira.



14- Por exemplo: W-Lange-Eichbaum (Nietzsche, Krankheit und Wirkung) e Reyburn-Hinderks (Friederich Nietzshe).



15- Teofilo Urdañoz, Historia de la Filosofía, Tomo V – Siglo XIX: Socialismo, materialismo y positivismo. Kierkegaard y Nietzsche. Madrid: 1975, Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), p. 302.



16- “Creio que com este Zaratustra levei à perfeição o idioma alemão. Depois de Lutero e Goethe, era preciso dar um terceiro passo”. Carta enviada em 1884 a Erwin Rohde, conhecido filólogo e helenista alemão. A propósito, Rohde deixou de ser amigo de Nietzsche em 1887, por divergências quanto à obra do poeta Hippolyte Taine. No ano anterior, após encontrar-se com o filósofo em Leipzig, Rohde afirmara que a loucura de Nietzsche chegara a tal estado, que ele não mais parecia cidadão deste mundo.



17- A Gaia Ciência, n. 344.



18 - Cfme. Vontade de Potência, n. 484.



19- De acordo com Nietzsche, Eurípedes cometera o “sacrilégio” de em sua obra substituir o mito pela razão. Sócrates, por sua vez, fora outro autor que se tornara o grande adversário e destruidor da arte trágica. Ele e seu discípulo Platão teriam contribuído para excluir a poesia da Pólis.



20- Cfme. O Nascimento da Tragédia, § 15.



21- Ecce Homo. O Nascimento da Tragédia, n. 1.



22- Assim Falou Zaratustra, I, 3.



23- Humano, Demasiado Humano, I, Das primeiras e últimas coisas.




25 - Assim Falou Zaratustra, Prólogo.



26- Assim Falou Zaratustra, II, Da Superação de Si.



27- Cfme. O Nascimento da Tragédia, § 4.



28- Neste contexto, o “sacrilégio” de Eurípedes passa por sua crença no princípio socrático de que as coisas, para ser belas, devem ser inteligíveis (Cfme. O Nascimento da Tragédia, § 12).



29- Cfme. O Nascimento da Tragédia, § 2.



30- Cfme. A Gaia Ciência, II, n.107.



31-Ademais, o fato de Nietzsche ter gritado contra a existência do ser, da alma humana, do conceito de substância, da idéia de verdadeiro e falso, etc., não traz nenhum suporte para uma teoria estética que parte da aporética cisão entre as instâncias sensitiva e intelectiva na percepção das coisas e, por conseguinte, de sua beleza.



32- O Crepúsculo dos Ídolos, “L’art pour l’lart”.



33- Querelle autour de ‘La naissance de la tragédie’. Nietzsche, Ritschl, Rohde, Willamowitz, Wagner, Paris: Vrin, 1995, p. 123.