terça-feira, 30 de setembro de 2008

O desprezo pela clareza: o limbo (I)

Sidney Silveira
Vimos, noutras ocasiões, que o trabalho do teólogo, embora importante, é subsidiário, e por si não chega a ter caráter magisterial — além do mais, precisa ser aprovado pelas autoridades eclesiásticas competentes.


A razão de se encontrarem hoje no supermercado de idéias teológicas, aqui e ali, proposições que parecem desconsiderar o Magistério infalível da Igreja provém, diretamente, da “liberdade” com que alguns teólogos pensam poder expressar as suas teses. Já demos o exemplo do poligenismo, a opinião (condenada pelo Magistério!) de que Adão e Eva não existiram, mas sim um conjunto inumerável de “protoparentes” (sofisticada expressão, não?).


Na verdade, o múnus da teologia requer absoluta clareza expositiva, e esta não pode ter lugar onde se desprezam os princípios de não-contradição, identidade, causalidade, razão suficiente, entre outros. A velha idéia de De Lubac de que a lógica humana se opõe ao mistério divino é uma aberração, mas que no entanto teve conseqüências para várias teologias posteriores, nem sempre preocupadas com a precisão na formulação dos conceitos. Uma delas foi a tese, muito encontradiça entre certas correntes teológicas influentes há alguns anos, de que a realidade “mistérica” — ou seja, o mistério que Deus é —, sendo formalmente inexpressável pela inteligência humana, não se adapta a nenhuma formulação (razão pela qual existiria uma radical inadequação das fórmulas dogmáticas à realidade misteriosa de Deus Pai, assim como à realidade de Cristo, de Maria, etc.). Segundo essa tese, o mistério de Cristo e da Igreja ultrapassa todas as possibilidades de expressão humana em cada época histórica, e, por isso, não pode ter formulações definitivas, excludentes de outras.

Essa idéia expressa uma meia verdade, a saber: com certeza, o dogma não nos pode dar a conhecer integralmente a realidade divina a que se refere. No entanto, ele expressa aspectos universalmente verdadeiros e objetivos dessa mesma realidade. E mais: a tese da inadequação “se esquece” de que tudo o que um ente recebe, recebe ao modo de recipiente, como não cansa de frisar Santo Tomás em diferentes obras, razão pela qual a Revelação e os dogmas se adaptam ao modo humano de conhecer — o que não significa, por isso, que sejam “inadequados”, mas ao contrário: são totalmente adequados à nossa humana inteligência.

Entre esses novos teólogos estão os que mais desprezam a precisão da terminologia escolástica — conheci pessoalmente alguns que costumam contrapor a patrística à escolástica, em detrimento desta última, artificiosamente. E é entre eles que se encontram alguns dos que mandaram o limbo para o “inferno”.

Antes de entrar no mérito da questão, registre-se que a idéia de que o limbo não existe é tão-somente uma tese, e não integra o Magistério. O que este diz, ao contrário, é o seguinte (dados extraídos de um exemplar do jornal Sim, Sim, Não, Não, e depois conferidos por mim no Denzinger):

Papa Inocêncio I (417): “É loucura afirmar que as crianças possam entrar no céu sem o batismo”.

Papa Zózimo (418) aprova o Concílio de Catargo afirmando: “Ninguém pode ser considerado isento do pecado original antes de dele ser liberado pelo batismo”.

Concílio de Florença (1445): “As crianças destituídas do uso da razão só podem ser ajudadas pelo sacramento do batismo”.

Concílio de Trento (1563): “Não é possível passar do estado do pecado ao estado de graça sem o batismo ou ao menos seu desejo”.

Pio XII (Alocução de 19 de outubro de 1951): “Não há outro meio senão o batismo da água para comunicar a vida sobrenatural à criança que ainda não tem o uso da razão”.

A Comissão Teológica Internacional – CTI, ao dizer (em texto publicado em 19 de janeiro de 2007) que o limbo é apenas uma hipótese teológica possível, elaborada na Idade Média, e que jamais entrou nas definições dogmáticas do Magistério, além de não ser doutrina fundamentada na Escritura, comete quatro erros, porque: 1º) Os Padres gregos já afirmavam em uníssono a exclusão das crianças não batizadas da visão beatífica de Deus, e portanto não é verdade que seja doutrina ensinada somente a partir da Idade Média; 2º) o fundamento escriturístico está em Jo. III, 5; 3º) quanto às formulações dogmáticas, bastam as que mostramos acima; 4º) o limbo não pode ser rebaixado a mera hipótese teológica possível por tudo o que se disse anteriormente. Na verdade, a tese de que o limbo não existe é que é uma hipótese teológica, e na verdade muito pouco (ou nada) possível, por se contrapor ao Magistério.

A idéia de que o limbo é uma concepção restritiva da salvação, também presente no documento da CTI, não considera o que grandes Doutores da Igreja sempre disseram (como o próprio Santo Tomás): o limbo é um lugar de felicidade natural. Ademais, não podemos deixar de lembrar que a visão beatífica (da qual quem está no limbo é excluído, de acordo com a doutrina católica) é uma felicidade sobrenatural que ultrapassa os direitos da natureza.

Veja-se no que dá deixar de lado a clareza e a objetividade: chega-se até a pôr em dúvida a misericórdia de Deus (quem já não ouviu alguém simpático à tese dizer que Deus não poderia fazer uma “maldade” dessas com criancinhas sem culpa, a saber, mandá-las para o limbo?). Ora, não devemos julgar a Deus, e muito menos com critérios da justiça humana, tão limitada.


Enfim, como o Magistério da Igreja não pode contradizer-se, cremos que o limbo jamais poderá ser anatematizado pela autoridade eclesiástica, ainda que mil teólogos digam o contrário...

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Rui a soberba economia liberal

Carlos Nougué
Como sigo assoberbado de trabalho, ainda não será hoje que poderei retomar a série “Liberalismo e comunismo – rebentos da mesma raiz”, o que farei porém ainda esta semana.

Mas não posso deixar de apontar o óbvio: com a recente crise econômica norte-americana, ou melhor, com a recente explosão da falsidade financeira que é tal economia, rui um dos pilares da soberba liberal.

Dá pois a realidade a devida resposta a quantos afirmam que a economia não deve ter travas, nem sequer morais. Que a economia, se deixada a seu livre curso, qual ente mágico, não só supera suas próprias dificuldades, como levará o homem a um paraíso terrestre de bem-estar progressivo (não se assemelha tal argumento, essencialmente, ao de Marx e Lênin de que o Estado ruiria por si próprio após a ditadura do proletariado?). Que o problema da Idade Média e suas corporações de ofício foi o limitar conscientemente o avanço técnico para evitar ruínas de outrem, ao passo que o correto é entregar a economia de toda uma sociedade ao livre jogo da oferta e da demanda ― e do lucro (esquecendo-se porém de dizer, digo eu, que tal livre jogo tem um antigo nome: ganância, o vício do ganho ilimitado, irmã da luxúria e da gula).

Mas não se assanhem os esquerdistas de todos os matizes: sua economia estatizada ou estatizante tampouco é a resposta justa às necessidades econômicas do homem. Que o digam as tragédias provocadas pela ignomínia comunista; que o diga o soçobramento do homem para o qual contribuem todos os governos esquerdizantes ou populistas de hoje.

Tudo isso se verá aprofundadamente no item 14 da referida série: “A democracia liberal como sociedade anônima: o homem econômico”, onde também se mostrará a evolução natural do homem democrático para o homem comunista.

Laicismo, o nada bendito fruto da teoria liberal (II)

Sidney Silveira
Como vimos, o laicismo liberal-maçônico prega a absoluta independência entre os planos espiritual e material — na prática, a separação entre Estado e Religião. Mas, antes de conseguir emprestar alguma credibilidade a essa sua tese laicista, foi preciso atacar, de modo sistemático, ao longo de 200 anos, a noção de Estado, fazer deste uma espécie de “inimigo” dos indivíduos, uma superestrutura estanque no seio da pólis (só de ouvir essa palavra o liberal tem comichões!), e enfim propagar a idéia de que o Estado é necessariamente uma instância coercitiva para as liberdades individuais. Em suma: consolidar a tese de que o Estado é alheio às pessoas, e de que o “bem comum” é uma ilusão. Essa tese ganhou o mundo ocidental, e não me deterei em enumerar aqui os seus variados ideólogos, nem os principais matizes da teoria, para não perder o foco. Depois, indicarei uma interessante bibliografia.

Transformado o Estado, artificiosamente, em algo “mau”, tornou-se mais fácil defender que se separasse da Igreja, “para o bem desta” (tese diametralmente oposta à de Leão XIII, em Libertas Praestantissimum, nºs. 24 a 28, e em Immortale Dei, nº 28). Transformado o Estado, artificiosamente, em algo alheio às pessoas, tornou-se mais fácil difundir a idéia de que ele deve ser também alheio ou indiferente ao bem das almas (tese considerada nefasta pelo próprio Leão XIII, cuja autoridade magisterial nenhum católico pode pôr à prova, sem defraudar o mesmo Magistério); transformado o Estado em mera instância coercitiva para as “liberdades individuais”, tornou-se mais fácil desvincular conceitualmente, no seio das sociedades, a lei eterna da lei positiva humana, passando-se ao largo da lei natural — da qual a Igreja é defensora milenar; transformado o Estado em uma superestrutura estanque no seio da pólis, tornou-se possível defender doutrinas econômicas que visam ao permanente aumento da reprodutibilidade dos bens materiais sem subordinar estes aos bens espirituais, mas ao contrário: de subalternos, eles se tornaram “fundamento” do cristianismo, graças ao livre mercado (dá-me náuseas ver um liberal dizer que um dos “pressupostos” do cristianismo é a liberdade de mercado, sobretudo se é liberal “católico”).

A Igreja, por sua vez, sempre defendeu o seguinte:

a) No plano individual (contra os mais variados gnosticismos), a harmonia entre corpo e alma, estando os bens do corpo, contudo, subordinados aos bens da alma;
b) No plano social (contra o liberalismo), a harmonia entre bens materiais e espirituais, e entre o todo e as partes nas sociedades — estando os bens materiais subordinados aos espirituais, e o bem das partes ordenado ao bem do todo.

Para dar corpo à sua tese, os liberais contemporâneos dizem que a Igreja, na época em que o Estado era confessional, meteu os pés pelas mãos — e dão até exemplos históricos aparentemente verazes. Acontece que confundem Estado confessional com cesaripapismo, quando não com agostinismo político, entre outros. Reparem muito bem: não digo que eles se confundem, mas que confundem, o que é mui distinto. A estes vale responder que não se trata, em absoluto, de uma coisa nem de outra, mas de algo que a Igreja sempre defendeu: a natural primazia do espiritual sobre o material, do eterno sobre o temporal, do absoluto sobre todos os relativos. E vale dizer que o Estado confessional implica tão-somente que o Estado, preservando a sua área de autonomia, protege a verdadeira religião (a propósito, terá Santo Agostinho escrito o seu De Vera Religione à toa?), tolerando, se for o caso, todas as demais.

Uma sociedade que não subordina o material ao espiritual, a lei positiva à lei eterna, o econômico ao político e este ao celeste — ou seja: que não busca politicamente fins transpolíticos, como diz Barrera em seu livro magistral — é, para dizer o mínimo, uma sociedade enfermiça, e de uma enfermidade não menos que terminal.

sábado, 27 de setembro de 2008

Chesterton (I) – pequena resenha virtual

Sidney Silveira
Posto, a seguir, um pequeno vídeo do Nougué (outro do blog), em que ele fala do livro A Inocência do Padre Brown, do genial G. K. Chesterton — editado pela Sétimo Selo. [A propósito da editora, agradeço penhoradamente a todos os que atenderam ao pedido feito aqui há alguns dias, de apoiar o nosso pequeno projeto comprando um livro, que fosse, na livraria virtual da editora. Este apoio é deveras importante para que prossigamos o caminho. E o faremos, com a ajuda de vocês, se Deus quiser].

Quanto à fala do Nougué, propriamente, talvez algumas almas cândidas se ericem ao ouvi-lo chamar James Joyce e Marcel Proust de “empulhadores” (direi eu mesmo, noutra ocasião, algumas palavras sobre estes dois ícones literários do século XX). Pois muito bem: de toda forma, como um começo de purgação ou cura para o estado tão delicado dessas almas, indico como remédio uma breve leitura da crítica literária que foi praticada entre nós por Mário Faustino e Álvaro Lins, nos tempos em que o bom-mocismo ainda não invadira as consciências dos literatos e de seus leitores.
Em tempo 1: Do link acima sobre Mário Faustino — uma entrevista com a professora Maria Eugênia Boaventura —, faço algumas ressalvas, entre as quais a sua opinião de que os suplementos literários dos grandes jornais melhoraram, da época de Faustino para cá. Mas vale mesmo assim, pois dimensiona quem foi esse poeta, esse crítico literário verdadeiramente demolidor. De Álvaro Lins recomendo a coletânea intitulada Os mortos de sobrecasaca, para termos uma idéia do que era, entre nós, a crítica literária publicada em jornais nas décadas de 40 e 50. É autor que merece uma reedição.
Em tempo 2: Prometi falar de Proust noutra ocasião, e certamente o farei. Mas não resisto a pôr aqui mais ou menos o que dizia, com ironia crítica, Gustavo Corção a respeito do autor de À la recherche du temps perdu: Proust buscou, buscou... e nada encontrou! E eu, que no passado muito me emaranhei por aqueles caminhos de Swann — numa época por assim dizer "estética" da minha vida, em que dava importância não menos que desmedida para literatura, literatos e literatices —, parafraseio o falecido escritor brasileiro: caminhei, caminhei... e quase me perdi.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

A estrutura da ação humana em sua completude (X)

Sidney Silveira
(continuação de: 1- A psicologia da ação humana)

A VIRTUDE

Já se anunciou
noutro texto que aprofundaríamos o conceito de virtude segundo Santo Tomás. Façamo-lo, a partir da seguinte divisão:

1- A virtude, em termos metafísicos e também ontológicos, é o que auxilia uma potência a atingir o ato específico ao qual tende. Nas palavras do Aquinate, trata-se de uma operação que ajuda um ente a alcançar o seu fim, razão pela qual se chama “força” (unde et vis dicitur). Ora, o fim próximo de uma coisa é atualizar todas as potências que lhe são distintivas; para este fim está ordenada a virtude da coisa. Daí Santo Tomás salientar que “a virtude de um cavalo é ser um bom cavalo”. Portanto, alcançar a virtude significa ter desenvolvido as potencialidades mais importantes em seu nível de excelência, de modo a alcançar a plenitude entitativa. Sendo assim, um homem virtuoso será o que aperfeiçoou as suas potências superiores (inteligência e vontade), fundamentais para que ele obre em ordem ao seu fim (no caso, o fim último, que é Deus).
2- A virtude, em sentido moral, é o meio-termo entre os vícios extremos referidos a um mesmo objeto. Meio-termo a ser buscado pelo homem. Trata-se, na prática, de um equilíbrio dinâmico que faz uso da prudência aplicando-a aos casos particulares. Esse equilíbrio, embora jamais chegue à perfeição nesta vida, se transforma em hábito bom que distingue o caráter de uma pessoa.

O objeto transcendental da virtude humana: o fim último

Se a virtude de uma perna são as potências motrizes que, quando atualizadas, propiciam a um homem o perfeito caminhar, e se a virtude de um estômago é a potência de enzimas que, quando atualizada, catalisa proteínas e acelera reações bioquímicas — facilitando com isto a digestão do alimento, para a qual o estômago opera —, o que dizer da virtude do homem enquanto ente? Para tanto, é necessário não perder de vista o fim último, como veremos.

O axioma escolástico “todo ente que obra, obra por um fim” nos aponta que a perfeição de uma coisa é o que a completa, é o que a torna plena. E, como diz o já citado Martín Echavarría, de acordo com a antropologia tomista, primeiramente se quer o fim, e secundariamente se querem as coisas que se ordenam ao fim. O fim é, portanto, a razão de o ente dotado de inteligência querer tudo o que quer. Aqui entra o “pulo do gato” da teoria da vontade de Santo Tomás: para o homem, entre todos os fins é necessário haver um fim último, pelo qual se desejam todos os demais; caso não o houvesse, não existiria nenhuma operação ou conduta propriamente humana. O problema estaria em resolver qual seria esse fim último estruturador de toda a vida humana, e que lhe dá sentido.

A resolução do problema nós a encontramos na Suma Teológica, IªIIª, questões 1 e 2 (ao todo, são apenas 16 artigos, cuja leitura eu firmemente recomendo!). Estão descritos ali o fim último e, também, em que consiste a bem-aventurança do homem; ou melhor: em que ela não pode consistir.

a) Não pode consistir nas riquezas;
b) não pode consistir nas honrarias;
c) não pode consistir na fama ou glória humana;
d) não pode consistir no poder;
e) não pode consistir em nenhum bem corporal;
f) não pode consistir no prazer;
g) não pode consistir em nenhum bem espiritual da alma.
h) não pode consistir em nenhum bem criado.

E não pode a bem-aventurança consistir em nenhuma dessas coisas porque nenhuma delas faz a vontade repousar absolutamente. Ora, se a felicidade se define como a posse habitual dos bens queridos, é claro que todos esses bens, sendo contingentes e passageiros, não podem trazer a felicidade em sentido estrito, nem fazer a vontade repousar — e quando digo “repousar”, não me refiro a uma suposta paralisia da vontade, mas ao fato de o querer estar perfeitamente contemplado pela inesgotável superabundância de bens a que pode dirigir-se. Assim, ninguém com muitos bens (sobretudos espirituais) quereria ter poucos; ninguém com saúde perfeita quereria perdê-la; ninguém que sabe muitas coisas quereria saber poucas; Deus, que é o Próprio Ser, não quereria ser o nada; etc. A pessoa mais feliz, portanto, seria aquela que, querendo um bem qualquer, logo estivesse na plena posse dele. Ora, só o fim último, que é Deus — doador do ser e fonte de todos os bens possíveis — poderia propiciar-nos tal felicidade perfeita, imperecível.

Leiamos uma famosa passagem da Suma Teológica (IªIIª, q. 3, a. 8., resp) , em que Santo Tomás diz o seguinte:

A bem-aventurança última e perfeita só pode estar na visão da essência divina. Para compreender isto, é preciso considerar duas coisas: A primeira é o que o homem não é perfeitamente bem-aventurado enquanto lhe falta algo por querer e buscar. A segunda é que a perfeição de qualquer potência se aprecia segundo a razão do seu objeto. Ora, o objeto do entendimento é o que é, quer dizer, a essência da coisa, como se diz no Livro III do De Anima. Por isso, a perfeição do entendimento progride na medida em que conhece a essência de uma coisa. Contudo, se o entendimento conhece a essência de um efeito, mas, por ela, não pode conhecer a essência da causa a ponto de saber desta o que é, não se diz que o entendimento chegou à essência da causa em sentido próprio (simpliciter), embora, mediante o efeito, possa saber apenas que a causa é. Assim, quando um homem conhece um efeito e sabe que este tem uma causa, naturalmente aumenta nele o desejo de saber o que é a causa. E este é um desejo [proveniente] da admiração, causa da investigação, como se diz no começo da Metafísica. Por exemplo: se alguém conhece o eclipse do sol, pensa que está produzido por uma causa e se admira com ela, porque não sabe o que é. E porque se admira, investiga. E esta investigação não cessa até que ele chegue a conhecer a essência da causa. Se, pois, o intelecto humano, conhecedor da essência de algum efeito criado, chega a conhecer a respeito de Deus que [Ele] é, [...] não alcança realmente a causa primeira, mas lhe fica um desejo natural de buscá-la. Por isso não pode [ainda] ser perfeitamente bem-aventurado. Assim, pois, para uma bem-aventurança perfeita se requer que o entendimento alcance a essência da causa primeira. E assim terá sua perfeição, mediante uma união com Deus como com o seu objeto, no qual unicamente consiste a bem-aventurança do homem (...)”.

Sendo assim, para o efetivo crescimento da virtude humana (a qual será sempre assintótica, diga-se), é necessário o fim último. Extirpe-se artificiosamente o fim último do horizonte humano, e tudo no homem se desagregará. Mas isto é questão complexa para outro texto (dado que seria necessário enumerar aqui as objeções dos que negam o fim último, e este post se estenderia por demais). Reitere-se apenas que a razão de ser de todas as virtudes não pode ser outra senão Deus — fim último e princípio de todas as coisas.

Uma questão


Já que falamos de virtude, deixemos agora um problema de teologia em aberto, para ser aprofundado noutra ocasião: se é ordinariamente a virtude dos sacramentos — ao quais operam in persona Christi — o que propicia ao homem a Graça, sendo esta absolutamente necessária para a sua salvação, como poderia um homem salvar-se fora da Igreja Católica, única administradora de todos os sacramentos? E mais: se a salvação for possível fora da Igreja, por que meios poderia formalmente acontecer, já que as virtudes meramente humanas são insuficientes para a bem-aventurança perfeita dos que se salvam?

Veremos, em outra oportunidade, o que nos diz Santo Tomás, com a autoridade doutrinal de Doutor Comum da Igreja.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Resistência e oração (heróica defesa de uma catedral na Argentina)

Carlos Nougué
No mês de agosto passado, na cidade de Neuquén, ao norte da Patagônia, na Argentina, sucedeu algo que não poderíamos deixar de mostrar aqui no blog.

Ao final de um “Encuentro Nacional de Mujeres”, as manifestantes mais radicais promoveram uma marcha pelo centro da cidade que passaria diante da Catedral. Um grupo de rapazes católicos postou-se no átrio da igreja para defendê-la de possíveis atentados (como de fato já tinha havido em manifestações semelhantes).

O bispo local tentou convencer os moços a não permanecer ali, mas não conseguiu, e, quando a passeata chegou, com gritos histéricos e blasfemos, propriamente diabólicos, os rapazes passaram a rezar, em voz alta, impavidamente, o rosário.

As feministas, além de alguns homens, entregaram-se a uma orgia de atos agressivos e soezes, lançando contra os jovens e a Igreja as mais baixas injúrias e cusparadas. Os católicos, porém, certamente movidos pela Graça, ignoraram as provocações e seguiram rezando com aquela firmeza e serenidade que nos acostumamos a ler nas histórias dos mártires, até que a polícia se interpôs entre eles e as feministas, que acabaram por ir-se, esgotadas de sua própria infâmia e aturdidas diante da manifestação de santidade contra a qual tinham acabado de se chocar sem, no entanto, compreendê-la.

Tudo isso, e mais, se verá perfeitamente no vídeo a que se tem acesso pelo seguinte link:
http://www.youtube.com/watch?v=FK40LwQfy7c . E os objetivos do tal "Encuentro" podem ser vistos em http://www.youtube.com/watch?v=LaFiPFFNqo8&feature=related, além de outras imagens da manifestação anticatólica, as quais mostram pichações ofensivas à Igreja.

Assim temos de atuar os católicos, sobretudo hoje, quando o príncipe deste mundo está à solta: contra gritos e cusparadas, contra ameaças e agressões, contra sarcasmos e impugnações, defender a Igreja, defender o magistério de sempre – defender a Cristo –, serenamente, armados de oração e doutrina, mas inabalavelmente, com a rigidez e a nervura das rochas.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

A música e a teoria dos transcendentais

Sidney Silveira
Posto a seguir mais um trecho da
entrevista concedida pelo Nougué ao Prof. Marcos Cotrin Barcellos, da Faculdade Católica de Anápolis, como encerramento da VIII Semana de Filosofia Prática, realizada em março deste ano.

Na parte selecionada em mais este vídeo do blog, trata-se da teoria dos transcendentais — aplicada à música —, assim como de um breve histórico da música pós-barroca. A propósito, uma das caracterísicas da arte pós-barroca (e não apenas na música, diga-se) é que o belo e o bem se dissociam. E há outra coisa facilmente identificável: a tendência ao sensualismo será crescente, o que não seria nenhum problema se a sensualitas, quando exacerbada, não afetasse as potências superiores da alma humana: a inteligência e a vontade.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Laicismo, o nada bendito fruto da teoria liberal

Sidney Silveira
Vimos noutra ocasião que, entre as nove teses maçônicas elencadas no hoje esquecido livro A Maçonaria no Brasil – orientação para os católicos, de D. Boaventura Kloppenburg, está a do Estado neutro em assuntos religiosos. Diz ela: “O Estado deve manter-se neutro ou indiferente perante qualquer religião concreta”.

Essa tese maçônico-liberal foi, na prática, o cavalo de Tróia do laicismo no Ocidente, e com ela inaugura-se uma nova fase civilizacional na história do mundo: a do Estado cego à transcendência. Uma rápida pesquisa histórica nos mostra que, desde a mais remota Antiguidade até o atual ocaso da Cristandade, as civilizações se ergueram e se desenvolveram reportando-se aos deuses (não entrarei, por ora, na questão das falsas e da verdadeira religião, e na distinção entre deuses pagãos e Deus verdadeiro, uno e trino). Não é por acaso, a propósito, que logo na primeira frase do diálogo outonal de Platão, As Leis, afirma-se que a legislação provém dos deuses. Ora, um grego, de uma maneira geral, jamais suporia o contrário sem cair no ridículo — assim como também um egípcio, um romano, um sumério, um cristão...

O sentido de unidade e, sobretudo, de permanência de uma cultura, de uma nação — a qual não exclui o Estado, a não ser para um liberal — sempre teve a sua fonte, o seu poder estruturador, o seu pólo dinamizador, a sua virtude unificadora em algo supra ou meta humano. Mesmo entre os pagãos. Em geral as sociedades começam a se destruir justamente quando perdem a referência religiosa. É o caso da nossa, com o agravante de que se trata de uma sociedade “global”, o que nos faz presumir o tamanho da destruição.

Os liberais que defendem a tese do Estado laico nos dias de hoje — os quais têm mais medo do “Estado” (nomenclatura na qual eles colocam tudo o que lhes convém) do que o diabo da cruz — fingem não ver que esta é a forma mais eficiente de fortalecer o Estado, de absolutizá-lo: torná-lo independente de Deus. Sem a lei eterna, sem algo imutável a lhe pôr uma amarra, o Estado será, na melhor das hipóteses, uma barafunda de legislações autofágicas e contraditórias entre si — representativa da babel de vontades cegas no seio de uma sociedade sem um porto seguro de valores, onde ancorar. E a história se repete, tediosamente: onde não se precisa obedecer a Deus, cai-se numa obediência às vontades mais comezinhas, mais mesquinhas.

O pior de tudo é que a tese maçônico-liberal do Estado religiosamente indiferente parte de um sofisma satânico: o de que a consciência individual é autônoma e, assim sendo, não deve ser “coagida” por nada externo a ela. Já mostramos aqui que os termos “consciência”, “indivíduo” e “autonomia” são usados maliciosamente de forma equívoca pelos defensores da tese. Ou seja: entre o conceito mental, o nome e a coisa nomeada não há a mais remota identidade. Mas não adianta trazer argumentos para o espírito de negação, tão essencialmente integrante do liberalismo, que, mais do que um non serviam, é formalmente um sevire conscientiam meam.

Com grande sabedoria, dizia Leão XIII — uma das glórias do Magistério da Igreja —, na Encíclica Libertas Praestantissimum, que, sendo Deus o princípio e o fim de todas as sociedades humanas, repugnaria à majestade da Sua providência que os Estados se desinteressassem da lei eterna, ou então fossem contra ela.

O fato é que, em suma, terminado o Estado confessional, acabamos por cair no Estado dos pecados “inconfessáveis”.

sábado, 20 de setembro de 2008

Enquanto isso...

Carlos Nougué
Assoberbado que estou de trabalho, mesclado com um estado de saúde não muito “confiável”, há cerca de uma semana não escrevo nada para o blog. Mas já voltarei a fazê-lo, para dar continuidade à série “Liberalismo e comunismo – rebentos da mesma raiz”.

Enquanto porém não o volto a fazer efetivamente, fiquem com o plano do final da série:

1) O que era o estado de justiça original
2) Por que foi perdido e as conseqüências dessa perda
3) A história da salvação e a Igreja
4) A lei (eterna, natural, humana positiva e divina positiva, e a lex fomitis)
5) O que é a pólis
6) Se não tivesse havido o pecado original, teria havido pólis?
7) A cidade cristã e a desigualdade enquanto natural e querida por Deus
8) Um nom serviam começado já na Idade Média
9) O que é a liberdade
10) A democracia liberal é uma ideologia
11) A democracia liberal é uma negação
12) A democracia liberal, em sentido estrito, não existe
13) A democracia liberal como moral: o liberalismo
14) A democracia liberal como sociedade anônima: o homem econômico
16) O comunismo, remate lógico da igualdade antinatural
17) Leviatã, o rei dos filhos do orgulho

Ou seja, esta série me ocupará por muito, muito tempo.

Até a volta.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Inchoatio

Sidney Silveira

O intelecto se faz inteligente em ato mediante uma forma (species) inteligível.
SANTO TOMÁS, Super librum De Causis expositio, Lectio III.

Essa curta frase resume toda a gnosiologia realista de Santo Tomás. As espécies inteligíveis, a que se faz alusão acima, são semelhanças das coisas na mente humana (sunt rerum similitudines, como afirma o Angélico numa conhecida passagem do De Veritate). Se isto é assim, somos levados a concluir que há uma preeminência ontológica do ser em relação ao conhecer (humano), assim como também há anterioridade — daí Santo Tomás argutamente enfatizar, no mesmo De Veritate, o seguinte: se não existisse a inteligência humana, ainda assim haveria o ser.

Só a inteligência do Criador pode ser metafisicamente coincidente com as coisas inteligidas, ou seja: as coisas são no mesmo ato e no mesmo instante em que são pensadas pela mente divina. Por isso, como já se disse aqui noutro post, Deus, quando pensa, cria.

Tudo bem: embora não sejamos capazes de criar, em sentido próprio, Deus quis prover-nos de uma inteligência apta a entender as coisas, ainda que por abstração — ou seja, uma inteligência totalmente aberta ao ser, capaz de adentrar-lhe as camadas mais íntimas. E essa aptidão, como se afirma no pequeno trecho de aula abaixo (mais um vídeo do blog), é como que um começo da verdade em nossa inteligência.

É claro que este começo pode não se desenvolver, por incontáveis razões, pode não chegar a assemelhar-se às coisas, pelo ato do conhecimento. Mas essa é uma história para outro post.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

A estrutura da ação humana em sua completude (IX)

Sidney Silveira
(continuação de: 1- A psicologia da ação humana)
No último texto desta série, vimos que o intelecto não se subordina às necessidades biológicas, assim como o fato de que as operações imateriais do intelecto representam o grau mais elevado da ação humana. E ainda: o alcance da operação cognoscitiva humana transcende a matéria captada pelas potências sensitivas.

Continuaremos a seguir de perto a Martín Echavarría, cujo livro La praxis de la psicología y sus niveles epistemológicos según Santo Tomás, como já se disse, é simplesmente magistral.

B. Integração de sensação e razão.

1- O intelecto como centro da personalidade. O intelecto é a faculdade que, literalmente, governa a nossa personalidade, pois todas as potências sensitivas — inclusive a memória e a imaginação, que se dirigem a objetos particulares — se submetem ao intelecto, o qual se dirige ao universal, na mesma medida em que as causas particulares se subordinam às causas universais. E isto é comprovável empiricamente, pois qualquer homem pode verificar em si mesmo o influxo do pensamento universal em sua vida afetiva — tanto no movimento das paixões e de crises suscitadas por estas, como nos hábitos adquiridos que configuram o caráter.

Mas de que maneira pode o intelecto ter um lugar central na configuração do caráter? Justamente porque o intelecto capta a razão de fim, que contém em si todos os fins particulares a serem ordenados à ação que visa ao fim universal (por exemplo: para construir um prédio, o engenheiro subordina várias ações intermediárias à consecução do fim último, que é concluir a edificação da forma como ele a projetou). Por isto, diz Echavarría que o intelecto é o princípio estruturante e o ponto de referência operativo do homem. Vemos assim que não há paralelismo entre sentir e entender, embora muitas vezes estas duas formas de apreensão das coisas aconteçam simultaneamente. Isto porque, muito antes de Husserl, Santo Tomás já havia sublinhado a intencionalidade da intelecção, o que a distingue do apetite natural sensitivo.

Santo Tomás concebe o homem como um todo unitário, e nesta visão certamente a afetividade sensitiva está integrada à personalidade humana — com um papel importante, sim, mas subsidiário. Isto porque o homem, no que diz respeito ao seu caráter, pode ir além do temperamento que a sua constituição psicofísica lhe imponha, porque os apetites sensitivos são governáveis pela razão universal. Assim, um homem que tenha forte inclinação física para a satisfação do prazer sexual pode conter essa tendência graças à razão universal alcançada pelo intelecto, que lhe diz que, em várias ocasiões, não é correto dar vazão a essas apetências. Sendo assim, quanto mais perfeitamente o intelecto captar a razão de fim, melhor poderá manter as apetências sensitivas sob o seu império. Por isso, se o espírito é débil ou corrompido, se segue uma maior ou menor desordem na sensibilidade; se o espírito busca a harmonia com a sensibilidade, a personalidade do homem logra então um desenvolvimento cujos frutos serão bastante visíveis no plano ético, no nível da razão prática.

A liberdade, neste horizonte, seria a liberdade de transcender os objetos particulares e alcançar a verdade universal. E isto se dá graças ao intelecto, que move a vontade apresentando a esta a forma dos bens a serem queridos; e quanto mais perfeitamente a inteligência apresentar os bens (os entes) à vontade, mais livre esta será no exercício do seu ato próprio, a escolha (voltaremos a isto noutro texto). Veja-se aqui a enorme diferença entre a psicologia tomista e a perspectiva freudiana, segundo a qual quem obra propriamente não é o eu, mas forças que transcendem a pessoa humana e, literalmente, a escravizam, ainda que ela não saiba. Daí o pai da psicanálise dizer que o ego é um escravo tiranizado por três senhores: o mundo externo, a libido do id e a severidade do superego.

Em Freud, como diz Echavarría, a mens deixa de ser o centro e princípio reitor da personalidade humana, para converter-se em títere de forças alheias ou ocultas, pelas quais o homem não vive, propriamente, mas (por assim dizer) é vivido. Ora, se a natureza humana é isto, torna-se impossível toda melhora ou aperfeiçoamento moral. Impossível toda virtude.

A propósito, no próximo texto falaremos da virtude, que para Santo Tomás é um hábito operativo bom. Na verdade, um hábito configurador da personalidade bem desenvolvida. E como se anunciou no princípio desta série, se trata de um caminho longo, com o propósito de mostrar se a ação propriamente humana, para de fato não ser corrompida, pode ou não se coadunar com uma teoria econômica que visa sobretudo à multiplicação de bens materiais.

(prossegue)

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

A Metafísica dos Anjos (curso imperdível!)

Sidney Silveira
É com grande satisfação que divulgo neste espaço o curso “A Metafísica dos Anjos em Tomás de Aquino”, a ser ministrado em Niterói nos próximos dias 03/10, 10/10 e 17/10 pelo meu querido amigo Sergio de Souza Salles, doutor em Filosofia com uma tese sobre o De Potentia Dei, de Santo Tomás — sem dúvida, uma das mais densas obras do Aquinate.

Tratar-se-á de um curso livre (a realizar-se a pedido de alunos do Sergio) semelhante ao que foi ministrado por ele mesmo há dois anos na Academia Brasileira de Filosofia, no Rio, do qual participamos com entusiasmo eu, o Prof. Nougué e o meu nobre amigo Luiz Astorga — tradutor do De Substantiis Separatis para a Sétimo Selo, e que hoje aprofunda os estudos justamente em metafísica dos Anjos, na PUC de Santiago do Chile, onde com certeza se doutorará com louvor. Sem dúvida, aquela foi para nós uma ocasião de grande aprendizado e de fazer novas e genuínas amizades. Aqueles meses ficarão para sempre gravados na minha memória e no meu coração.

O Prof. Sergio Salles informa-nos que o curso está subdividido da seguinte forma:

03/10 – Tomás de Aquino e as disputas medievais sobre os Anjos
10/10 – A via do ser e o conhecimento dos Anjos
17/10 – O ser e a essência dos Anjos

As aulas acontecerão na Av. Visconde do Rio Branco, 633/sala 1008, no Centro de Niterói, bem perto da estação das Barcas. O custo total do curso será de APENAS R$ 60,00. Considerando tratar-se da mais elevada metafísica de Santo Tomás, está mais do que de graça!!!

Portanto, a quem puder, aconselho entusiasticamente: assista a estas aulas. Trata-se de um CURSO IMPERDÍVEL, ministrado por um professor a meu parecer excepcional.
As inscrições serão feitas diretamente com o Prof. Sergio Salles, pelo email sergio.salles@ucp.br

sábado, 13 de setembro de 2008

Pecado mortal, desgraça para a alma (I)

Sidney Silveira
Inferno, pecado mortal, salvação, juízo final, condenação, bem-aventurança e outras palavras, desgraçadamente, quase não são mais ouvidas nas Missas. Algumas delas parecem proscritas das homilias, e dão cada vez mais lugar a discursos sobre política, honestidade, solidariedade, ecologia, dia das mães, dia dos pais, entre outros assuntos de suma desimportância que não vale mencionar. Assim, os fiéis vão ficando doutrinalmente desorientados, e muitas vezes sequer têm idéia da licitude ou ilicitude de alguns de seus atos — isto sem falar que quase nunca são lembrados de que, de acordo com a doutrina bimilenar da Igreja, pode ir para o inferno mesmo uma pessoa piedosa, pagadora de suas dívidas, fiel ao cônjuge, amante da natureza, politicamente atuante em causas boas para o país, etc. Assim, a imensa maioria vai perdendo a noção da gravidade do pecado, e da urgência de dele nos afastarmos o quanto antes, se por desventura nossa caímos — e sempre por intermédio de uma boa Confissão e da freqüência aos Sacramentos.

Não é ocioso, portanto, destacarmos algumas dessas realidades, sempre de acordo com o parecer de teólogos, de Doutores da Igreja e do Magistério, seja solene ou ordinário. Comecemos pelo pecado mortal, seguindo de perto o Tratado de Teología Moral para Seglares, de Antonio Royo Marín, O.P.

O PECADO MORTAL

DEFINIÇÃO: O pecado mortal é a transgressão voluntária da lei de Deus em matéria grave.
Como diz o Angélico, essa monstruosa desordem espiritual faz do pecador réu da pena eterna. Portanto, o pecado mortal é o inferno em potência, pois um só desses pode levar-nos ao fogo eterno. O pecado mortal é, para Santo Tomás, o maior de todos os males possíveis, porque:

A) COM RELAÇÃO A DEUS, supõe uma gravíssima injustiça contra o Seu supremo domínio. Supõe também um desprezo pela amizade divina, a renovação da causa da morte de Nosso Senhor (como me disse certa vez um experimentado confessor, em cada pecado mortal é como se jogássemos no esgoto o sangue de Cristo) e uma violação do corpo do cristão como templo do Espírito Santo.
B) COM RELAÇÃO AO HOMEM, supõe um suicídio espiritual da alma, que por um só pecado mortal se vê imediatamente privada da Graça divina, fonte da vida sobrenatural. Atenção: POR UM SÓ ela perde os méritos naturais e sobrenaturais contraídos durante toda a sua vida, assim como o direito à Glória eterna. POR UM SÓ ela incorre em reato de pena eterna e na mais odiosa escravidão a Satanás (e aqui, poupo-me de citar exautivamente o Magistério infalível da Igreja, assim como Santo Tomás, quanto a este último ponto).

Condições que o pecado mortal requer

Para que haja pecado mortal, se requerem necessariamente três coisas: a) matéria grave; b) plena advertência por parte da inteligência; c) pleno consentimento por parte da vontade. Vejamo-las:

A MATÉRIA GRAVE
É evidente que nem todos os pecados são iguais. Existe desigualdade essencial entre o pecado mortal e o venial, e também nestas duas categorias de pecado há variados graus. A razão disto é que há distintos graus de desordem objetiva nas coisas más, e distintos graus de maldade subjetiva naquele que as comete.

O pecado mortal sempre requer matéria grave. Os critérios para conhecê-la são os seguintes:

A) A SAGRADA ESCRITURA. “Acaso não sabeis que os injustos não possuirão o Reino de Deus? Não vos enganeis: nem os impuros, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os devassos, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os difamadores, nem os assaltantes possuirão o Reino de Deus”. (Cor. VI, 9-10). Há incontáveis outros textos da Sagrada Escritura que nos orientam sobre a matéria dos pecados mortais, que nos privam do céu.
B) O MAGISTÉRIO DA IGREJA, que determina acerca da licitude ou ilicitude de uma ação, assim como os graus de pecados e o perdão a eles concedido. O fundamento, aqui, é também escriturístico: “Tudo o que ligardes na terra será ligado no céu; tudo o que desligardes na terra será desligado no céu”. (Mt. XVIII, 18).
C) A RAZÃO TEOLÓGICA. Esta pode ponderar o que se requer para que uma ação envolva grave desordem em relação a Deus, ou em relação ao próximo ou em relação a nós mesmos. A sentença comum dos maiores doutores e teólogos da Igreja em todos os tempos tem tal peso, que ninguém pode afastar-se dela sem manifesta temeridade.

Em geral, se consideram pecados mortais: a) os que vão diretamente contra Deus ou contra alguma de Suas perfeições (idolatria, desespero, blasfêmia, sacrilégio, etc.; b) os que prejudicam gravemente o próximo, em sua saúde, em sua vida, em sua fortuna ou em sua honra (assassinato, roubo, detração, calúnia, fraude, etc.); c) os que supõem uma desordem contra o próprio pecador, porque subvertem a natureza e o fim buscado por esta (auto-mutilação, masturbação, onanismo, adultério, etc.).

Continuaremos, num próximo post, com a tipificação do pecado mortal, utilíssima como orientação para os fiéis. E façamos uma importantíssima advertência: se alguém (provavelmente um liberal, ainda que enrustido) disser que as classificações da teologia moral são um excesso, e que bastam os 10 mandamentos para orientar-nos em nossa dificílima caminhada rumo ao céu, tenha certeza do seguinte: esta pessoa é não apenas uma péssima influência, mas é alguém que vai induzi-lo a toda sorte de pecados.
(prossegue)

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

A editora Sétimo Selo

Sidney Silveira
Alguns amigos e conhecidos recentemente manifestaram — pessoalmente e por email — o propósito de ajudar, de alguma maneira, o projeto da pequenina editora Sétimo Selo, cuja linha de publicações é fixa, porque não se amolda aos vaivens ou às oscilações do mercado editorial, razão pela qual não fizemos e jamais faremos pesquisas para saber se há ou não mercado para os livros que ela se propõe publicar. Apenas vamos publicando-os, na medida dos nossos parcos recursos e com a certeza de que o conteúdo de tais livros é um bem inestimável, sobretudo em se tratando do nosso triste Brasil.

Portanto, o sucesso ou o fracasso editorial da Sétimo Selo nós o entregamos a Deus, e a Ele agradeceremos por um ou por outro que vier: pelo improvável sucesso, por saber que terá sido um meio para a consecução de um fim maior, mais elevado: a difusão de bens que são um tesouro de que carecemos deveras, especialmente nos dias atuais; pelo plausível fracasso, para jamais perdermos de vista que os negócios humanos são nada, são “pó sem vento”, como afirma o padre Antônio Vieira num belo sermão.

Esses amigos e conhecidos, talvez tocados pela nobreza dos fins deste pequeno projeto editorial — e dizemos “nobreza dos fins” sem o menor prurido de escrupulosidade, pois sabemos bem a diferença entre a humildade e a falsa modéstia —, querem de alguma maneira ajudar-nos a editar Santo Tomás e outros autores também importantíssimos. Se é assim, aconselho-os: a melhor maneira de fazê-lo é, simplesmente, comprando um livro (um que seja) da Sétimo Selo. Portanto, aos que estão imbuídos desse espírito de ajuda, indicamos a loja virtual da editora, onde se pode comprar pela internet; entregamos em qualquer lugar do Brasil. São eles A Natureza do Bem, de Santo Agostinho, Sobre o Mal, de Santo Tomás, A Inocência do Padre Brown, de Chesterton; Sobre os Anjos (De Substantiis Separatis), de Santo Tomás; e A Política em Aristóteles e Santo Tomás (de Jorge Martínez Barrera).

Adendo do Nougué (ANÚNCIO DE CURSO): Como anunciado em artigo anterior, vamos ministrar uma espécie de “trivium”, com as seguintes matérias: Português, Latim (como subdivisões da Gramática) e Lógica (ficando de fora, pois, a Retórica).

Pois bem, começaremos por volta de março do próximo ano com o curso de Português (vide mais abaixo sua ementa). Será dado como Curso de Pós-graduação lato sensu, com diploma reconhecido pelo MEC, carga horária de 120 horas e mensalidade de cerca de R$ 150,00. A previsão é que seja ministrado em três cidades (São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre). Já está completa a turma de São Paulo, e estamos completando agora a do Rio.

Os que se interessarem em fazer o curso no Rio escrevam-me para carlosnougue@hotmail.com. Lembramos que é preciso ter diploma de graduação universitária.
* * *

EMENTA DO CURSO DE PORTUGUÊS

I) Uso e semântica:
1) dos adjetivos e advérbios;
2) dos artigos e pronomes;
3) dos verbos e seus diversos tempos e modos;
4) das preposições e conjunções.

II) As funções sintáticas:
III) Estilística 1:
1) Concordância verbal e nominal e as silepses;
2) Voz passiva sintética e analítica;
3) Colocação dos chamados pronomes átonos;
4) Pontuação.

VI) Estilística 2:
1) Paralelismo sintático;
2) Coordenação e subordinação;
3) Período e parágrafo.

Observação: os diversos itens da ementa poderão ser reordenados de acordo com o desenvolvimento do curso.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

O latim ainda (III)

Carlos Nougué
Com a queda do Império Romano pelas hordas bárbaras, o latim entrou naquilo que em lingüística se costumou chamar deriva: já sem a civilização que lhe era a alma, tornou-se como um “cadáver”, que logo “se putrefaria” e desfaria numa multidão de dialetos cada vez mais distantes entre si, quer pela assimilação diversamente imperfeita do latim pelas várias tribos invasoras, quer pela influência das línguas destas sobre os falantes do idioma itálico.

Já no século VI, mais ou menos cem anos após aquela queda, chegava a desculpar-se o grande São Gregório de Tours, galo-romano, por seu mau latim. E, se foram precisamente as ordens monásticas e seus copistas que salvaram não só a língua latina, mas a própria herança literário-filosófica da Antiguidade clássica, o latim medieval, porém, tornar-se-ia uma espécie de “língua franca”. Seria usado na liturgia, nos documentos eclesiásticos e nas escolas (e, é claro, nas obras filosóficas e teológicas), mas em âmbito local cada um acabaria por falar o dialeto materno. É assim que Santo Tomás de Aquino se valerá da língua do Lácio no altar, nas cátedras universitárias e em suas obras escritas, mas usará o napolitano no lar e em toda a sua terra natal.

Será verdade, porém, como se diz largamente desde o Humanismo e a Renascença, que o latim escolástico, e em particular o do Aquinate, é bárbaro, pobre, sem brilho? Será ele inferior ao latim clássico de Cícero e Virgílio, ao latim imperial de Sêneca e Tácito, ao latim cristão de São Jerônimo e Santo Agostinho? Será, enfim, uma língua morta? Restrinjamo-nos ao latim do próprio Santo Tomás para provar o absurdo da pretensão.

Antes de tudo, Santo Tomás é autor de algumas das mais belas orações latinas jamais escritas: tão bem escritas, tão belas, tão perfeitamente poéticas, que sua tradução é, em termos estritos, praticamente impossível. Tomemos como exemplo Adoro te devote, cuja autoria a tradição nunca hesitou em atribuir ao Aquinate. (Transcrevemo-la usando acentos agudos para indicar a vogal tônica, os quais não necessariamente indicam som aberto. Ademais, lembre-se que em latim nunca houve acentos gráficos):

1. Adóro te devóte, látens Déitas,
Quae sub his figúris vére látitas;
Tíbi se cor méum tótum súbjicit,
Quía te contémplans tótum déficit
.

2. Vísus, táctus, gústus in te fállitur,
Sed audítu sólo túto credítur:
Crédo quídquid díxit Dei Fílius;
Nil hoc vérbo veritátis vérius
.

3. In crúce latébat sóla Déitas,
At hic látet símul et humánitas:
Ámbo támen crédens átque cónfitens,
Péto quod petívit látro paénitens
.

4. Plágas, sícut Thómas, non intúeor
Deus támen méum te confíteor;
Fac me tíbi sémper mágis crédere,
In te spem habére, te dilígere
.

5. O memoriále mórtis Dómini,
Pánis vívus vítam praéstans hómini,
Praésta méae ménti de te vívere,
Et te ílli sémper dúlce sápere
.

6. Pie pellicáne Jésu Dómine,
Me immúndum múnda túo sánguine,
Cújus una stílla sálvum fácere
Tótum múndum quit ab ómni scélere
.

7. Jésu, quem velátum nunc aspício,
Óro fíat íllud quod tam sítio:
Ut te reveláta cérnens fácie,
Vísu sim beátus túae glóriae. Ámem
.

Eis uma tradução dela ad litteram.

1. Adoro-vos devotamente, Divindade oculta,
Verdadeiramente escondida sob estas figuras;
A Vós meu coração se submete por inteiro,
Porque, contemplando-vos, tudo desfalece.

2. A vista, o tato, o gosto falham quanto a Vós,
Mas basta-me ouvir-vos para crer em tudo:
Creio em tudo quanto disse o Filho de Deus;
Nada mais verdadeiro que esta palavra de verdade.

3. Na cruz, ocultava-se apenas a vossa Divindade,
Mas aqui se oculta também a vossa humanidade:
Eu, porém, crendo em ambas e professando-as,
Peço o mesmo que pediu o ladrão arrependido.

4. Não fito, como Tomé, as vossas chagas,
Mas confesso-vos, meu Senhor e meu Deus;
Faça com que cada vez mais eu creia em Vós,
E em Vós espere, e a Vós vos ame.

5. Ó memorial da morte do Senhor,
Pão vivo que dá vida aos homens,
Fazei com que meu espírito viva de Vós
E lhe seja sempre doce este saber.

6. Piedoso pelicano,* Senhor Jesus,
Lavai-me a mim, que sou imundo, em vosso sangue,
Do qual uma só gota pode limpar
De toda iniqüidade o mundo inteiro.

7. Ó Jesus, que velado agora vejo,
Peço se cumpra isto que tanto desejo:
Ante a vossa face claramente revelada,
Ter a beatitude de ver a vossa glória. Amém

* Considerava-se o pelicano um animal especialmente zeloso com seu filhote, a ponto de, não tendo nada mais com que alimentá-lo, dar-lhe de beber seu próprio sangue. Por isso tornou-se um símbolo de Cristo, de seu Sacrifício na Cruz e de seu Sacrifício sacramental.

(Continua.)

terça-feira, 9 de setembro de 2008

A cegueira da mente, outro fruto da sensibilidade desordenada

Sidney Silveira
Ainda a propósito dos riscos a que o homem pode expor-se,
se a sua sensibilidade se exacerba, vale fazer um apontamento do que é, de acordo com Santo Tomás, a cegueira da mente (caecitas mentis). Nas palavras do Aquinate, ela provém de uma disposição habitual contrária à verdade, fruto da afetividade. Ou seja: é um não querer ver a verdade justamente porque considerá-la traria uma profunda transformação — além da dor psíquica de enxergar o quanto se estava em erro. Alguém nessa situação reprime a verdade e joga-a para um plano quase inconsciente, e, como diz Santo Tomás, raciocina a partir de premissas que se moldam à inclinação das paixões viciosas que, a esta altura, já se tornaram habituais. No plano da teologia moral, a cegueira da mente pode ser muito bem representada pela seguinte situação: o pecador, para continuar pecando, prefere inventar uma teoria qualquer a enxergar os seus atos em toda a dimensão que possuem. Em suma, tornou-se voluntariamente cego para os princípios que movem os seus próprios atos, e por essa cegueira da mente a sua inteligência se encontra impedida de deduzir a verdade segundo os princípios universais captados pela luz natural da mente, como diz Santo Tomás em diferentes passagens da Suma.

Não escapou ao Aquinate que essa verdade reprimida pelos afetos tende ao retorno, porque a
sindérese não pode ser de todo extinta, como tampouco pode ser extinto o seu princípio: essa mesma luz natural (lumen naturalis) da mente, que é imagem da face divina na parte superior da alma humana. Contudo, ocorre que, mesmo sendo inextinguível — por pertencer à natureza específica da alma racional (cf. Suma Teológica, IIªIIª, q. 15, a. 1, resp.) —, a luz natural da mente pode ser impedida de realizar o seu ato formal próprio (conhecer, por abstração das qüididades materiais, a essência das coisas), por causa da imaginação desgovernada pela sensibilidade (e aqui se deve frisar que o homem, para pensar, precisa das imagens dos entes, ou “fantasmas”, como as chamava Santo Tomás). Eis, portanto, a terrível situação do “cego mental”: desorientou-se a respeito das únicas coisas que realmente importam, o que lhe fará acumular pecados atrás de pecados, vícios atrás de vícios. E sem nenhum freio, até a sua consciência jogar a pá-de-cal sobre aquilo que deveria iluminá-la (e não nos esqueçamos de que a consciência pode estar em erro, e, por esta sua potência para a defectibilidade, não pode ser um princípio da ação humana).

Obviamente, para Santo Tomás, a cura da caecitas mentis não se dá por uma regressão em busca da representação da imagem reprimida — como acontece na psicanálise — mas pela contemplação das coisas eternas (a respeito dos modos dessa contemplação, falaremos noutra oportunidade).

Por ora, façamos um test drive teórico-prático: coloquemos essa teoria para uso próprio em vigência no mundo atual, repleto de imagens as mais abstrusas e intrinsecamente más (tão desgraçadamente opostas à contemplação das coisas eternas), imagens essas alcançáveis por um simples click no mouse, um simples toque no controle remoto da televisão, uma simples ida ao cinema, uma simples leitura de um livro com conceitos errados e com imagens terríveis, imagens feias, imagens grotescas, ainda que embelezadas por rastros de beleza quanto à forma com que são expressas ou veiculadas. Seja um site pornográfico, seja um desenho animado em que o malvado vence e tripudia do “bonzinho” (na verdade, um bonzinho fake e estúpido), seja um filme em que não há sequer uma sombra disto a que chamamos "virtude", mas só de graus distintos de malvadezas, seja um poema em que o “eu” lírico do poeta liricamente “empalha” o seu amante em versos metricamente perfeitos, ou então um poema que seja confessadamente, uma ode ao mal, seja, enfim, qualquer coisa grotesca, ainda que artesanalmente composta. O que fazer, nestes casos, se é pela imaginação exacerbada — tornada fetiche — que o homem cai no abismo psíquico e moral? [A propósito, Aristóteles já afirmava que o homem, depois que se deprava, não tem mais saída: será para sempre refém das imagens de seus próprios atos depravados]

Repito a indagação: o que fazer, amigos? Pois bem: vejamos a receita que nos dá o liberal: Nós devemos escolher as coisas boas e BOICOTAR as coisas más, mas isto sem jamais reprimir a liberdade da consciência individual, o que seria uma "tirania". Ora, tal resposta seria válida se a pura e simples contemplação de coisas más, em si mesma, não afetasse o âmago da nossa dinâmica psíquica... Mas afeta! E afeta na exata medida em que cria uma imagem nova — e uma imagem nova em nossa psique é, literalmente, uma nova possibilidade de pensamento e de ação. Por isso, os Padres do Deserto e alguns dos maiores doutores da Igreja de todos os tempos, assim como o
Magistério infalível, tantas vezes nos advertiram do seguinte: não demos asas à imaginação, mas antes busquemos a continência desta, pois o demônio precisa de imagens para seduzir e enganar o homem (já que não pode enganar um anjo, que possui, como ele, a intuição direta das essências, a captação imediata das verdades sobre os entes). Sendo assim, a liberdade que busca o liberal é, literalmente, a liberdade para escolher o pecado e o mal, o que é frontalmente contrário ao fim para o qual o homem foi criado por Deus.

Portanto, amigos, bastante cuidado com liberais que andam escrevendo por aí, em livros e em sites, por exemplo, que é preciso levar a imaginação às raias do impensável; com liberais que andam por aí divulgando obras de autores e “filósofos” que são verdadeiros encantadores de serpentes; com liberais que inventam teorias não apenas para justificar os próprios vícios (o que neste caso só importaria apenas a eles e a Deus), mas pior: justificá-los difundindo teorias que impugnam verdades fundamentais; com liberais que põem satanistas em destaque. Cuidado: a cegueira da mente desses homens é contagiosa.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O mistério da história (II e final)

Carlos Nougué
Assim como, na Terra, a Igreja nunca se verá totalmente desembaraçada de pecadores e traidores (as varas da videira que não dão fruto, como se lê em João XV, 1-2), nem nunca poderá depor a Cruz do Esposo, assim também nunca tornará a haver um paraíso terrestre, porque, como quer que seja, em maior ou menor medida, as cidades morredouras sempre acabam por contagiar-se de peçonhas diabólicas. Só a Igreja, enquanto tem por cabeça a Cristo mesmo e enquanto o Lavrador acaba sempre por lançar-lhe ao fogo as varas estéreis e secas (João XV, 6), é isenta de tal contágio, a mesma Igreja que, todavia, conquanto sabedora da perecibilidade das cidades carnais, sempre buscou trazê-las para as fileiras do Senhor dos Exércitos.

Se porém tal é fato, por que, então, a sucessão dos séculos e a própria perecibilidade das civilizações? Porque é justamente no interior da sucessão dos séculos, tornada plenitude irreversível dos tempos, e mediante os esforços e provações dos movidos pelo Espírito, que se vai formando o corpo da Igreja triunfante — para a maior glória de Deus e para o bem do mundo que Ele tanto amou, o mundo dos eleitos. E como se completará o número dos membros da Igreja triunfante? Sempre pela graça e pelo mérito de Cristo, e em meio às tribulações e sofrimentos inauditos do fim dos séculos. Será então que, fazendo cessar a história, Cristo introduzirá a Esposa na Jerusalém celeste e lançará para sempre Satã e os demais demônios no lago eterno de fogo e enxofre, o lugar da segunda e definitiva morte (Apocalipse XXI e XXII).

Por certo — e devemos precaver-nos de um falso desprezo do mundo, dado que o desprezo do mundo ou será católico e místico, ou será uma contrafação — há ainda a finalidade terrestre da sucessão dos tempos, a saber, “permitir à natureza humana desdobrar as suas virtualidades na obra de civilização” (R.-Th. Calmel O.P., Théologie de l’histoire, p. 12); mas tal finalidade permanecerá sempre secundária e terá sempre caráter de meio, uma vez que a finalidade suprema e última da história não é temporal, não é secular — “é a manifestação, pela Igreja, da glória de Cristo e da virtude da sua cruz em todos os santos e em todos os bem-aventurados” (idem), ou seja, por outro ângulo, a já referida completação do número dos eleitos. Tudo o mais a isto se subordina, inapelavelmente.

E eis que o próprio Senhor nos quis dar luzes sobre os derradeiros dias deste mundo e sua figura, sobre tal misterioso remate da história: ainda que inauditamente tremendos, medonhos e estranhos, os últimos anos do definitivo declínio terão algo em comum com todos os milênios que os terão precedido e preparado desde a Anunciação, desde a Encarnação, desde o Calvário, desde Pentecostes. Eles se inserirão, como os demais, justamente na plenitude dos tempos, que não é senão, por tudo quanto já vimos, um dom do Verbo encarnado ao mundo dos eleitos. Nunca perderá o Filho o poder de que o investiu o Pai, e nunca deixará de percorrer vitorioso a Terra sobre o seu corcel branco. (“Depois vi o céu aberto, e eis um cavalo branco, e o que estava montado chamava-se o Fiel e Verdadeiro, que julga com justiça, e combate. E os seus olhos eram como uma chama de fogo, e ele tinha sobre a cabeça muitos diademas, e um nome escrito, que ninguém senão ele mesmo conhece. E vestia uma roupa salpicada de sangue; e o seu nome é Verbo de Deus” [Apocalipse XIX, 11-13].)

“É por um desígnio de amor que o Senhor quer que Sua Esposa, a santa Igreja, seja configurada à Sua Paixão; que ela faça em certa medida a experiência das trevas e do desamparo do Jardim das Oliveiras. Ela deve ressentir à sua medida o alcance misterioso deste ‘Sinit usque huc’ (Lucas XXII, 51) que Jesus pronunciou em sua santa agonia. Se o Senhor quis para Sua Esposa, em certas épocas, uma experiência mais profunda das dores da Sexta-Feira Santa, é porque quis dar-lhe também provas ainda mais profundas da eficácia de Seu Poder e da intensidade de Seu Amor” (idem).

Assim é: todo o mistério da história se resolve no Amor efusivo do Criador, este Amor cuja grandeza é sem medida, e cuja onipotência e onipresença são um seio sempre providencial e beatífico.

Em tempo: “É muitíssimo verdadeiro que em nossos dias as nações rugiram e os povos meditaram projetos insensatos contra o Criador (Salmo 2); eles gritaram com voz quase unânime: Retirai-vos daqui (Jó XXI, 14). Daí, em grandíssimo número, o desaparecimento completo do respeito ao Deus eterno; daí os hábitos da vida privada e pública que fazem total abstração da sua soberania; muito mais ainda, esforçam-se por todos os meios e com toda a astúcia possível para fazer desaparecer absolutamente a lembrança de Deus e até a sua noção. Quem considera essas coisas não poderá evitar o temor de que tal perversão dos espíritos seja como que um antegosto e prelúdio dos males que devem sobrevir no fim dos séculos, e de que o filho da perdição de que fala o Apóstolo já esteja em ação sobre a terra (II Epístola aos Tessalonicenses II, 3), de tão extraordinários que são a audácia e o furor do assalto generalizado contra a piedade e a religião, os ataques contra os dogmas da fé revelada, a obstinação em pôr fim a todo e qualquer dever religioso ” (São Pio X, Encíclica E Supremi Apostolatus Cathedra).

domingo, 7 de setembro de 2008

A sensibilidade e seus riscos

Sidney Silveira
Vimos noutras ocasiões que o objeto formal de uma potência sensitiva — nesse composto psicossomático que é o homem — é um sensível, ou seja: um ente que se apresenta a um dos nossos sentidos na forma exata como a potência sensitiva o pode captar. Assim, não cabe ao olho resolver um problema de matemática, mas apenas ver determinada equação escrita no papel ou numa tela de computador, pois o ato a que o olho tende é limitado por sua própria potência, que é potência para ver, apenas*. E assim também ocorre com os nossos demais sentidos, internos ou externos. Como todos os demais entes, eles estão limitados pelas potências inscritas em suas próprias formas.

Dado que os sentidos se limitam a captar, em maior ou menor grau, a materialidade dos entes, isto lhes traz outra limitação, que é física. Santo Tomás exemplifica muito bem isto ao dizer, em diferentes ocasiões (como no seu magnífico comentário ao Liber de Causis), que a excelência de um objeto sensível corrompe o sentido que o capta: o excessivamente luminoso nos cega, o excessivamente quente nos queima, o excessivamente sonoro nos ensurdece e assim por diante. Mas o mesmo não ocorre com os inteligíveis: a sobreexcelência do sumo inteligível que é Deus, embora este jamais possa vir a ser entendido exatamente como é pelo homem (para Santo Tomás, nem mesmo na visão beatífica, quando os bem-aventurados verão a Deus face a face), não só não corrompe a inteligência do homem, mas torna-a incomensuravelmente melhor. E assim também com os demais inteligíveis, razão pela qual quanto mais entendemos, melhor entendemos. Mas o mesmo não se dá com os sentidos, com os quais ocorre o contrário: um excesso de sentir, uma hipertrofia na sensibilidade acaba funestamente trazendo um déficit no entendimento das coisas. Às vezes até impossibilita-o de todo, nos casos de paixões ou patologias mais graves.

Esta verdade antropológica foi trazida à luz por grandes pensadores de todos os tempos. Em suma, é preciso haver circunstâncias extrínsecas favoráveis para não exacerbarmos a nossa sensibilidade; quando não as há, ou seja, quando as circunstâncias extrínsecas não apenas não permitem o recolhimento interior, mas além disso excitam os sentidos de forma exagerada, as energias do espírito se esgotam dramaticamente, a ponto de as verdades mais elevadas sobre os entes se tornarem vedadas, por completo. Como dizia o padre Leonel Franca, a intemperança tem uma ação dissolvente sobre as energias psíquicas. Por isso, sem uma ascese que propicie a temperança na sensibilidade, jamais um homem poderá sequer aspirar a conhecer as verdades mais altas. Vejamos o que nos lembra o mesmo Leonel Franca, num trecho de seu formidável A Psicologia da Fé:

“Já Pitágoras submetia os seus discípulos a um longo tirocínio de virtudes que os preparassem à visão clara da sabedoria. Um ascetério era o vestíbulo da escola. (...) Platão desenvolveu muito mais amplamente a necessidade de purificação da vida para as ascensões do espírito. Todos conhecem o itinerário por ele traçado à inteligência para elevar-se das coisas sensíveis à contemplação das verdades invisíveis e principalmente à Idéia do Bem. Essa felicidade suprema é essencialmente condicionada pelo esforço de uma purificação completa. (...) O neopitagorismo, com sua disciplina ascética, e o estoicismo, com a predominância de suas preocupações morais, desenvolveram e ampliaram as idéias de Platão. (...) Mas foi sobretudo a escola neoplatônica [com Plotino] a que mais acentuou esta necessidade de uma preparação moral para o conhecimento das mais altas verdades (...)”.

O cristianismo deu a todas essas práticas ascéticas o equilíbrio necessário (e perfeito, já que proveniente de uma fonte sobrenatural divina). O resultado foi a resolução teórica e prática do problema das relações entre alma e corpo, sentidos e inteligência. Não nos deteremos nessa resolução teórica e prática — limito-me, no momento, a indicar a todos a leitura dos tratados da IªIIª e da IIªIIª da Suma Teológica, onde há uma condensação das soluções para o problema que nos ocupa. E fiquemos, por ora, apenas com a certeza de que é preciso praticar a continência na sensibilidade (sobretudo se considerarmos, como católicos, que a nossa natureza é decaída em razão do pecado original, e, por isto, tendente a toda a sorte de erros e corrupções).

Reiteremos aos leitores do blog: guardem bem isto, porque a série que começaremos em breve, sobre o cinema, partirá desta certeza (a qual tem como base uma bem-estruturada antropologia, baseada por sua vez em premissas metafísicas sem as quais, como já se disse, não se progride no estudo da filosofia): a necessidade de não exacerbarmos a nossa sensibilidade com imagens que podem obliterar a inteligência, desorientar o espírito, cauterizar a consciência e, enfim, arrojar-nos num abismo moral sem fundo.

* Que nos aguarde Xavier Zubiri, filósofo para quem sentimos entendendo e entendemos sentindo. Dessa sua tese, de indisfarçada inspiração fenomenológica, nos ocuparemos noutra oportunidade.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

O mistério da história (I)

Carlos Nougué
“Cremos que uma das vindas [de Cristo] mais inauditas, e mais consoladoras, será a conversão do povo de que Ele procedeu segundo a carne, o povo judeu [...]. Nós somos advertidos pela Escritura de que o Senhor o reconduzirá. Ignoramos as modalidades desta reintegração [...]. O que importa é apressar pela nossa prece a conversão de Israel, o povo de que o Filho de Deus se originou segundo a carne, o povo da Virgem Imaculada e dos doze Apóstolos. Que o Senhor, em cada Missa, digne-se lembrar do nosso pai Abraão, que Lhe ofereceu como figura o sacrifício que nós oferecemos realmente; e que Ele reconduza a Si a descendência carnal do primeiro patriarca. Supra quæ propitio ac sereno vultu respicere digneris...

Vinde, Senhor Jesus. E temos certeza de que vireis. Seja resplandecente a vossa visita ou permaneça oculta no seio da noite — vireis infalivelmente. Nunca rejeitais a prece de vossa Esposa; nunca lhe frustrais a espera. — Quando não concedeis exatamente o que pedimos, concedeis o que preferiríamos se já tivéssemos sido admitidos na contemplação face a face de Vós. O Senhor está perto de todos os que O invocam, de todos os que O invocam com sinceridade (Salmo 144).

Vinde, Senhor Jesus. — Sim, venho depressa” (R.-Th. Calmel O.P., Théologie de l’histoire, pp. 109-110).

Que é, teologicamente, um mistério? Antes de tudo, não confundamos este tipo de mistério com enigma. Enigma pode ser, correntemente: uma questão proposta em termos obscuros, ambíguos, para ser interpretada ou adivinhada por alguém; qualquer enunciado ambíguo ou velado; coisa inexplicável, aquilo que não se pode compreender. Mistério, por seu turno, nos termos que nos interessam aqui, é o objeto — objeto de fé, dado pela Revelação — que possuímos, sim, intelectualmente, embora nunca lhe possamos esgotar o conhecimento: é multifacetado ao infinito. Suas faces são como as páginas do livro de areia que inventou, em sua ficção, o agnóstico escritor argentino Jorge Luis Borges, as quais, quanto mais se viram, mais se multiplicam. O mistério, todavia, nós, os católicos, o queremos possuir e possuir pela fé, ao contrário do que sucede com o personagem borgiano: não suportando a visão de tal livro, acaba por livrar-se dele. A fé, que nos é infundida por Deus mesmo, e que tem por sede ou vaso a razão, é-nos dada justamente para nos possibilitar aquele querer e aquela efetiva posse.

Também a história é, de muitos modos, um mistério, igualmente multifacetado. E a face mais superficial deste mistério é talvez o fato de que todos os intentos dos diversos povos invariavelmente malogram, quando muito, no instante mesmo em que estes parecem mais seguros de suas rédeas. Trata-se de uma evidência, e nem a necessitaríamos exemplificar com os casos sem fim de civilizações e povos pagãos cujo ápice foi a sua própria ruína. O Império de Alexandre? O Império Romano? O Império britânico? Basta-nos o caso mais decisivo, e tão diretamente concernente a nós, os católicos: a Civilização Cristã, cujos alicerces começam a fender no momento mesmo (século XIII) em que ela atinge o zênite com as esguias torres de suas catedrais e do tomismo.

Pois bem, falar nesta face mais superficial do mistério da história é falar, já, em outra, muito mais profunda e tenebrosa: “O mistério da iniqüidade está em ação desde o presente”, escrevia São Paulo aos Tessalonicenses já no momento mesmo em que surgia a Igreja fundada por Cristo. Ora, falar no mistério do mal é tocar imediatamente o mistério da permissão do mal pelo Altíssimo, o Qual, no entanto, é a própria Bondade, razão por que, se o permite, é necessariamente por um bem infinitamente superior.

Além do mais, o Verbo — o Filho unigênito de Deus — se fez carne e habitou entre nós, e eis-nos perante uma face capital do mistério da história: o termos entrado na plenitude dos tempos precisamente quando começava o tempo “maior” da Redenção (vide Gálatas IV e Efésios I, 10). “O Pai amou tanto o mundo, que chegou a lhe dar o seu próprio Filho único e com Ele todos os bens [...]”, escreve o Padre Calmel; “por outro lado, a Igreja sempre santa fundou-se para sempre, com os seus poderes hierárquicos definidos e indestrutíveis, para nos fazer participar dos tesouros inefáveis de sabedoria e de graça que estão ocultos no coração do Senhor Jesus” (ibid., pp. 9-10). E, se saber esta verdade misteriosa, ou seja, que estamos desde Cristo na plenitude dos tempos, impede a adesão às teses modernistas segundo as quais a Igreja há de ser ultrapassada por uma “Supra-igreja”,* sabê-la é também, por outro lado, ferir de morte todo e qualquer milenarismo, como veremos no próximo artigo.

* “São Paulo sem dúvida libertou do Judaísmo a Igreja nascente, mas o fez para permitir à Igreja afirmar-se tal qual é: Igreja de Jesus e da nova lei, não igreja da lei mosaica, que terminou para sempre desde o dia da Páscoa e de Pentecostes. Seria pois uma sinistra facécia reclamar-se por exemplo de São Paulo para pretender libertar a Igreja de não sei que sobrevivências arcaicas, quando se sabe que estas sobrevivências não são senão as estruturas da Igreja queridas pelo Senhor: doutrinas definidas e sacramentos determinados. Tal facécia sinistra [pretende livrar] a Igreja do peso de vinte séculos de tradições, e [ultrapassar] vinte Concílios dogmáticos. [...] Ultrapassagem que é um embuste” (R.-Th. Calmel O.P., op. cit., p. 10).

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

O que é a história (III e final)

Carlos Nougué
Chamamos sociais aos eventos para sublinhar que, aqui, só se trata dos eventos que importam para as sociedades, para as nações, para as civilizações. Por outro lado, dizemos que os eventos sociais se cumprem pela Providência através do livre-arbítrio do homem, o que é noção teológica básica: Deus não governa as sociedades e o homem sem o concurso pessoal deste. Ele não lhe tira a capacidade de mover e de automover-se como causa segunda. Fazendo-o, o soberano Criador nada aliena da sua soberania absoluta; apenas o governa e move sem lhe violentar a natureza de pessoa (ausência de violência que, aliás, é verdadeira até com respeito aos corpos inferiores: cf. o Capítulo LXXXV do Livro I da Suma contra os Gentios, de Santo Tomás de Aquino: “A vontade divina não tira a contingência das coisas nem lhes impõe necessidade absoluta”). Segundo uma ousada expressão, “somos livremente escravos sob a Sua mão todo-poderosa”. Deve-se, porém, dizer mais: não só Deus é, mediante a Sua providência, o criador que conduz a seu fim todos os aspectos da atividade humana, mas também, como autor da graça, é o agente causador de todos os bens que se ordenam à salvação do homem, uma vez que o homem não opera estes bens senão enquanto movido pela graça divina.

Por fim, falamos em consecução dos destinos sobrenaturais da humanidade, e é preciso explicá-lo algo detidamente. Antes de tudo, obviamente não se trata aqui da humanidade endeusada que governa os sistemas históricos do panteísmo ou do neopaganismo moderno, mas sim do conjunto de indivíduos, famílias e nações que se mantiveram ou mantêm sob o governo direto do Senhor, quer, antes de Cristo e ao modo de preparação, no seio do povo judeu, quer, depois de Cristo, no seio da Igreja. Ora, o homem possui (ou pode possuir) dois elementos muitíssimo diversos: a natureza e a graça, entendendo-se a natureza como o seu corpo e alma unidos complementarmente, e entendendo-se a graça como o dom gratuito de Deus à natureza criada por Ele próprio — como a comunicação de uma operação infinita ao ente finito para elevá-lo sobrenaturalmente, sem que se diminua a divindade ao comunicar-se, nem se destrua a natureza do ente finito. Mas “como posso, Senhor, conter o Infinito no pequeno vaso do meu coração?”, perguntava-se o Padre Pio. Tal é possível porque “[...] na alma humana, como em qualquer criatura, [há] dois tipos de potência passiva, uma com relação ao agente natural, e a outra com relação ao agente primeiro, [potência esta] que pode levar uma criatura qualquer a algum ato mais elevado que o ato a que é levada pelo agente natural; e a [este segundo tipo de potência passiva] se costumou chamar potência obediencial da criatura” (Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, III, q. 11, a. 1, corpus; destaques nossos).

E, com efeito, na atual e derradeira etapa da economia da salvação, necessita o homem de três tipos de sociedade: dois naturais, a família e o Estado, e um formalmente sobrenatural, a Igreja, devendo-se ordenar aqueles a esta. Necessita da família para o aprendizado ético; do Estado pelo que suas instituições e leis lhe proporcionam, para ajudá-lo a adquirir e conservar os bens que lhe competem segundo a sua própria natureza; e da Igreja pelo seu magistério, pelas suas próprias leis, e sobretudo pelos seus sacramentos, que são causa da graça. Ora, a graça permite ao homem um saber infinitamente mais alto e virtudes imensamente mais elevadas, ou seja, o mais excelente viver, em que não só se é maximamente homem, mas, muito mais que isso, pode o homem, pela fé e com sua natureza conformada ao sobrenatural, ter incoada já aqui na Terra a vida eterna. E é justamente por isso que o estudioso da história pode, ao traçar os eventos sucedidos sob o governo de Deus e sob a ação da graça, relacionar a vida dos indivíduos, das famílias e dos Estados aos destinos sobrenaturais da humanidade.

O mais, ou seja, todos os sistemas históricos quiméricos preparados no caldeirão do anticristianismo, não visa senão a um triplo esquecimento: do Altíssimo, da Igreja e da lei natural. É a enfermidade que, cada vez mais aguda ao longo de séculos de voluntarismo, nominalismo e humanismo, se torna crônica com as escuras luzes dos anos de sangue e guilhotina. Daí é só um passo para que sobrevenham, qual monstros nascidos daquele monturo de sombras e terror, o super-homem, e o homem econômico, e o Estado e as corporações totais — o “admirável mundo novo” da multidão dos sem-fé e dos indiferentistas religiosos.

P.S. 1: O mérito humano em ordem à salvação não reside em nada que façamos por nós mesmos, mas no que faz Deus através de nós.

P.S. 2
: Muitos hão de se perguntar: onde estará a liberdade do homem, se Deus não só o criou para fazer o bem, mas também é quem o leva a fazer cada bem em ordem à sua salvação? Se o perguntam, é porque estão impregnados da noção de liberdade que, a começar com Pelágio e passando, séculos depois, pelo voluntarismo de Duns Scott, acabou por tornar-se amplamente dominante. Quem mais livre que Deus? E por que o é tão superior e unicamente? Porque tudo quanto há lhe é incomensuravelmente inferior, e é incapaz, portanto, de afetá-Lo. E quem são os mais livres dos homens? Os santos, porque nada do que está abaixo de Deus e dos anjos pode afetar-lhes o espírito, que, movido e moldado pela graça divina, é perfeitamente ordenado a Ele mesmo. É por isso que podia dizer o Padre Pio: “Os santos amam mais do que as pessoas apegadas ao mundo”. Em verdade, são o ápice do mundo visível.

P.S. 3: Falamos acima de sistemas históricos quiméricos, e de fato mostraremos, na série “Liberalismo e comunismo ― rebentos da mesma raiz”, que tanto o comunismo como a democracia liberal são, em sentido estrito, impossíveis. Além de monstruosos, que é o outro sentido da palavra “quimérico”.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Pré-categorias elementares

Sidney Silveira
Em sua instigante Filosofia Concreta, que possui alguns capítulos literalmente idênticos aos do livro Tratactus de Primo Principio, de Duns Scot (obra esta já traduzida para a Sétimo Selo, e que aguarda para ser editada com uma apresentação crítica), Mario Ferreira dos Santos nos diz que a analogia é a “síntese da semelhança e da diferença”. Ou seja: quando se usa um termo de forma análoga, está-se no ato demarcando uma semelhança e uma diferença entre as palavras e os conceitos mentais a que elas se referem. Semelhança imperfeita, acrescentemos, pois não chega a ser igualdade nem identidade. [Já falamos noutra ocasião das distinções metafísicas básicas entre “idêntico”, “semelhante” e “igual”.]

O fato é que as predicações equívoca, unívoca e análoga são pré-categorias fundamentais, ou seja: verdadeiras precondições para a classificação das coisas por nossa inteligência discursiva, e, portanto, para o próprio múnus da filosofia, se esta porventura pretende distinguir-se da opinião do vulgo, do diletante ou ainda do esteta (a propósito, peçamos a Deus que nos livre da presença entre nós do esteta metido a filósofo ou ensaísta, pois ele é altamente daninho, para si mesmo e para quem lhe dá trela). Assim, quem pula essas noções elementares, mas nem por isso fáceis — que o diga o nosso Padre Penido em seu Le rôle de l’analogie en théologie dogmatique, um tratado infelizmente tão pouco conhecido e estudado entre nós —, jamais crescerá no estudo sério da filosofia, pois fará uso das palavras e conceitos sem o necessário conhecimento técnico para o seu manejo filosófico. No final das contas, tal sujeito terá para com as palavras uma relação, no melhor dos casos, epidérmica, para não dizer esquizofrênica.

Não se trata de expor amiúde, neste espaço, todos os casos em que se dá a predicação por analogia, cujo conhecimento é uma chave extraordinária para a resolução dos principais problemas gnosiológicos. Preferimos, por ora, indicar o estudo introdutório — mas denso — do Prof. Jesús García López, intitulado La analogía em general, no seguinte endereço eletrônico:

http://dspace.unav.es/dspace/bitstream/10171/1882/1/05.%20Jes%C3%BAs%20GARC%C3%8DA%20L%C3%93PEZ,%20La%20analog%C3%ADa%20en%20general.pdf

Nesse texto, vemos muito bem explicados os principais casos de uso de termos de forma análoga, de acordo com a doutrina de Santo Tomás. Indicamos firmemente a sua leitura!

Com o domínio das pré-categorias da analogia, da equivocidade e da univocidade, adquirimos um antídoto contra a sedução por pessoas que escrevem com notável loquacidade sobre quaisquer assuntos (arte, política, religião, etc.), com grande talento retórico mas pouca ou nenhuma profundidade conceitual, usando e abusando da equivocidade, por ignorância ou, em alguns casos mais dramáticos, por uma muito mal-disfarçada malícia.

Portanto, aos amigos que nos têm honrado com a sua visita cotidiana ao blog, peço: leiam o escrito do Prof. Jesús García López, disponível no link acima e indicado por um grande amigo, jovem estudioso da obra de Santo Tomás, pois adiante comentaremos algumas de suas passagens mais importantes.
Em tempo. E para os amigos que lêem em francês, indico o bom estudo de Bernard Montagnes, O.P. (o livro La doctrine de l'analogie de l'être après saint Thomas d'Aquin, um clássico da década de 60), não sem deixar de advertir para uma certa confusão terminológica, encontrável em alguns tomistas franceses, entre ser (être) e ente (étant). Mesmo tomistas da melhor cepa, como o padre Garrigou-Lagrange (em La Synthèse Thomiste e noutros trabalhos), assim como o próprio Maritain, escorregaram nessa distinção — acreditamos que por uma questão meramente relativa à escrita francesa, pois custa-nos crer que ignorassem tratar-se de conceitos absolutamente distintos na obra do Aquinate.