Espaço destinado a combater a insidiosa e multiforme cultura liberal, que tem entre as suas raízes mais daninhas: uma falaciosa noção de liberdade humana; a idolatria — implícita ou explícita — da consciência individual; a separação entre natureza e moral; a contraposição entre Estado e indivíduo; a dissolução da Religião em categorias morais sem fundamento metafísico; a perda da noção de bem comum político.
segunda-feira, 31 de janeiro de 2011
Escritos pré-conversão (VII): Raul Pompéia
quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
O novo encontro de Assis e um texto do "Fratres in Unum"
Escritos pré-conversão (VI): Nelson Rodrigues
Escritos pré-conversão (V): Jacques Le Goff
terça-feira, 25 de janeiro de 2011
Milagre: o que é, como é e de onde provém
Sidney Silveira
Milagre, na acepção da palavra, é um evento extraordinário que não obedece à ordem natural nas coisas em que se dá. A etimologia do termo (do latim miror, ari = admirar-se) aponta tratar-se de algo que não sucede natural e habitualmente. Veremos, a seguir, que desconsiderar o sobrenatural como causa do milagre é um erro primário, proveniente ou de um cabal desconhecimento dos princípios da metafísica tomista, ou da pura e simples má-fé de pessoas cujo objetivo é inocular doses cavalares de naturalismo na teologia católica, já tão corrompida pelo vendaval modernista pós-conciliar que causou a gravíssima crise em que jazemos há 45 anos. Creiam: hoje existem professores de filosofia — na Igreja ou próximo a ela — que trabalham com sistemática diligência para evitar que o catolicismo produza alguma mente verdadeiramente teológica. Têm medo disto como o diabo da Cruz.
Para estabelecermos a natureza, a possibilidade, o escopo e as causas do milagre, convém levar em conta o que diz Aristóteles na Física, a saber: a natureza é o princípio intrínseco de — perpétuo — movimento e repouso dos entes.* Acrescente-se a esta definição a premissa metafísica de que, na ordem do ser, os entes operam no limite de suas formas (é clássico o axioma “a forma é princípio de operação”). Assim, cada ente, em seu radical actus essendi, está circunscrito por um conjunto de tendências e possibilidades, intrínsecas e extrínsecas, atualizáveis em ou por sua forma, ao qual chamamos potência. Por esta razão se diz que a natureza não dá saltos, e mais: ela nunca, jamais, poderia dar o salto maior de todos, o de transitar do nada ao ser. É, pois, necessário que ela seja literalmente criada por algo que esteja além de todos os entes naturais, quanto ao ser; e este é aquele a quem normalmente chamamos Deus.
Assentemos, pois, o seguinte: em sentido absoluto, todo milagre é uma atualização — nos entes — da omnipotência divina. Explico-me: de potentia absoluta, Deus, que é o Próprio Ser, pode levar qualquer ente a atualizar possibilidades que não estão inscritas em sua forma. Pode fazer um corpo pesado flanar, contrariando todas as contingências físicas e atmosféricas que agem sobre ele; pode fazer o pão ázimo transformar-se no Corpo de Cristo; pode ressuscitar os mortos, etc. Em todos estes casos, os eventos não sucedem em razão da virtude operativa dos entes em questão, a menos que imaginemos que um corpo pesado naturalmente flane, ou que um pequeno pedaço de pão possa, por si mesmo, transformar-se no Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Cristo, ou ainda que um cadáver seja dotado de potência ativa para reassumir a vida, como se despertasse de um cochilo. Por todas estas razões, afirma Tomás de Aquino, na Suma Teológica (I, q. 110, a.4), que, em sentido próprio, ninguém senão Deus pode fazer um milagre (ex hoc ergo aliquid dicitur esse miraculum, quod fit praeter ordinem totius naturam creatar. Hoc autem non potest facere nisi Deus).
Para deixar as coisas ainda mais claras, registre-se que o milagre não é uma operação oculta da natureza, pois neste caso a sua fonte não seria divina. Em síntese, ter uma causa oculta é um aspecto acidental, e não essencial, em sentido metafísico, de qualquer evento miraculoso. Se assim não fosse, toda causa oculta para a nossa consciência seria miraculosa em sentido absoluto (simpliciter), o que não é verdade. De fato, a causa mais oculta para os homens é Deus mesmo, causa causarum, que de ninguém é conhecido em seu Ser, mas o que nos interessa estabelecer aqui é a essência do milagre, e não apenas apontar algumas de suas propriedades ou conseqüências — como o fato de a sua causa ser desconhecida por nós. Ouçamos novamente o Doutor Comum: “Na definição de ‘milagre’ se põe (...) uma coisa que ultrapassa a ordem natural, dizendo que ‘supera as potências da natureza’” (De Potentia, q. 6 art.2). Em outra passagem, Tomás nos leva a concluir que a circunstância de deixar-nos maravilhados, estupefatos ou atônitos é, tão-somente, um efeito conseguinte do milagre, pois este é em si um acontecimento "fora da ordem observada naturalmente nas criaturas" (Suma Contra os Gentios, III, c. 101).**
Pois bem, considerados estes princípios, é preciso fazer, com Santo Tomás, outras distinções no que diz respeito às possibilidades da natureza e a intervenção, nela, do sobrenatural, que caracteriza o evento miraculoso. Isto porque, não raro, embora a causa eficiente do milagre seja sempre sobrenatural, muitas vezes ela opera nos próprios limites da natureza, seja acelerando um processo (como a cura de uma enfermidade), seja recuperando uma determinada virtude (caso de uma mulher antes estéril que dá à luz, etc.).
A propósito, neste contexto são três os gêneros de milagre arrolados pelo Aquinate na Suma Contra os Gentios (III, c. 101):
Ø Quando Deus faz uma coisa que a natureza não pode realizar por absoluta impossibilidade metafísica (como nos casos acima citados da ressurreição dos corpos, da transubstanciação na Eucaristia, etc.);
Ø Quando Deus faz algo que, por princípio, a natureza poderia realizar, mas não na mesma ordem de coisas, naquele indivíduo e em dado momento, devido a impedimentos acidentais, na perspectiva metafísica (que um paralítico volte a caminhar e um cego a ver, considerando aqui o seguinte: caminhar e ver são potências naturais inscritas na forma entis humana, mas que estavam circunstancialmente impedidas em determinado homem, etc.);
Ø Quando Deus faz algo servindo-se instrumentalmente das potências inscritas na natureza, para apressar um processo que ela mesma realizaria por vitude própria (como por exemplo a cura de uma febre).
Em todos estes casos, a causa final e a eficiente são absolutamente sobrenaturais, pois se trata de um influxo direto do sobrenatural no natural. Mas há ainda coisas por indagar, e uma delas é a seguinte: porventura é o milagre ontologicamente possível? Ora, quando falamos de possibilidade nós o estamos fazendo de um ponto de vista metafísico, perguntando como algo — nesta ordem de coisas que são — pode ou não ser atualizado, pode ou não suceder. E a primeira resposta que se nos impõe é a seguinte: a possibilidade do milagre radica na omnipotência do ser infinito, que é Deus.
Citemos novamente o Aquinate:
“Deus — que é a causa do ser das coisas naturais; que conhece todas as criaturas e a todas provê; que não age premido pelas necessidades da natureza — pode alterar o curso da natureza com relação aos seus efeitos particulares (...). Não há dúvida de que Deus pode operar sem o concurso das causas [naturais] atuando independentemente delas e produzindo nelas os efeitos que produz em virtude do seu Próprio Ser (...) e também pode Deus produzir coisas que vão contra o curso comum usual da natureza”. (De Potentia, q. 6, art. 1).
Neste contexto, vale lembrar que, em diferentes obras, Santo Tomás insiste que nem os anjos nem demônios podem realizar milagres, assim como também os santos. Quando um milagre ocorre por ação de um santo ou de um anjo, o Aquinate lembra que estes atuam apenas como causa instrumental, sendo a causa principal, sempre, Deus mesmo. Com relação aos demônios, eles só podem realizar milagres aparentes porque estão fora da ordem da Graça gratis dada, por meio da qual o milagre acontece nestas ocasiões.
A possibilidade radical do milagre está, portanto, no Próprio Ser Subsistente que não possui mescla de potência passiva e é, na realidade, o criador e também o mantenedor de todas as coisas no ser. Em resumo, sem o Ipsum Esse não haveria entes de forma alguma; ademais, assim como um homem, ordenando a matéria, a faz “obedecer” a seus comandos e executar fins que, sem a ação de sua inteligência, ela jamais poderia atualizar sozinha, assim também Deus, dada a sua potência absoluta, pode fazer com que os entes obedeçam a Seus desígnios, daí dizer o Aquinate em diferentes obras que, em todas as criaturas, há uma potentia obedentialis.
Entre as finalidades do milagre, de acordo com o Aquinate, duas se destacam: sustentar a fé dos crentes, conduzindo a inteligência deles à excelsa profundidade dos mistérios revelados; e confirmar a verdade do magistério e a autoridade de ensiná-la (Suma Teológica, II-II, q. 178, a.1).
* A crítica que faz Santo Tomás a este conceito de natureza, num de seus comentários a Aristóteles, não o joga de todo por terra; o Aquinate apenas aponta que o conjunto de entes naturais não pode ser todo deste tipo, ou seja, ter apenas princípios intrínsecos de movimento e repouso, pois neste caso o universo seria autocriado, o que é absurdo, pois nada pode movimentar-se para ser o que é a partir de si mesmo. É preciso, pois, haver uma causa supra naturam extrínseca para todos os entes naturais, razão pela qual a natureza é, como o próprio Tomás o afirma, Ars divina.
** Nesta mesma passagem do livro De Potentia Dei, afirma o Aquinate que há uma diferença entre milagre (miraculum) e maravilhamento (mirabilia), pois o primeiro diz respeito à essência do evento miraculoso, e o segundo, a um aspecto extrínseco a ele, acidental. Nas palavras do Santo Doutor, o milagre é superior à nossa capacidade de com ele admirar-nos.
Escritos pré-conversão (IV): Lima Barreto
segunda-feira, 24 de janeiro de 2011
Escritos pré-conversão (III): Pedro Nava
Eis, acima, outro texto desta série de escritos pretéritos de crítica literária (publicados no jornal O Globo). Agora, sobre o memorialista Pedro Nava. Lembro-me de que, muitas vezes, em razão da limitação de espaço, era necessário cortar uma idéia ao meio, enfeiar uma frase...
Desse breve escrito, gosto da idéia de que, em sua completude, o passado só pode ser adivinhado, pois a alma humana não consegue recosturar o pano inconsútil do tempo naqueles pedaços que se perderam. Hoje eu reelaboraria este pensamento, embora matendo-lhe o essencial: a impossibilidade ontológica de, em nossa condição, conhecer o próprio passado com perfeição.
Em tempo: Ao clicar duas vezes na imagem mal "scanneada" (incompetência minha!!!), é preciso, para conseguir a leitura completa, arrastar um pouco o cursor para a esquerda. Pelo menos no meu monitor...
sexta-feira, 21 de janeiro de 2011
Tragédia em Friburgo (RJ): ajuda aos necessitados
Sidney Silveira
Uma das sobrinhas de D. Tomás, prior do Mosteiro da Santa Cruz, em Friburgo, envia-me o email cujo texto segue abaixo:
“Queridos,
como vocês sabem, minha cidade de Nova Friurgo foi uma das assoladas pelas últimas fortes chuvas. Minha família passa bem, meu bairro não foi afetado. Porém, temos vários amigos que tiveram suas casas completamente inundadas pela água barrenta e, conseqüentemente, perderam todos seus pertences: roupas, móveis, utensílios. Alguns amigos morreram.
Muitas famílias perderam a casa completamente, levada pela chuva ou soterrada. Estas pessoas estão em abrigos especiais que as acolheram, onde recebem comida, roupa e água. Porém, aqueles que não perderam a casa completamente não vão para os abrigos, pois ainda têm casa. Estão pouco a pouco tirando quase 1 metro de lama que ficou dentro da casa.
É para estes amigos que venho pedir a ajuda de vocês. Estão chegando bastantes doações, mas elas vão todas para os desabrigados, fazendo com que essa última categoria de pessoas fique um pouco "abandonada" à ajuda de amigos e familiares para reconstituirem sua casa. Essas pessoas não têm roupas, não têm utensílios, não têm nada. A comida conseguem comprar, mas é impossível reconstituir uma casa inteira de uma hora pra outra.
Se cada um pudesse doar pelo menos uma muda de roupa (1 blusa + 1 calça + 1 meia, por exemplo, masculina ou feminina) já seria de grande valia e ajuda. Se tiverem utensílios de cozinha, ou do dia-a-dia que não estejam mais usando, passem para quem está precisando muito. Eu fico encarregada de recolher e entregar pessoalmente a estes amigos que tiveram somente a parede de suas casas poupadas. As doações oficiais não chegam até eles.
Se puderem doar algo, respondam-me para combinarmos como recolher. Estou indo para Friburgo hoje, volto na 2a. feira de carro para buscar mais donativos.
Agradeço desde já, abraços a todos”.
Portanto, quem (sobretudo no Rio de Janeiro) puder e quiser ajudar, por favor, envie email para leticiafcosta@yahoo.com.br.
Breve aviso
segunda-feira, 17 de janeiro de 2011
Novo número da revista “Le Sel de la Terre”: a contracepção e o Magistério modernista
Sidney Silveira
Chegou-me por estes dias o número 75 da revista Le Sel de La Terre, dos dominicanos de Avrillé. Um dos textos, particularmente, destaca-se: Paulo VI e a contracepção — uma condenação hesitante e tardia, assinado por Marie-Dominique O.P.
Marie-Dominique faz um passeio no tempo e remonta ao ano de 1956, quando surgiu a pílula anticoncepcional nos EUA — e mostra como, desde então, a pretexto de “diálogo” com o mundo, o Magistério foi abrindo brechas doutrinais para acomodar-se à modernidade e a suas demandas. Neste contexto, lembra-nos o autor francês que o Papa Paulo VI simplesmente retirara o tema da contracepção da pauta do Concílio Vaticano II, confiando-o a uma Comissão “especializada”: a Comissão para o Estatuto dos Problemas da População, da Família e da Natalidade (nome altamente sugestivo, prolixo e dúbio, como sói acontecer com o Magistério desde os "ventos de modernidade" da época do Concílio).
A contraposição entre a Humanæ Vitæ, de Paulo VI, e a Casti Conubii de Pio XII, no texto de Marie-Dominique, tem um caráter de prova documental da mudança do Magistério no tocante ao matrimônio cristão. Tem caráter de evidência.
O que nos espera, a partir de agora, é algo que a minha fértil imaginação não alcança...
sexta-feira, 14 de janeiro de 2011
Escritos pré-conversão (II)
quinta-feira, 13 de janeiro de 2011
Tempos e escritos idos...
quarta-feira, 12 de janeiro de 2011
Johann Pachelbel: a beleza da música barroca
Compartilho com os nossos leitores o vídeo de uma famosa peça de Pachelbel, o Cânon em Ré maior. Cada vez mais a música barroca me encanta — pela simplicidade profunda, pela delicadeza harmônica, pela espiritualidade que expressa.
Tira-gosto do livro “O Êxtase da Intimidade”
Sidney Silveira
Quem já participou do processo de edição de um livro (revisão dos textos, diagramação, capa, etc.), sabe muito bem o trabalho que dá. Mas se o livro é acalentado com todo o carinho e inserido num projeto de divulgação da obra de Santo Tomás de Aquino, como é o caso das obras do Aquinate ou sobre ele que a Sétimo Selo edita, esse trabalho é sempre prazeroso. Assim está sendo com O Êxtase da Intimidade – Ontologia do Amor Humano em Tomás de Aquino, do filósofo espanhol Juan Cruz Cruz, que em nossa edição terá mais de 300 páginas.
Como tira-gosto deste denso trabalho filosófico que virá à luz em breve, transcrevo a seguir um trecho de sua Introdução:
“(...) Se deixarmos de lado os efeitos “negativos” sobre o corpo que proverbialmente foram atribuídos ao êxtase (a imobilidade marmórea dos membros, a insensibilidade dos órgãos perceptivos, a comoção alegre ou temerosa do rosto alucinado, os eflúvios luminosos no rosto e nas mãos, o calor interior, a leveza ou levitação corporal e, em outros casos, o peso dos membros), fixando-nos nos efeitos que produz sobre a alma, que são os mais importantes no nosso caso, havemos de dizer que, segundo a tradição ocidental, o êxtase provoca um aguçamento da faculdade intelectual e da volitiva para penetrar numa realidade mais elevada. Aguça-se a inteligência para chegar, mediante uma simples visão e com evidência cabal, sem necessidade de fatigantes raciocínios, a uma realidade extramental inaudita — passada, presente ou futura — mas verdadeira, adquirindo inclusive idéias antes inexistentes na alma. Oferece-se a própria vontade à nova realidade, que se apresenta iluminada e sustida pela inteligência. (...) Dos efeitos espirituais do êxtase, o mais importante, segundo o Aquinate, é o concernente à vontade, que é transformada no bem que se lhe apresenta. Assim, o êxtase sobrenatural é explicado como um efeito da ação divina que alarga a inteligência e provoca o amor da vontade; de modo que faz parte da contemplação perfeita, ou seja, de um conhecimento essencialmente amoroso. (...) O amor é uma “saída” que o sujeito faz com sua vontade, guiada pela inteligência — núcleos da intimidade —, para o amado, vislumbrado este como bem perfeito, real”.
O obra de Cruz Cruz é densa e permeada de conceitos filosóficos dos mais abstratos, não apenas extraídos da obra do Aquinate, mas da de outros filósofos e também de sua própria lavra; nela acham-se trechos luminosos como este. A análise das causas e dos efeitos do amor na alma é fina, como não poderia deixar de ser em se tratando de alguém que se dedica há anos a estudar a obra deste grande gênio medieval.
sábado, 8 de janeiro de 2011
Trecho de um prefácio: artigos do Contra Impugnantes serão reunidos em livro
Sidney Silveira
Filosofia de Combate
O tomismo e a dissolução das idéias
no mundo pós-moderno
TOMO I
Prefácio
Embate de idéias e labor filosófico
“Nem Deus pode dar nem o homem pode receber
nada mais excelso do que a verdade”.
Plutarco
A história da filosofia é a história de querelas. Os exemplos são incontáveis e remontam a tempos imemoriais: os filósofos da Natureza, na Grécia Antiga, divergiam acerca do princípio de todas as coisas, altercando entre si nem sempre com a parcimônia que se presume deva ser a reitora das discussões entre os homens de saber; posteriormente, torna-se antológico o embate de Sócrates e do seu discípulo Platão com os sofistas que começavam a ganhar terreno na então recém-criada democracia ateniense; citem-se também as abissais divergências entre duas correntes dos chamados “socráticos menores”, os cínicos e os cirenaicos, no tocante à busca da felicidade; Aristóteles, por sua vez, em diferentes obras põe abaixo uma série de conceitos dos seus predecessores, erigindo novos estatutos epistemológicos para o filosofar; Epicuro, no período helenístico, ateia fogo na luta de idéias com sua filosofia hedonista, que, não sem aporias insanáveis, via no prazer o fim último da vida humana; os estóicos contrapõem tal visão a uma proposta que colocava nos vícios o mal absoluto, chegando ao extremo de condenar toda e qualquer paixão como má em si.
Nas épocas seguintes, movimentos pendulares em torno de alguns temas levaram muitos pensadores importantes a posições contrapostas não raro belicosas, pois se tratava de visões de mundo tendentes a se digladiar — e por uma razão muito simples: levadas às últimas conseqüências, elas propunham modelos civilizacionais (ou mesmo anticivilizacionais) que não poderiam coexistir pacificamente. Com o advento do Cristianismo e sua cosmovisão alimentada pela mensagem evangélica, as disputas filosóficas acirram-se, pois entram em cena as verdades de ordem sobrenatural [1] a ser custiodiadas primeiramente por um conjunto de homens de língua grega — hoje conhecidos como Padres da Igreja — e depois pelo Magistério eclesiástico, cioso em combater as heresias que punham em risco a salvação das almas.
Da Patrística Grega à chamada Alta Idade Média, a filosofia conhece uma espécie de cume na resolução de alguns dos problemas capitais da condição humana, não sem que os amantes da sabedoria, na defesa das suas posições, deixassem de controverter com maior ou menor contundência na busca da verdade filosófica, ou, então, na tomada de posições teológicas que, de uma forma ou de outra, abarcavam um enorme conjunto de questões atinentes à vida política, à pedagogia, à noção de liberdade, de amor, de ciência, etc. Sulcada, pois, por divergências profundas entre homens de escol, a filosofia segue o seu caminho histórico em meio a uma espécie de monumental disputatio dialética, em que os argumentos de uns se contrapõem às objeções de outros, incessantemente.
Como afirma Santo Tomás de Aquino em uma de suas obras, ao se contemplar este cenário olhando amiúde para os principais esforços filosóficos do passado, vê-se que algo de grandioso se fez — à custa dos avanços e retrocessos que sempre servem de base para futuras conquistas. Ora, tal riqueza provém do fato de que a verdade, dada a inesgotabilidade da fonte de que emana (o Próprio Ser), é também ela inexaurível, razão pela qual o Aquinate afirma, no começo do seu Comentário ao Credo, que nenhum filósofo jamais conseguiu esgotar sequer a essência de uma mosca.[2] Isto nos leva a pensar que, por trás de toda verdade descoberta, sempre haverá uma salutar zona de mistério, de algo por saber. [3] Em suma, sendo o conhecimento a posse imaterial dos entes pela inteligência, cada forma inteligível de que o homem se apossa apontará inelutavelmente para novas regiões de inteligibilidade, numa incomensurável espiral de coisas cognoscíveis que reflete a infinitude do Ser divino, do qual os entes participam.[4]
Seria ocioso enumerar ad nauseam todos os combates travados ao longo de séculos sem fim, mas alguns são parte importantíssima da história das idéias filosóficas e merecem ser citados, como o de Agostinho contra os maniqueus, o de Porfírio, discípulo de Plotino, contra os cristãos, as lutas entre hereges e doutores da Igreja, como a que se travou entre Abelardo e São Bernardo de Claraval, [5] assim como as discussões teológicas entre dominicanos e franciscanos, no seio da Igreja, que gerou rusgas até mesmo entre santos: o próprio Tomás de Aquino dá a entender que São Boaventura é um dos “murmurantes” aludidos na densa obra De unitate intellectus, de cariz metafísico, escrita para combater os averroístas — então considerados, e com justíssima razão, como deturpadores da obra de Aristóteles em várias teses que, ultrapassando os umbrais da filosofia, acabavam por colocar em perigo a fé. Estava-se no ápice intelectual do século XIII, tempo de turbulência política e de esplêndida efervescência filosófica e agudeza espiritual.
Após o Renascimento, que, como dizia jocosamente G. K. Chesterton, foi a morte de muitas coisas boas, o embate filosófico ganha novos contornos, bem mais acirrados, entre as posições antagônicas em cena. Agora, de um lado está a Cristandade em lento declínio filosófico e teológico, desde a escolástica tardia — que havia preparado, com grande sofisticação, o giro antropocêntrico da modernidade, a partir de Duns Scot [6] e Guilherme de Ockham —, e de outro a nova visão de mundo de um humanismo que se quer autônomo em relação a Deus e, a fortiori, à religião. Neste cabo-de-guerra civilizacional, acaba por prevalecer o espírito moderno que, alguns séculos depois, engendrará o Estado laico e as democracias liberais paridas na Revolução Francesa. Na perspectiva católica, trata-se de um espírito de retrocesso e apostasia, de uma brutal reação da carne às duras exigências do espírito, como afirma o Pe. Álvaro Calderón, um dos maiores teólogos da atualidade, no livro A Candeia Debaixo do Alqueire. [7]
O fato é que, no largo período histórico que vai de Descartes até o final do século XX, com episódicos lampejos geniais a filosofia vai materializando-se em obras de pensadores que constroem as suas teses atacando tudo o que foi produzido até então. É verdadeiramente impressionante como o novo sestro de erigir destruindo passa a caracterizar o modo do filosofar humanista, refletido num pensar fragmentário e na divisão — muitas vezes problemática — entre os saberes. Não se trata mais de um simples combate entre posições contrapostas, como até então ocorrera, mas de uma tentativa de reconstrução total que implode sem dó nem piedade um tesouro filosófico acumulado ao longo de milênios, não obstante resgatando aqui e ali as teses que parecem dar força ao novo homem forjado pela modernidade, confiante na ciência e no progresso material e cada vez mais fechado à transcendência.
[1] Em vários artigos da presente obra se fará menção ao conceito de “sobrenatural”, tão importante para a teologia de Tomás de Aquino.
[2] “(...) sed cognitio nostra est adeo debilis quod nullus philosophus potuit unquam perfecte investigare naturam unius muscae”. Santo Tomás de Aquino, Expositio in Symbolum Apostolorum, Proêmio.
[3] Nem mesmo na visão beatífica da essência divina, de acordo com Tomás de Aquino, os bem-aventurados lograrão o conhecimento completo, exaustivo, do ser. Isto porque a respeito de Deus, que é o Próprio Ser, nenhum homem pode chegar a conhecer tudo; somente um intelecto infinito em ato poderia conhecer totalmente o Ato Puro infinito do Ser divino — daí concluir-se que só mesmo Deus pode conhecer-Se com perfeição; só Ele pode saber absolutamente tudo, ao passo que o intelecto humano é mera potência para os inteligíveis.
[4] O conceito de participação tem origem platônica e foi aperfeiçoado por Santo Tomás de Aquino, que fez uma original síntese dele com a metafísica aristotélica do ato e da potência. À rica noção de participação recorremos em diferentes artigos que se seguirão.
[5] No calor desta famosa disputa, Bernardo de Claraval escreveu As Heresias de Pedro Abelardo (Hæresum Petri Abælardi), obra em que enumera, uma a uma, as teses de Abelardo contrárias a um grande conjunto de verdades de fé, usando para isto de seu poderoso poder de persuasão, fundado em uma límpida lógica argumentativa e na retórica demolidora de sua pena.
[6] A influência de Duns Scot sobre a filosofia moderna e contemporânea, por exemplo, é imensa — embora pouco conhecida. No artigo da presente coletânea intitulado Duns Scot, o ancestral da modernidade, são elencadas algumas teses deste metafísico do século XIV que, direta ou indiretamente, forjaram muitas filosofias dos séculos que se lhe seguiram.
[7] Obra editada no Brasil pelo Instituto Angelicum, em parceria com o Mosteiro da Santa Cruz, de Friburgo (RJ) e a editora Sétimo Selo.
terça-feira, 4 de janeiro de 2011
Novidades “Contra Impugnantes”: livros e DVDs à vista
Sidney Silveira
Por estes dias não tenho conseguido responder a emails nem postar novos textos. Entre outras coisas, estou envolvido com a editoração do próximo livro da Sétimo Selo, já em processo de finalização do arquivo:
O Êxtase da Intimidade – a Ontologia do Amor em Tomás de Aquino, do filósofo espanhol Juan Cruz Cruz.
Em breve, os nossos leitores terão notícias do lançamento desta obra.
Outra coisa que me tem tomado tempo é a tardia finalização da apresentação ao Protreptico, de Clemente de Alexandria, que editaremos em uma tradução da professora de grego Rita Codá — obra que a Sétimo Selo lançará em seguida a'O Êxtase da Intimidade; por fim, rouba-me também um tempo a preparação dos dois próximos DVDs da série A Síntese Tomista.
Peço, pois, aos que me têm escrito um pouco de paciência — e incluo entre estes algumas pessoas que, na última semana, fizeram o pedido dos primeiros DVDs da referida série. Em no máximo dois dias começarei a responder às mensagens.
Enquanto isso, posto aqui no blog umas fotos (acima) que pensei estarem perdidas — mas graças a Deus hoje as encontrei numa pasta de arquivos de um notebook: trata-se do lançamento, em 2009, do curso que eu e o Nougué ministramos no Centro Cultural Banco do Brasil - CCBB, no Rio, cujos trechos de aulas estão em vários links no Youtube.
Saudações a todos.