quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Sobre filosofia e método

Sidney Silveira
Divergências entre homens dedicados à especulação filosófica só se podem resolver numa espécie de disputatio, ou seja: com a clara definição das premissas de parte a parte e a conseqüente dissecção dos argumentos por um procedimento dialético que pese todas as objeções*. E, de fato, não há meio mais eficaz de alcançar a verdade, pois não temos — como devaneava Husserl — a intuição direta das essências. Precisamos compor e dividir raciocínios para, analiticamente, tomar posse do conceito pelo qual adequamos a nossa inteligência às coisas inteligidas.

A disputatio foi o que de mais elevado se produziu em termos de método dialético, em todos os tempos. Portanto, qualquer discussão, se se quiser séria, precisa ter algo da disputa escolástica, e não por uma espécie de arqueologismo sem sentido, mas porque, em qualquer ordem de coisas, o mais e o menos se medem em relação ao grau máximo — e o máximo a que se chegou, em termos de exposição analítica, foi a disputatio. Por esta razão, mesmo um filósofo contemporâneo deve tê-la no horizonte, como uma espécie de modelo. Não se trata, é claro, de uma necessidade de escrever em forma de disputa, mas apenas de tê-la como elevado referencial para a inquirição da verdade.

A busca por esse modelo de excelência para o munus philosoficus se impõe com absoluta evidência quando consideramos que — como dizia Edith Stein em seu denso Ser Finito e Ser Eternoé tarefa da filosofia esclarecer os fundamentos de todas as ciências. A propósito, sou insuspeito para fazer qualquer elogio a esta peculiar metafísica, pois penso que a sua tentativa de pôr lado a lado Santo Tomás e Husserl, de quem fora discípula no início de sua trajetória intelectual, acabou por gerar grandíssimos males para a teologia católica posterior. Mas o que importa, aqui, é que esta sentença de Edith, compartilhada por pensadores de escol, é acertadíssima: é tarefa da filosofia esclarecer os fundamentos de todas as ciências. E isto porque, toda vez que um cientista de uma área específica do saber investiga o fundamento de sua ciência, atua como filósofo.

Certamente, a filosofia não se resume a esta nobilíssima tarefa de dotar todas as ciências de uma ratio suficiente, mas é seu papel, sobretudo, buscar a verdade sobre todos os inteligíveis, penetrar o âmago das coisas tanto quanto seja possível, realizar o que alguns teólogos chamaram de reductio ad mysterium, ou seja: nessa busca, levar a inteligência até o ponto em que não reste outra coisa senão o raio de trevas luminosas da incognoscível Causa Primeira que é a razão da cognoscibilidade de todas as demais causas e coisas, como lindamente dizia o Pseudo Dionísio. Um filósofo que se contente com um esclarecimento provisório sobre as causas últimas do Ser, ou então nem sequer as coloque em pauta, é uma espécie de prevaricador — e cedo ou tarde acabará enredado por sua própria inapetência pela verdade.

A propósito, não há outro caminho para o espírito humano: ou se ordena intencionalmente ao fim último, que é o Próprio Ser Subsistente (e, neste contexto, a filosofia cumpre o papel específico de dar sentido a essa ordenação intencional), ou dele se afasta e se dissipa no absurdo, no non sense, em fatuidades, em más filosofias.

Nesta tensão, nada como valer-se de um método seguro para iniciar a caminhada.

* Isto não quer dizer, em absoluto, que valha qualquer procedimento na discussão com pessoas que não buscam a verdade, como se demonstrou na breve “Questão Disputada sobre o uso de palavras torpes por parte do filósofo”.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O livro de Raimundo Lúlio

Sidney Silveira
Já se disse aqui da imensa dificuldade do projeto da editora Sétimo Selo, que não tem patrocinadores nem mecenas — e, na verdade, nem os quer ter. A menos que se tratasse de um mecenato sem qualquer imposição quanto à linha de publicações, da qual não abriremos mão.

Portanto, esse projeto editorial depende dos leitores para sustentar-se. Agora, é a vez do livro Raimundo Lúlio e as Cruzadas, uma edição trilíngüe (latim, catalão e português), bem-cuidada, que aborda um tema muito incômodo, sobretudo para católicos liberais que se envergonham do passado da Igreja. A propósito, em breve daremos notícia da palestra de apresentação desta obra, na qual falaremos sobre as Cruzadas, sobre o sentido da defesa da fé e, também, sobre o ecumenismo, na forma como hoje é proposto.

O livro traz uma Nota do Editor, assinada por mim; um Posfácio assinado pelo Prof. Ricardo da Costa, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e da Reial Acadèmia de Bones Lletres de Barcelona; uma Introdução de Fernando D. Reboiras, da Universidade de Freiburg im Bresgau, na Alemanha; e um breve Prefácio de Pere Villalba y Varneda, da Universidade Autônoma de Barcelona.

PARA AJUDAR-NOS, caríssimos leitores do blog, peço encarecidamente que façam a encomenda do livro pela LOJA VIRTUAL DA EDITORA, NESTE LINK.

A propósito, há vários outros livros “no forno”, esperando apenas recursos para ser editados — como o Protréptico de Clemente de Alexandria (em edição bilíngüe, grego/português); o Tratactus de primo principio, de Duns Scot (latim/português) e mais um livro de Chesterton. A edição deles depende de vocês, que nos lêem. Portanto, reitero: ajudem-nos comprando os livros!

A propósito, o livro A Candeia Debaixo do Alqueire esgotou-se em um mês e meio; agora faremos uma reimpressão, já com algumas pequenas correções de revisão. Obrigado a todos.

Depois, voltaremos ao Lúlio.

domingo, 27 de setembro de 2009

TV" Contra Impugnantes: lembrando o lançamento do "De Malo" (2)

Sidney Silveira
Eis mais um trecho da palestra a propósito do livro "Sobre o Mal" (De Malo), de Santo Tomás de Aquino, que foi o segundo livro da Sétimo Selo, lançado em dezembro de 2005.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Fontes filosóficas do ateísmo, segundo Clemente de Alexandria


Sidney Silveira
O primeiro autor a usar a expressão “ateus” (Άθεοι) na cultura ocidental foi Clemente de Alexandria, no Protréptico — obra que deverá receber da Sétimo Selo uma bem-cuidada edição bilíngüe (grego/português), em janeiro de 2010. Em um parágrafo no qual enumera alguns dos primeiros filósofos (Tales de Mileto, Anaxímenes, Diógenes de Apolônia, Parmênides e Heráclito), diz Clemente:

“Estes são também ateus, porque adoraram com certa sabedoria indouta (σοψία τινί άσόψω) a matéria, e, embora não entoassem loas às pedras ou à madeira, certamente divinizaram a terra como mãe de tudo, e, embora não fabricassem um Poseidon, não obstante tornaram-se súplices da água”.

Mais adiante, daremos notícias sobre a edição desta importante obra de Clemente de Alexandria, pela Sétimo Selo.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

"TV" Contra Impugnantes: lembrando o lançamento do "De Malo"

Sidney Silveira
Veja este primeiro trecho da palestra ocorrida por ocasião do lançamento do "De Malo" (primeiro volume), da qual participamos eu, o Carlos, o presidente da Academia Brasileira de Filosofia e prof. da Uerj, João Ricardo Moderno, e o prof. Paulo Faitanin, da UFF. Em dezembro de 2005.

Sedevacantismo, ou uma conclusão à procura de premissas (VI)

Carlos Nougué
(Continuação da exposição da Tese de Cassiciacum.)

9) Pressuposto, assim, tudo quanto se disse até aqui, deve-se dizer agora que a autoridade enquanto poder ou faculdade ativa é um habitus e, por conseguinte, um acidente predicamental; e, como todo acidente predicamental, não pode existir se não é recebido num sujeito. Que sujeito, ou antes, quem governa legitimamente e quem ilegitimamente? Governa legitimamente quem foi eleito legitimamente pela sociedade para receber a autoridade, e que não tem impedimento para recebê-la. Ilegitimamente aquele que tomou ilegitimamente a autoridade, ou por tê-lo feito sem designação legal, ou, ainda que validamente designado, por ter qualquer impedimento para receber a autoridade. Na sociedade civil, a instituição do sujeito da autoridade pertence ao conjunto da comunidade. “Segundo os tomistas em geral [também traduzimos aqui, à letra, uma frase do Padre Donald J. Sanborn], a comunidade inteira tem o direito de instituir ou escolher tanto a forma de governo quanto o sujeito que receberá a autoridade, mas a comunidade não transmite a própria autoridade, como sustentaram alguns, em particular Suárez. A comunidade simplesmente propõe um sujeito de autoridade. Mas é Deus quem dá a autoridade.” Assim, para que o rei, numa monarquia hereditária, receba legitimamente a autoridade, é mister que o povo aceite, pelo menos implicitamente, o sistema monárquico hereditário. Tudo isso, porém, tem que ver com o governo civil; já a constituição da Igreja, por seu lado, provém de Cristo, é imutável e de modo algum depende da aprovação da comunidade de fiéis. E, ao contrário do que se dá na sociedade civil, os elementos essenciais da constituição da Igreja se estabeleceram por disposição divina direta. A forma que lhe deu Cristo é monárquica, e nem o papa, que enquanto vigário de Cristo desfruta da mesma autoridade que Ele, pode alterá-la.

10) Insista-se na analogia com o composto humano. Com efeito, no caso da geração natural do homem, os pais não dão a forma humana, ou seja, a alma; dão, porém, a disposição última da matéria. É Deus mesmo quem dá a alma; e a união de matéria e forma realiza um ente simpliciter uno: precisamente, um homem. Se todavia a matéria não estiver de algum modo disposta, a forma nem sequer lhe é infundida; e, se de algum modo estiver mal ou imperfeitamente disposta, ainda que lhe tenha sido infundida a alma, o feto acabará por morrer. Ora, do mesmo modo a autoridade em ato não pode ser recebida senão num sujeito bem ou perfeitamente disposto para tal. Ora, se se trata do governo civil, pode dar-se, em não raro se deu, o caso de um rei ter tomado à for-ça a sede da autoridade e, no entanto, depois ter-se legitimado pela aprovação implícita de parte do povo. Mas tal não pode dar-se de modo algum na Igreja, porque nela a comunidade de fiéis não possui o direito de designar o sujeito da autoridade papal. É sempre necessário, portanto, que quem receba o papado seja designado segundo as normas em vigor no tempo de vacância da Sede Apostólica, ou seja, pelos eleitores que têm o direito legal de eleger o papa.

11) A permanência de um papa no cargo dura ou até a morte do sujeito; ou até sua renúncia voluntária; ou, ainda, até a privação da designação do sujeito por parte de quem tem o direito de fazê-lo (cf. o cânon 183 §1 do Código de Direito Canônico de 1917, o qual enumera as causas de perda dos cargos eclesiásticos). Embora não exista autoridade com poder de julgar o papa, o corpo de eleitores pode suspender-lhe a designação, porque a designação provém de Deus de maneira mediata, mas de maneira imediata dos eleitores. Por exemplo, se o papa enlouquecesse, seus eleitores poderiam constatar sua perda do poder papal e proceder a nova eleição. Ou, se um leigo se elegesse papa mas recusasse a consagração episcopal, deveriam os eleitores constatar sua falta de disposição material e proceder a nova eleição. Da mesma forma, caso uma pessoa já eleita papa caia em heresia ou promulgue leis disciplinares sacrílegas, seus eleitores deverão constatar sua incapacidade para manter a autoridade e proceder, também, a uma nova eleição. Por outro lado, a duração do direito de designar é semelhante à da mesma designação (perde-se somente com a morte, renúncia ou privação legal); mas é apenas o próprio papa validamente eleito (ou seja, apenas aquele que é pelo menos materialmente papa) quem tem tanto o direito de nomear os eleitores quanto o de privá-los legalmente dessa nomeação. Não há porém como não perguntar a esta altura [traduzimos aqui, à letra, outra frase do Padre Donald J. Sanborn]: “Como um indivíduo não-papa ou papa somente material pode privar ou nomear legalmente os eleitores do pontífice romano? Em outras palavras, de que maneira após o Concílio Vaticano II os conclaves podem ser considerados legítimos, se os próprios eleitores são heréticos, desprovidos de jurisdição ou nomeados por heréticos que, pelo próprio fato de sê-lo, também são desprovidos de jurisdição?”

12) Ora, a autoridade tem dois fins: legislar e nomear os sujeitos pelos quais se recebe a autoridade. Assim como a mesma autoridade tem “um corpo” e “uma alma”, ou seja, matéria e forma, sendo a primeira a designação para receber a jurisdição e a segunda a própria jurisdição, assim também o objeto ou fim da autoridade são dois: o primeiro e principal é dirigir a comunidade ao bem comum por meio de leis (e isto tem que ver com a alma da autoridade); enquanto o segundo e secundário (porque ordenado ao primeiro) é nomear os sujeitos da autoridade (e isto tem que ver com o corpo da autoridade), a fim de que tenha continuidade no tempo a própria comunidade. Esses dois objetos ou fins da autoridade são realmente diversos, como é evidente. Se pois se trata efetivamente de dois objetos ou fins, então as faculdades ordenadas a tais objetos também são efetivamente diversas. E, se a faculdade de designar é efetivamente diversa da faculdade de legislar, pode suceder que alguém que não desfrute da faculdade de legislar possa, porém, desfrutar da de designar — na medida em que queira o efetivo e objetivo bem da sucessão legal da autoridade. Ora, como já se disse, a faculdade de designar provém da Igreja, enquanto a faculdade de legislar provém de Deus. Logo, a Igreja pode dar a faculdade de designar sem que, por causa de algum impedimento, Deus confira a de legislar. Mas os eleitores do papa, ainda que tenham aderido ao Concílio Vaticano II e suas teses heréticas, têm a intenção de designar legalmente alguém para receber o papado. Assim os papas conciliares, embora sejam papas apenas materiais, quando nomeiam os “cardeais”, têm a intenção de nomear sujeitos com a faculdade de designar o papa. Neste sentido, mesmo os conclaves que se seguiram ao Concílio Vaticano II quiseram objetivamente o bem da sucessão na sede pontifical, e os que são eleitos para esta sede objetivamente se propõem ao bem de nomear os eleitores do papa. E atenção: esta continuidade meramente material da autoridade pode, pela razão já apontada de que se busca o bem da sucessão material, prosseguir por tempo indefinido. O fato da heresia não anula a designação dos eleitores nem dos eleitos. Mas, repita-se, aquele que está materialmente bem disposto está, por outro lado, pelo fato da heresia, não-disposto para receber a forma, ou seja, a autoridade de legislar. Assim, são válidos todos os seus atos que concernem à parte material da autoridade, mas não à jurisdição, que concerne diretamente à parte formal da autoridade.

13) Recorra-se mais uma vez à analogia com a alma humana. Com efeito, a alma se ordena a atos especificamente diversos, como os atos da vida vegetativa, da vida sensitiva e da vida racional. Pode suceder que, por inaptidão ou por não-disposição da matéria (devida, por exemplo, a uma má-formação congênita ou a uma concussão cerebral), a alma cumpra ou passe a cumprir apenas os atos da vida vegetativa. Quando porém a matéria se torna de todo inapta para manter até a vida meramente vegetativa, então sobrevém a morte. Similar e analogicamente, a Igreja pode manter a “vida vegetativa” da hierarquia e concomitantemente não conservar a “vida legislativa”, que busca precisamente o bem comum da Igreja. Tal não decorre de uma falha da parte de Cristo, mas de um defeito da parte dos homens. E isto é permitido por Cristo por um bem superior. Com efeito, os fins da Igreja continuam a ser buscados pelos bispos e padres que não incorreram em heresia, com uma jurisdição não habitual, mas transitória, quando eles cumprem atos sacramentais.

14) Por quanto já se viu até aqui, um papa apenas material pode legítima ou validamente até mudar as regras da eleição, sobretudo se essas mudanças são aceitas pelo conclave. O direito porém de legislar, ou seja, o direito de ensinar, governar e santificar a Igreja, provém diretamente de Cristo, ou antes, de Sua autoridade, da qual o papa participa como vigário. Não obstante, segundo o documento Vacantis Apostolicæ Sedis, de Pio XII, uma vez que o eleito tenha expressado seu consentimento com a eleição, torna-se automaticamente papa: em outras palavras, a união de matéria e forma no papado é imediata. Então, como um eleito pode permanecer apenas materialmente papa após aquele consentimento? Precisamente porque a matéria e a forma não podem unir-se se aquela não tem proporção com esta. Ora, como já visto, a intenção de promulgar erros ou leis disciplinares más é impedimento para o recebimento da forma da autoridade, e o papa apenas material continuará tal enquanto ele próprio não suprimir tal impedimento.

15) Os entes per se, como, por exemplo, um homem, não podem sobreviver se matéria e forma se separam, porque aquela não pode ser em ato sem sua forma substancial. Nos entes per accidens, que nascem da união de uma forma acidental com uma substância (que analogicamente se torna matéria com relação ao acidente), matéria e forma podem separar-se sem que se corrompa o suppositum, assim como, por exemplo, um homem político ou filósofo pode deixar de ser político ou filósofo sem deixar de ser homem. Pois bem [outra vez traduzimos aqui, à letra, uma frase do Padre Donald J. Sanborn], “o papa, enquanto papa, é um ente ‘per accidens’ por ser uma agregação de muitos entes, ou seja, de um homem por um lado e de muitos acidentes por outro”. Desses acidentes, alguns são dispositivos, como a consagração episcopal, etc., mas apenas um é formal: aquele pelo qual este homem concreto é designado papa simpliciter. Tal acidente é o direito de legislar, que também se diz autoridade ou jurisdição. Se tal homem não recebe imediatamente a autoridade ou jurisdição, permanece “matéria”, homem designado, mas ainda sem o direito de legislar nem, o que é o mesmo por outro ângulo, o de dirigir a comunidade a seus fins. Um exemplo disso o podemos encontrar no presidente dos EUA, que é legalmente designado no mês de novembro, mas só recebe a autoridade em janeiro do ano seguinte. Entre esses dois momentos, ele ainda não é presidente, mas tampouco é simpliciter não-presidente: com efeito, já recebeu a designação legal. Em outras palavras, já é materialmente (materialiter) presidente, mas ainda não formalmente (formaliter). Pois bem, algo similar pode suceder com o romano pontífice, ou seja, pode dar-se o caso de alguém ter sido legalmente designado papa e, no entanto, ainda depois de ter aceitado a designação, não receber de Cristo a jurisdição por lhe faltar uma disposição necessária, como, por exemplo, o inteiro uso da razão ou, que é o que aqui nos interessa, a intenção de legislar e governar em vista do bem comum da Igreja — e tal intenção não pode faltar senão no herege. Neste caso, o homem designado papa não seria verdadeiro papa, ou, em outras palavras, como já visto, o seria apenas materialmente, não formalmente. É exatamente o caso dos hereges Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI.

16) Termina aí, quanto ao essencial, a Tese de Cassiciacum. Resta ainda, porém, por explanar uma última distinção: a que se dá entre fato real e reconhecimento legal de um fato real. Explique-se. Toda e qualquer sociedade é uma pessoa moral que, por analogia com a pessoa física, tem inteligência e vontade próprias. Se assim é, pode acontecer, e de fato acontece, que determinado fato possa ser verdadeiro ou real (e até evidente) sem, no entanto, ser reconhecido como tal pela sociedade. Alguém pode cometer um crime diante de testemunhas, mas, apesar disso, será considerado inocente enquanto não for condenado pelo competente tribunal. Em razão desta distinção entre fato real e fato legal, toda e qualquer sociedade, incluída a Igreja, não se reduz a uma simples massa ou multidão de indivíduos. Veja-se o caso do bispo herege Nestório: após ele ter expressado publicamente sua heresia, o clero e o povo recusaram-se a seguir-lhe obedecendo, embora ele tenha continuado a ocupar a sede que era sua por designação legal até ser legalmente deposto, três anos depois, pelo Concílio de Éfeso. Se não fosse necessário o reconhecimento legal de sua heresia, o papa teria nomeado outro para o seu lugar antes do julgamento do Concílio. O terrível problema atual é que, ao menos aparentemente, todas as sedes de autoridade na Igreja ensinam os erros do Concílio Vaticano II e todos os eleitores do papa compartilham suas heresias. Se assim é, não há, com efeito, quem possa legalmente reconhecer o fato de tais erros no magistério nem a conseguinte ausência de autoridade nos que as propalam — situação jamais verificada na história da Igreja. E, se por um lado os fiéis atuais, tal como os fiéis da época de Nestório, devem proteger-se rompendo a comunhão com os propaladores de erros e recusando-se a reconhecer-lhes a autoridade, por outro lado não podem deixar de reconhecer o caráter de sociedade legal da Igreja, pelo qual aqueles mesmos propaladores de heresias permanecem em sua sede e cargo enquanto legalmente não forem destituídos por uma autoridade competente. Por isso a tese que aqui se expõe não só é verdadeiramente católica, mas é a única que explica adequadamente a inusitada situação que se vive hoje na Igreja: porque, com efeito, sem negar a indefectibilidade da Igreja, sua apostolicidade e unidade enquanto corpo moral único e a infalibilidade de seu magistério, ela se recusa a reconhecer a autoridade de Cristo nos que divulgam heresias desde o Concílio Vaticano II.

* * *

Como se vê pela exposição, a classe de sedevacantismo que agora se investiga chegou às duas premissas seguintes:
● Assim como na geração natural do homem os pais não lhe dão a forma humana, ou seja, a alma, mas apenas a disposição da matéria, enquanto é Deus mesmo quem lhe infunde a alma, assim também, na Igreja, é o colégio eleitoral competente quem dá a determinado homem a matéria ou designação legal de papa, enquanto é Cristo mesmo quem lhe dá a forma ou autoridade; mas, assim como a alma humana deixa de ser infundida se a matéria não estiver adequadamente disposta para receber a forma substancial, assim também, se o homem designado legalmente papa não estiver materialmente disposto (por exemplo, por heresia) para receber de Cristo a forma ou jurisdição, seguirá sendo papa, mas apenas materialmente.
● Ora, desde o Concílio Vaticano II os papas têm sido notoriamente heréticos.
Donde a conclusão (que, como visto, já estava preestabelecida, mas foi alterada em razão da nova premissa maior encontrada):
● Os papas, desde o Concílio Vaticano II, são materialiter papas, mas não o são formaliter, razão por que devem os fiéis católicos romper a comunhão com eles e não reconhecer-lhes nenhuma autoridade ou direito de legislar.
* * *

Notas prévias à refutação da Tese de Cassiciacum

> Como convém, começaremos por refutar a premissa maior da tese adversária. Diga-se, porém, desde já: se se quer explicar o papado por uma analogia com o composto humano de corpo e alma, antes se deveria reconhecer (como escreve o Padre Calderón em A Candeia Debaixo do Alqueire, p. 79) que, “assim como, na geração, da disposição da matéria por parte dos pais se segue necessariamente a criação da alma por parte de Deus, da eleição validamente aceita por parte da Igreja se segue [necessariamente] a comunicação do poder por parte de Nosso Senhor. As disposições requeridas para aquilo são as mesmas que para isto”. Ora, se assim é, rui toda a Tese de Cassiciacum pela improcedência de sua premissa maior. E não deteve o autor da tese nem seu defensor o Padre Donald J. Sanborn sequer o fato de a Constituição Vacantis Apostolicæ Sedis, de Pio XII, referida por eles mesmos, estabelecer exatamente o contrário do que defendem. Veremos tudo isso detidamente.
> A premissa menor da tese implica, como já se adiantou, um argumento para trás (quia) de todo ilícito aqui, e pode-se dizer que a pretensa notoriedade atribuída por ela à heresia de Paulo VI durante o Concílio efetivamente não se deu então. Em verdade, como se verá, também esta forma de raciocinar para trás constitui uma “reconstrução ideal da história”.
> A conclusão desta tese será refutada aqui na medida mesma em que se diferencia da dos demais tipos de sedevacantismo, ou seja, no afirmar uma sedevacância apenas formal. Mas, na medida em que compartilha com os demais tipos o caráter geral do sedevacantismo, só será refutada ao final do exame do conjunto deles.
> Após aquelas refutações da Tese de Cassiciacum, responder-se-á particularmente a cada item numerado de sua exposição, e então se mostrará a quantidade impressionante de suas imprecisões e obscuridades filosóficas e o uso impróprio que faz não só de Santo Tomás de Aquino, mas também de São Roberto Bellarmino, Suárez, etc.

(Continua.)

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Curso de História da Filosofia: do impulso grego ao abismo moderno (II)

Carlos Nougué
Dão-se aqui as principais informações sobre o Curso.

I) Nome:História da Filosofia: do impulso grego ao abismo moderno”.

II) Professor: Carlos Nougué.

III) Meio, início, durações e outros dados:
1) O Curso será ministrado por meio de vídeos a que se terá acesso num site próprio, cujo endereço se informará em meados de outubro próximo.
2) O Curso começará no início de novembro deste ano.
3) Cada vídeo (ou aula) terá duração de duas horas.
4) A duração total do Curso será de quatro anos, assim divididos aproximadamente:
● Os primeiros doze meses: a Filosofia Clássica (ou seja, a greco-romana), com destaque para Sócrates, Platão e Aristóteles [mais abaixo, já se dá, a título de demonstração, parte da ementa destes primeiros doze meses].
● Os seis meses subseqüentes: a Filosofia Cristã até Santo Tomás de Aquino (exclusive), com destaque para Santo Agostinho.
● Os dois anos seguintes: Santo Tomás de Aquino.
● Os últimos seis meses: de Duns Scot aos dias de hoje.
5) À primeira aula poderão assistir todos quantos visitarem o site do Curso. Tratará ela da natureza, classe e princípios das diversas ciências, incluídas a filosofia, a teologia, a história, e, particularmente, a própria história da filosofia.
6) Também será universal, no site, o acesso à ementa completa de cada período do Curso.
7) Os alunos poderão fazer perguntas mediante o e-mail do site do Curso; e a elas se responderá, de algum modo conveniente, na aula seguinte.
8) No site os alunos terão acesso a uma bibliografia detalhada e comentada.
9) Terão acesso também a muitos livros e textos (em arquivo informático), os quais sempre terão conexão com a parte do Curso em que se estiver.

III) Preço e forma de pagamento:
1) O preço por mês de aula (ou seja, por duas aulas de duas horas cada) será acessível. Poder-se-á reduzir o valor para quem pagar, de uma vez, três, seis ou mais meses.
2) O preço por mês de aula poderá aumentar ao fim de cada ano.
3) As formas de pagamento e os valores, bem como o relativo à senha para acesso aos vídeos, serão indicados no próprio site do Curso.

IV) Parte da ementa do primeiro ano de curso:

A FILOSOFIA CLÁSSICA: DE TALES DE MILETO AOS NEOPLATÔNICOS

1) Os pré-socráticos: “Os filósofos antigos, como que constrangidos pela verdade, ao afirmarem um princípio infinito, afirmaram ser ele único” (Santo Tomás, Suma Teológica, I, q. 11, a. 3, corpus).
● Preâmbulo: as religiões e os mitos gregos e o nascimento da filosofia
● O “naturalismo” jônico e itálico:
> Tales de Mileto
§ A descoberta do princípio
§ A água como princípio
# Aporias
> Anaximandro
§ O infinito como princípio
§ A gênese das coisas, da infinidade de cosmos e de nosso mundo
# Aporias
> Anaxímenes
§ O ar como princípio
§ A gênese das coisas
# Aporias
> Heráclito de Éfeso
§ O fluir perpétuo das coisas
§ Os opostos e o devir
§ O fogo como princípio
§ A alma
# Aporias
> Pitágoras e os pitagóricos
§ O número como princípio
§ Oposição e harmonia
§ O surgimento das coisas
§ A noção de ordem
§ A alma e o destino do homem
§ O divino
# Aporias
> Xenófanes
§ Crítica da concepção dos deuses e da religião pública
§ Deus e divindade
§ A física
§ A moral
# Aporias
> Parmênides
§ As vias da investigação: a verdade absoluta, o erro e a doxa
§ “O ente é, o não-ente não é”
§ O princípio de não-contradição
§ Panteísmo?
# Aporias
> Zenão de Eléia
§ Falácias ou dialética?
§ Contra o movimento
§ Contra a multiplicidade
# Aporias
> Melisso de Samos
§ Uma sistematização
§ Os atributos do ente
§ Contra a doxa
# Aporias
> Empédocles
§ O interlúdio do pluralismo
§ Os quatro elementos
§ Amor e ódio
§ O cosmos
§ O conhecimento, a alma e o divino
# Aporias
> Anaxágoras
§ A Inteligência como origem
§ A divindade
§ As homeromerias
§ Importância de Anaxágoras
# Aporias
> Os atomistas
§ Os átomos como princípio
§ Movimento e necessidade
§ A alma e o divino
§ A ética em Demócrito
# Aporias
> O ecletismo
§ Diógenes de Apolônia
§ Arquelau de Atenas
# Aporias
● A decadência sofística: o nascimento do relativismo
> Preâmbulo

§ A sofística como ideologia e como derivada do democratismo helênico
> Protágoras e o homem-medida de todas as coisas
> Górgias e a negação da verdade
> Pródico de Ceos: “Hércules na encruzilhada”
> Hípias e sua oposição entre lei e natureza
> Antifonte e o igualitarismo
> Os eristas
> Os sofistas políticos
# A sofística não é de natureza propriamente filosófica

2) Sócrates: a abertura da estrada real da filosofia
> Preâmbulo 1: a filosofia não-escrita de Sócrates e fontes
> Preâmbulo 2: Sócrates versus filosofia naturalista
> A ética socrática
§ A descoberta da essência do homem: a psyché
§ A areté e os valores morais
§ Autodomínio e liberdade
§ A noção de autarquia
§ A felicidade
§ A amizade e a política
> A teologia socrática
§ Deus como Inteligência e Providência
§ O daimónion
§ Deus e a ética
> A dialética socrática
§ O método “dialógico”: verdadeiro diálogo?
§ Não-saber e ironia
§ Maiêutica
# Aporias

3) Os socráticos menores: decadência
> Antístenes, fundador do cinismo
> Aristipo e a escola cirenaica: hedonismo e ruptura com a cidade
> Euclides e a escola megárica: entre Parmênides e Sócrates
> Fédon e a escola elidiana: ética e erística
# Visão crítica global

4) Platão — a descoberta da Causa supra-sensível: “Embora [a opinião platônica de que as idéias sejam substâncias separadas e subsistentes per se] pareça irracional [...], é verdade absoluta, porém [como afirmava Platão], que há algo primeiro, que por sua própria essência é ente e bom [sendo por participação nele que cada coisa é ente, una e boa]” (Santo Tomás, Suma Teológica, I, q. 6, a. 4, corpus).
> Preâmbulo: Oralidade e escrita; doutrinas esotéricas e exotéricas; tradição indireta.
> A “segunda navegação”
§ Crítica da filosofia “naturalista”
§ Insuficiência da “Inteligência divina” de Anaxágoras
§ As Idéias e os Supremos Princípios
― O edifício metafísico platônico
― O “parricídio” de Parmênides
― O mundo das idéias e o mundo sensível
― O Uno e a Díade indeterminada
― Os números e a realidade matemática
― Os quatro gêneros supremos e a Medida absoluta
§ O Demiurgo
― O papel e o lugar metafísicos da Divindade suprema
― O mundo sensível e a matéria original informe
― O Uno como modelo para o Demiurgo
― Um Deus criador ou informador?
― A alma do mundo
> Gnosiologia e dialética
§ A anamnese
§ Os graus do conhecimento
§ A dialética do uno e dos muitos
> Arte e retórica
§ A arte como afastamento do verdadeiro: imitação de imitação
— Caso especial: a música
§ A retórica como falsificação do verdadeiro
> A alma imortal
§ O místico-religioso em Platão e sua relação com o orfismo
§ Provas da imortalidade da alma
§ Metempsicose
§ O destino ultraterreno das almas
> Anti-hedonismo e ascese
§ O dualismo do homem
§ Purificação, virtude e conhecimento
> A amizade e a erótica
§ O Primeiro Amigo
§ Os mal-entendidos acerca do “amor platônico”
> Ética e política
§ A república como ampliação da alma humana
§ A república perfeita e seus diversos graus de corrupção
§ A classes e seu papel na república ideal
§ O filósofo como classe superior e sua educação
§ A república, a felicidade na terra e o destino ultraterreno do homem
§ A arte da política
§ As leis
# Entre o Mito da Caverna e o Mito de Er
# Aporias

(Continua com Aristóteles. Tanto a ementa completa deste período como a dos demais se exporão, no devido momento, no site do Curso.)

V) Últimas informações:

> Acompanhem o blog “Contra Impugnantes” em outubro, no decorrer do qual se darão todas as explicações que ainda faltam sobre como participar como aluno do Curso.
> O site do Curso será, antes, um site de cursos. Logo se dirá por quê.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

"TV" Contra Impugnantes: Platão, Aristóteles, Cícero, etc.

Sidney Silveira
Vejam,
nesse trecho de vídeo da "TV" Contra Impugnantes, mais um pedacinho da palestra de apresentação do curso de filosofia ministrado pelo Instituto Angelicum no Centro Cultural Banco do Brasil - CCBB, no Rio, entre março e julho deste ano.

Curso de História da Filosofia: do impulso grego ao abismo moderno (I)

Carlos Nougué
Para que se entenda adequadamente o que é a história da filosofia, deve-se antes de tudo saber o que é a história e o que é a filosofia. Por essa razão, a primeira aula do Curso de História da Filosofia que daremos via Internet versará exatamente sobre tal preâmbulo. Mas resumamos já aqui suas demonstrações e conclusões, para depois podermos mostrar o efetivo caráter, escopo e funcionamento do curso.

I) QUE É A HISTÓRIA?

1) A importância da história

Por dois ângulos principais se pode demonstrar a importância do estudo e ensino da história.

● Do ângulo pessoal, é — como já se disse — no colo da mãe que começa para cada um de nós o ensino da história: uma narração impressionante, ou tocante, de um episódio qualquer da história pátria ou mesmo familiar nos insere, já em tenra idade e ao modo de elo, na grande e complexa cadeia da humanidade. Cada um de nós logo se descobre parte de um todo, de um fio temporal que se vem estendendo, sem solução de continuidade, desde a origem do homem. E o robustecimento dessa mesma descoberta, por sua vez, também não sofre interrupção; muito pelo contrário, ganha alicerces cada vez mais firmes ao longo dos anos. Todos, inexoravelmente, terão a imaginação tingida de certo colorido histórico, e terão preenchida a memória de fatos mais ou menos marcantes da história de seu povo, de seus país, do mundo inteiro.

● Do ponto de vista social, a espécie humana, assim como o indivíduo humano, não pode de modo algum prescindir da memória, e memória de si mesma. Sem ela a humanidade, que está imersa na sucessão do tempo, se veria reduzida a perpétuo estado de ressurgimento, não renascendo incessantemente senão para tornar a cair no nada — o que é absurdo. Como poderia haver a filosofia, as artes, as tábuas das leis, as instituições políticas, a própria religião, ou seja, toda a trama do tecido social, sem tal memória? Neste sentido, a história é tradição.

Note-se, porém, que o mero conhecimento dos fatos históricos e suas conexões imediatas não é suficiente para compreender suas causas mais profundas. Ora, tais causas, como veremos, não podem ser descobertas senão por ciências superiores à história, a saber, a teologia e a filosofia; e neste sentido aquela se ordena instrumentalmente a estas (assim como o histórico A Constituição de Atenas, de Aristóteles, se ordena a seus Políticos), e tem de ter pressupostos os princípios e conclusões destas. Com efeito, se a história é, como já se disse, um reservatório de onde saem numerosos canais destinados a regar e fecundar a inteligência das novas gerações segundo o conhecimento do passado; logo, se o reservatório estiver envenenado de falsa teologia ou filosofia, tais canais não verterão senão veneno nas almas.

2) A história enquanto realidade

A história não é um mero seguir-se de impérios e dinastias, batalhas e conflagrações, reis e capitães, partidos e federações. Pela mesma razão, tampouco é um mero desdobrar-se do direito e das instituições políticas ou das ciências e das artes, nem, muito menos, o da indústria e do comércio. No entanto, ela não deixa de abarcar, como globalidade, aquele seguir-se e este desdobrar-se: a história é, nesta primeira aproximação, a presença sucessiva da humanidade na terra.

Mas as diversas histórias ou movimentos particulares da humanidade — o jurídico, o político, o científico, o artístico, o militar, o econômico — são como que coordenados, ordenados, capitaneados por seu movimento geral. E, se aquelas histórias particulares dependem da sua relação com este movimento ou história geral, é porque esta estabelece um vínculo ou laço entre os povos de todos os tempos. Ora, este grande laço não une os povos entre si senão com a condição de ligá-los a um mesmo princípio e a um mesmo fim; e o que religa o mundo ao seu princípio e ao seu fim chama-se religião — a verdadeira Religião —, razão por que a história religiosa é a alma e a unidade da história do mundo.

Com efeito, a história religiosa, ao descrever o arco que vai daquele princípio àquele fim, influi tão decisivamente sobre os movimentos históricos parciais de todos os tempos e de todos os espaços, determina-lhes tão absolutamente o resultado, que é o grau mesmo em que as diversas sociedades e civilizações resistem a seu impulso ou o aceitam o que as caracteriza essencialmente. Não poderia ser de outro modo: este laço geral é propriamente divino, e a história só é uma marcha global na medida em que é a história da humanidade sob o governo de Deus.

3) A história enquanto ciência

As demonstrações e conclusões de toda e qualquer ciência decorrem de certos princípios. “Se os princípios forem verdadeiros”, diz o Padre Calderón em A Candeia Debaixo do Alqueire (p. 280), “e as demonstrações corretas, também as conclusões serão verdadeiras. [...] Fazer silogismos corretos é relativamente fácil, e é notável quão bem o fazem muitos loucos de pedra. O difícil é conhecer a verdade dos princípios com suficiente certeza [...].”

Tais princípios podem ser alcançados basicamente de dois modos:

por reconhecimento, à luz natural do intelecto, de sua verdade intrínseca, como nas ciências perfeitas (a filosofia, a aritmética, a geometria, etc.);

por fé no testemunho de outros, como nas ciências imperfeitas, ou seja, aquelas entre as quais se incluem tanto a teologia como a história.

Há porém grave diferença entre as ciências imperfeitas, segundo se trate de assentimento de fé correspondente à credibilidade ou à autoridade.

> A fé dada por motivos de autoridade é própria daquele que se ocupa das ciências subalternas, cujos princípios só são evidentes à luz de uma ciência superior. Ora, aquele que recebe tal luz recebe-a precisamente da autoridade possuidora desta ciência. Assim, por exemplo, são ciências subalternas a música, cujos princípios derivam da aritmética; a perspectiva, cujos princípios decorrem da geometria; e a teologia, cujos princípios advêm da ciência de Deus e dos bem-aventurados (sendo neste caso tão alta e infalivelmente única a autoridade, que a teologia pode ordenar instrumentalmente a si até a própria filosofia; torna-se esta, assim, como dizia Santo Tomás de Aquino, serva da teologia).

> A fé dada por razões de credibilidade é própria, por exemplo, da ciência do magistrado ou da do historiador, que julgam a veracidade dos testemunhos e só assentem quando há convergência razoável de vários deles. Ora, enquanto as ciências cuja fé se dá por motivos de autoridade são imperfeitas por parte delas mesmas, as ciências cuja fé corresponde a razões de credibilidade são imperfeitas por parte do objeto, do qual elas não têm nenhuma experiência direta.

Observação: Se, como vimos, a história tem de ter pressupostos os princípios e conclusões da teologia e da filosofia, isso não quer dizer que enquanto ciência proceda daqueles princípios. Quer dizer apenas que deve cingir-se aos limites dados por eles, e não raro valer-se deles. Como ciência humilíssima que é, a história procede dos testemunhos dados pelas crônicas, anais e documentos deixados pelos homens ao longo dos séculos. Não obstante, assim como o físico se embaraça em hipóteses incertíssimas se não crê no dogma da Criação do mundo; assim como, sem a noção do pecado original e da Graça, qualquer psicólogo se vê efetivamente impossibilitado de curar distúrbios da alma; assim também, mutatis mutandis, o historiador que não crê na Lei Eterna nem na Divina Providência tenderá a criar sistemas utópicos ou quiméricos, antinaturais e antidivinos, como o fizeram Schelling, Cousin, Thierry, Guizot, Saint-Simon, Fourier, Proudhon, Hegel, Comte, Marx e Engels e tantos outros. Efetivamente, como o diz o Padre Calderón, “um intelectual católico não pode declarar-se alheio ao saber teológico” e “uma Universidade sem Faculdade de Teologia é um corpo sem alma”.

II) QUE É A FILOSOFIA?

1) O conteúdo, o modo de operar e o escopo da filosofia

● O conteúdo da filosofia é tudo aquilo que se pode explicar pela razão natural. Incluem-se nisso tanto o conjunto das coisas visíveis e invisíveis quanto o seu princípio ou causa primeira — enquanto, insista-se, acessíveis à luz natural do intelecto humano.

● O modo de operar da filosofia é justamente o da razão natural humana, mas pelo seu lado mais eminentemente especulativo. Por esse motivo, não basta à filosofia um coletar de testemunhos ou de dados nem as provas de certas experiências: para todos os fatos, dados e experiências, busca a filosofia não só suas causas, mas a sua causa; não só seus princípios, mas o seu princípio.

● Pode-se aceitar o modo como Aristóteles define o escopo da filosofia? Em parte, sim. Com efeito, “os homens começaram a filosofar [...] por causa da admiração [...]. Ora, quem experimenta uma sensação de dúvida e de maravilhamento reconhece que não sabe [...]. Assim, se os homens filosofaram para libertar-se da ignorância, é evidente que buscaram o conhecimento com a mera finalidade de saber e não para alcançar nenhuma utilidade prática” (Metafísica A, 2, 982 b 11-28). Todavia, em parte não:

> Em primeiro lugar, porque, embora em certo sentido a filosofia fosse, no período clássico (ou seja, o greco-romano), a única ciência que era “fim para si mesma” (idem), com o Cristianismo passou a ordenar-se à teologia ao modo de instrumento. E convenientemente, porque, como diz Santo Tomás de Aquino, a teologia “com respeito a algo é especulativa, e com respeito a algo é prática”, e “está acima de todas as demais ciências tanto especulativas como práticas. Entre as ciências especulativas, diz-se que uma é mais excelente que outra segundo a certeza que contém, ou segundo a dignidade da matéria de que trata. Em ambos os aspectos, a doutrina sagrada está acima das outras ciências especulativas. Segundo a certeza, porque a certeza das outras ciências procede da luz natural da razão humana, que pode enganar-se; enquanto a certeza [da teologia] provém da luz da ciência divina, que não pode falhar. Segundo a dignidade da matéria, porque a doutrina sagrada trata principalmente de algo que por sua altura transcende a razão: as outras ciências só consideram o que está sujeito à razão” (Suma Teológica, I, q. 1, a. 5, corpus).

> Em segundo lugar, porque já na filosofia clássica uma parte dela — o conjunto de ética e política, que trata “das coisas humanas” — não era puramente apodíctica, mas versava sobre coisas que nem sempre são idênticas e “podem ser de outra maneira” (endechómenon allos échein). É verdade que esta parte não se confundia com a poíesis nem com a prudência, nem se reduzia a ciência prática. Com efeito, se Aristóteles escreve seus Políticos tendo em mente o fim prático de dotar Atenas da melhor constituição, ele porém faz esse fim depender do estudo especulativo da natureza política do homem, do caráter da pólis, dos diversos tipos de regime político, etc.; e este estudo é levado a efeito precisamente pela parte ético-política da filosofia. Mas o fato é que para o próprio Estagirita o propósito cognoscitivo da filosofia “das coisas humanas” tem um fim que vai além do mero conhecimento (“O presente tratado não é [só] teórico como os outros”, porque também “temos de considerar o relativo às ações, como devemos realizá-las”, diz Aristóteles em Ética Nicomaquéia, II, 2, 1103b 26 ss).

> Em terceiro lugar, porque, além de que enquanto ciência especulativa se ordena instrumentalmente à teologia enquanto ciência teórica, a filosofia, enquanto ciência prática, tem um fim que se ordena essencialmente ao fim da teologia enquanto ciência também prática. Com efeito, “entre as ciências práticas, a mais excelente é a que se ordena a um fim mais alto, como sucede com a política com relação à arte militar, pois o bem do exército se ordena ao bem da cidade. Ora, o fim desta doutrina [a teológica], enquanto prática, é a bem-aventurança eterna, à qual se ordenam todos os outros fins das ciências práticas” (Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q. 1, a. 5, corpus).
Observação: Diga-se ainda que, nas ciências das coisas humanas, é impossível ao cientista uma neutralidade “axiológica” como a sonhada por Max Weber, pelo simples motivo de que o sujeito dessas ciências faz parte do objeto delas: não só enquanto homem, mas também enquanto cientista.

III) QUE É A HISTÓRIA DA FILOSOFIA?

1) Por tudo quanto vimos até aqui, a história da filosofia compartilha ou deve compartilhar:

Com as demais histórias, tanto as particulares quanto as gerais:
> o servir de memória coletiva;
> o servir instrumentalmente à teologia e à filosofia.

Com as ciências de fé devida a motivos de autoridade:
> o julgar a veracidade dos testemunhos e só assentir quando há convergência razoável de vários deles;
> o ser imperfeita por parte do objeto, do qual não tem experiência direta.

● Com todas as ciências, excluídas a teologia e a filosofia:
> o cingir-se aos princípios e conclusões destas ciências superiores;
> o valer-se muitas vezes deles.

2) Ademais, como é história justamente da filosofia, e como esta se ordena instrumental e eminentemente à teologia, deve a história da filosofia:

● ser serva de serva, instrumento de instrumento;
● ter por eixo a filosofia que se ordena máxima e propriamente à teologia, e tal filosofia não pode ser senão a filosofia católica, que, por sua vez, instrumentalizou o que de melhor produziu a filosofia pagã.

3) Ademais, como a teologia a que se ordena a filosofia católica não é senão a teologia católica, por isso mesmo a história da filosofia que se ordena a ambas deve:

● cingir-se aos limites dados pela Revelação e pelo magistério da Igreja;
● ter por centro radical de referência a teologia e filosofia consagradas pelo magistério como a comum e própria de toda a Igreja: a de Santo Tomás, que, erigindo sua doutrina sob a luz e sobre os alicerces da Revelação, instrumentalizou a melhor e mais realista das filosofias do paganismo, a aristotélica, sem deixar porém de assimilar tudo quanto havia de são no platonismo (como a tese da participação, com que o Angélico coroará sua filosofia do ente e do ser) e outras.

IV) COMO NÃO DEVE SER UM CURSO DE HISTÓRIA DA FILOSOFIA

● Não se deve confundir aquela instrumentalização e assimilação de filosofias pagãs por Santo Tomás com a tese, liberal-modernista, de que o Catolicismo pode batizar todo e qualquer sistema filosófico. Não o pode: porque, assim como não era qualquer cultura que podia ser batizada pelo Cristianismo, mas tão-somente a greco-romana; assim também não é qualquer filosofia que é carne apta para a infusão da alma cristã, mas tão-somente a clássica greco-romana. Tanto quanto a cultura asteca, não se podem batizar as filosofias que se sucedem no abismo referido no título desta Apresentação.

● Com efeito, assim como a filosofia pagã greco-romana como que ansiava a solução que Santo Tomás daria a suas aporias, assim também a má filosofia que nasce na própria Idade Média apontará, como uma causa a seu efeito, para a progressiva ruína da inteligência. Veja-se, sumariamente aqui, a impressionante seqüência dessa ruína, atentando para o seu íntimo vínculo, que não é senão o subjetivismo gnosiológico:

> Duns Scot (1270-1308) e seu superdimensionamento da vontade em detrimento do intelecto;
> Guilherme de Ockham (1300-1349) e sua descrença nominalista na existência dos universais e, portanto, numa das funções precípuas da inteligência;
> Descartes (1596-1650) e seu pensamento que funda até o próprio ser pensante, mas do qual pensamento, e, logo, do próprio ser pensante que ele funda, se há de duvidar sempre e metodicamente;
> Berkeley (1685-1753) e seu idealismo empírico-espiritualista, segundo o qual apenas as almas humanas e Deus possuem existência plena e permanente, enquanto os objetos materiais do mundo só adquirem existência quando percebidos por um espírito mediante a intervenção divina;
> Hume (1711-1776) e seu cepticismo crítico, que nega a possibilidade de a inteligência humana conceber verdadeiramente qualquer forma de causalidade;
> Kant (1724-1804) e sua incognoscibilidade da coisa-em-si, ou seja, do real, para a nossa inteligência, tudo revestido de raso pietismo;
> Hegel (1770-1831) e sua dialética, que não é senão outro nome de uma negação do princípio da não-contradição;
> e toda a vertiginosa sucessão de niilismo, irracionalismo e abismo que caracteriza o tempo dos Wittgensteins, Sartres e Deleuzes.

● Note-se que toda essa sucessão brota de uma raiz comum: a negação da filosofia do ente e do ser, a negação da doutrina tomista. Por isso, se algum filósofo ou professor de filosofia afirma que sua visão da história da filosofia não é tomista, mas tampouco se vincula a nenhuma outra doutrina em especial, fundando-se ou num ecletismo historicista, ou numa filosofia própria, está-se diante de uma de quatro possibilidades:

> ou de um profundo primarismo;
> ou de um mais ou menos dissimulado antitomismo;
> ou de uma imensa soberba intelectual, que ao fim e ao cabo não poderá deixar de ser antitomista: com efeito, desde Santo Tomás não se pode ser senão seguidor do tomismo, e negar-se a sê-lo não passa de soberba, assim como foi a soberba o que levou àquela seqüência que começa com Duns Scot e chega aos tristes dias de hoje;
> ou, o que é mais provável, de uma mescla das três possibilidades anteriores.

● Com efeito, o tomismo, em sua perfeita docilidade à ciência divina e em seu pleno uso da razão natural enquanto informada por aquela, é o ápice da inteligência humana. Se assim é, nenhuma sã história da filosofia pode girar senão em torno do tomismo; e o peso dado, nela, a cada doutrina filosófica há de ser maior ou menor segundo tenda mais ou menos ao tomismo ou segundo mais ou menos se afaste dele. Dar o mesmo peso a Platão e ao estoicismo, a Aristóteles e a Epicuro, a Santo Agostinho e a Duns Scot ou a Kant desfigura a realidade histórica da filosofia — e é um modo de não reconhecer sua estreitíssima vinculação ao desenho geral da história, que, como vimos, só é uma marcha global na medida em que é a história da humanidade sob o governo de Deus.

(Continua amanhã com os dados concretos do nosso Curso de História da Filosofia.)
ADENDO DO SIDNEY: A ementa deste curso que se dará pela internet aponta para algo simplesmente I-NÉ-DI-TO em termos de ensino de filosofia entre nós. Muito superior a enfoques ecléticos liberais que, embora possam trazer alguma erudição, não fazem desta algo ordenado a fins superiores, mas apenas infundem na alma dos ouvintes uma mescla de dados estanques que, ao fim e ao cabo, trazem mais confusão do que qualquer outra coisa. E mais: não predispõem a alma para a recepção da verdade superior que Deus preparou para os homens, com a Revelação. Pois o ensino ou serve para aproximar-nos de Deus ou servirá para lançar-nos, paulatinamente, no abismo moral e espiritual.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Ainda sobre o filósofo boca-suja



Sidney Silveira
Realmente, não há como responder a todas as pessoas que mandaram mensagens de agradecimento pela pequena disputatio publicada no Contra Impugnantes acerca de se é lícito ao filósofo usar de uma linguagem torpe, com palavrões e insultos, contra adversários maliciosos. Obrigado, pessoal!

Na verdade, escolhi naquele texto apenas três objeções que me pareceram suficientes para que, no corpus, a resposta mostrasse toda a sua força. Sem dúvida, há outros argumentos em contrário que não pus ali simplesmente por falta de tempo — pois dá trabalho compor um texto neste formato escolástico e eu preciso ganhar o pão de cada dia; não tenho papai nem mamãe que me paguem as contas e muito menos nenhum endinheirado que se disponha a me manter às suas expensas. A propósito, hoje vejo com clareza: Deus me livre disso! Prefiro continuar passando dificuldades e me entregando à Divina Providência, que só dá o que realmente preciso; nem mais nem menos. E, no dia em que Deus não quiser ver-nos a mim e ao Carlos envolvidos em tantos projetos, encerro todas essas atividades (cursos, blog, editora, etc.) da mesma forma como comecei. Afinal, o que importa é, como diz São Paulo, combater o bom combate. O resto é poeira e passa voando, como a vida humana — que é, como gosta de repetir o Carlos, uma flor de um dia.

Vale ainda dizer que, no sed contra daquele texto (para ser estritamente dialético e manter a forma clássica da disputa), consignei um argumento de Aristóteles que mostrava o seguinte: para alcançarmos a verdade, precisamos argumentar, e se o fazemos exacerbando as paixões com mil e um palavrões, a coisa certamente não chegará a bom termo. As autoridades do sed contra foram colhidas da Sagrada Escritura, que recrimina com duríssimas advertências a linguagem vulgar, típica dos ímpios e pecadores empedernidos, e não de um filósofo. Escolhi algumas citações, apenas, mas há incontáveis trechos de Salmos, Epístolas, etc. Quem quiser, procure que certamente encontrará textos espirituais de grande profundidade sobre este tema.

Bem, é isso, amigos: passei por aqui hoje apenas para agradecer, de uma só vez, aos emails a respeito desse texto do filósofo boca-suja (já que estou sem tempo para responder um a um).

Nessas horas, encontramos ânimo para continuar, até o ponto em que apraza a Deus.

"TV" Contra Impugnantes: Platão, Aristóteles, Maquiavel, etc.

Sidney Silveira
Vejam, nesse trecho de vídeo da "TV" Contra Impugnantes, um pedacinho da palestra de apresentação do curso de filosofia ministrado pelo Instituto Angelicum no Centro Cultural Banco do Brasil - CCBB, no Rio, entre março e julho deste ano.

sábado, 19 de setembro de 2009

"TV" Contra Impugnantes: não há acaso para Deus

Sidney Silveira
Pergunta-se Santo Tomás na Suma Teológica (I, q. 22, a. 2) se todas as coisas estão submetidas à Providência Divina. E a primeira objeção (que depois o Santo refuta) é a seguinte:

“Nada previsto é fortuito. Portanto, se tudo é previsto por Deus, nada seria fortuito. Conseqüentemente, tanto a causalidade quanto o acaso desapareceriam”.

Em síntese, o acaso pressupõe que o agente, ao agir, não contava com tal ou qual sucesso. Por exemplo: como sucederia a alguém que, indo enterrar uma pessoa da família, de repente batesse com a pá num baú cheio de ouro que estava enterrado no local. Ora, neste caso, encontrar o ouro foi, literalmente, ocasional porque não estava na intenção daquele que o encontrou.

Pois bem, não interessa aqui escarafunchar o conceito de acaso em toda a sua amplitude, mas apenas para lembrar que ele não se aplica a Deus. Nada é fortuito ou ocasional para Deus, como menciono neste trecho de aula na “TV” Contra Impugnantes. Em suma: não existe acaso para Deus, pois, como brilhantemente afirma o Aquinate, Deus sabe o que é, o que foi, o que era, o que será e o que seria; a sua omnsciência elimina qualquer possibilidade de que algo Lhe seja ocasional. Devemos, pois, meditar sobre a Providência Divina, que orienta tudo ao seu optimum, inclusive as coisas que sucedem em nossas vidas.

A propósito, pensando nela, que tristeza ver tantas pessoas católicas apostar as suas fichas nos negócios humanos e deixar de lado o que a Providência Divina dispôs para que elas não se afastassem do que é conveniente para a sua salvação! Quantos querem a segurança terrena, ainda que descuidando das coisas que Deus proveio para a única segurança verdadeira, que é esforçar-se para fazer a Sua vontade! A começar por não impugnar a verdade conhecida da própria fé em alguns dos seus pontos essenciais, às vezes em troca de um título, de um favor, de uma conveniência pessoal ou política...

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Sedevacantismo, ou uma conclusão à procura de premissas (V)

Carlos Nougué
[Advertência: Nossa série “Sedevacantismo, ou uma conclusão à procura de premissas” foi começada neste blog, há já algum tempo, e suspensa por dificuldades de tempo. Foi recomeçada no site da FSSPX, partindo-se do zero e de forma revisada e melhorada. Naquele site, fomos até a parte 4. Agora, porém, como o site da FSSPX entrará em recesso para remodelações, sigo com a série aqui, no Contra Impugnantes, a partir da parte 5, que agora se publica. Como já disse alhures, quem desejar receber as quatro primeiras partes, basta escrever-me (carlosnougu@hotmail.com) pedindo-as.]

A TESE DE CASSIACUM

Vale, sem dúvida, para a chamada Tese sedevacantista de Cassiciacum o já dito nas partes I e II deste artigo com respeito ao sedevacantismo em geral: tem ela por ponto de partida a conclusão de que um herético não pode ser cabeça da Igreja. Ora, a partir do Concílio Vaticano II todos os papas se mostraram heréticos; logo, pelo menos desde então a Sede Romana está vacante por defeito de autoridade.

Tal raciocínio se segue, como já dito, da forte impressão causada no espírito de fiéis católicos pelas novidades introduzidas a partir do Concílio Vaticano II, novidades que se chocam frontal e patentemente com o declarado pela totalidade do magistério anterior. Acontece, todavia, que ambas as premissas deste raciocínio são tênues: a primeira porque seria necessário averiguar, antes, se qualquer espécie de heresia impede de fato o ser cabeça da Igreja; a segunda porque, como se verá na refutação da Tese de Cassiciacum, implica um argumento quia inválido para o assunto de que aqui se trata.

Ou seja, entre tais premissas e aquela conclusão há saltos lógicos que tornam frágil o raciocínio. Não obstante, ainda que sabedor disso, o dominicano e bispo francês Michel Louis Guérard des Lauriers (1898-1988), o autor da Tese de Cassiciacum, não buscou investigar profundamente suas premissas iniciais, mas aferrou-se à sua conclusão e saiu em busca de outras premissas, mais sólidas, para ela. Como se dá com todas as outras formas de sedevacantismo, trata-se, na prática, de conclusão apriorística. Como porém chegou ele, de fato, a outra premissa maior, passou a seguir-se dela aquela mesma conclusão, sim, mas algo alterada: já não se trata de que os Papas pós-conciliares simplesmente não sejam Papas; de fato, não o são formalmente (formaliter), mas continuam a sê-lo materialmente (materialiter). Ora, aquela nova premissa maior (a menor permaneceu, obviamente encerrando ainda o já referido argumento quia) encerra, como também já antecipado, uma imprópria e obscura analogia da autoridade (e particularmente da autoridade papal) com o composto humano de corpo e alma.

Essencialmente menos complexa que a tese sedevacantista decorrente da obra A Figura deste Mundo, de Pacheco Salles, a Tese de Cassiciacum, porém, é não só essencialmente bem mais complexa que a dos sedevacantistas que para justificar sua posição se aferram à Bula Cum ex Apostolatus Officio, do Papa Paulo IV, mas muito mais complicada que a primeira tese. Com efeito, as próprias analogias impróprias com a filosofia da natureza de que se tece a Tese de Cassiciacum a tornam intricada e obscura, e duplamente mais trabalhosa de refutar: primeiro, precisamente porque se tem de deslindar (na medida do possível) tal obscuridade; segundo, porque se tem de mostrar que aquelas mesmas analogias, supostamente fundadas na obra de Santo Tomás e na de uma multidão de outros respeitados teólogos, em verdade não se fundam nelas. Por isso, ademais, se para bem refutar qualquer tese adversária é preciso antes expô-la o mais fidedignamente, a exposição da Tese de Cassiciacum já requererá de nós e do leitor um bom e longo esforço, que tomará duas partes deste artigo (esta e a da próxima semana). Comecemos, então, a expô-la: [1]

1) Aos católicos que se opõem ao Concílio Vaticano II e às suas novidades apresenta-se um grande problema: precisamente o da autoridade papal. Com efeito, como justificar a rejeição do que tanto o Concílio como os papas chamados conciliares proclamaram com pelo menos aparente autoridade suprema? Não é satisfatória a solução adotada pela Fraternidade Sacerdotal São Pio X, a saber, que os papas conciliares são, sim, verdadeiros papas, mas não se lhes deve obedecer quando exigem, em contradição com o magistério de sempre, que se assinta ao que é falso do ângulo da Fé — como, por exemplo, a salvação possível fora da Igreja — ou que se pratique o que do mesmo ângulo não é correto — como, por exemplo, o ecumenismo. E não é satisfatória porque, conquanto tal solução possa ser perfeitamente aplicada a ordens de um papa enquanto pessoa privada, implica porém uma defecção da Igreja se se trata do magistério ordinário universal ou de leis gerais, pertencendo ambas, como de fato pertencem, ao campo das verdade infalíveis.
2) Ora, considerada a assistência do Espírito Santo prometida aos papas, um verdadeiro papa não pode, em nome da Igreja, ensinar falsidades ou ordenar que se faça algo mau. Logo, a única solução que não atenta contra a indefectibilidade da Igreja consiste em afirmar que os papas conciliares, que propiciam a defecção da fé e induzem a uma nova religião, não desfrutam da autoridade papal. Há porém diferença entre os defensores da tese de que os papas conciliares não desfrutam da autoridade divinamente outorgada por Jesus Cristo a seus vigários. Sim, porque enquanto uns afirmam que os papas conciliares são totalmente privados da dignidade pontifical (como se dá com os que, para prová-lo, se apóiam na Bula Cum ex Apostolatus Officio, do Papa Paulo IV), outros (os que defendem a Tese de Cassiciacum) sustentam que eles são privados dela apenas parcialmente: de fato não são formaliter (formalmente) papas, mas o são materialiter (materialmente).
3) Para compreendê-lo, é preciso distinguir corretamente entre a matéria e a forma da autoridade em geral e aplicar corretamente essa distinção ao papado. Ora, tal distinção é clássica e se encontra em quase todos os teólogos. Ademais, encontra-se implicitamente na questão da sucessão apostólica, onde se trata da sucessão material mas não formal entre os cismáticos. Pois bem, segundo a opinião mais aceita, a sucessão apostólica pode ser material ou formal, isto é: ou a posse da sede sem a autoridade, ou a posse da sede com a autoridade. Essa alternativa, obviamente, demonstra a realidade da distinção entre posse da sede e posse da autoridade apostólica. Como se verá, trata-se de uma distinção simples e cristalina extraída da filosofia tomista e confirmada, como já dito, por numerosos teólogos de todas as escolas católicas de pensamento.
4) Com efeito, pode-se encontrar a referida distinção nos seguintes e importantes teólogos, escolhidos precisamente por representar em conjunto uma ampla gama de correntes católicas de pensamento: Æmil Dorsch, Institutiones Theologiæ Fundamentalis, Œniponte, 1914, Tomo II; Card. Camillo Mazzella, De Religione et Ecclesia Prælectiones Scholastico-dogmaticae, Roma, 1896; Domenico Palmieri, S.J., Tractatus de Romano Pontifice, Prati Giachetti, 1891; E. Sylvester Berry, D.D., The Church of Christ, St. Louis B., Herder Book Co., 1927; G. Van Noort, Tractatus de Ecclesia Christi, Hilversi in Hollandia, 1932; H. Hurther S.J., Medulla Theologiæ Dogmaticæ, Œniponte: Libreria Academica Wagneriana, 1902; J. V. de Groot, O.P., Summa Apologetica de Ecclesia Catholica, Ratisbona, Institutum Librarium pridem G.J. Manz., 1906; Johannes MacGuinnes C.M., Commenterai Theologici, Parisiis, P. Lethielleux, 1913; M. Jugie, Art. “Apostolicità”, in Enciclopedia Cattolica, Città del Vaticano 1948, vol. I, col. 1693; Padres Jesuitas Profesores de las Facultades de Teología em España, Sacrae Theologiae Summa, I: Theologia Fundamentalis, Madri, La Editorial Católica, 1952; Raphael Cercià, S.J., Tractatus de Ecclesia Vera Christi, Neapoli Typis Caietani Migliaccio, 1852; Serapius Ab Iragui, O.F.M. CAP., Manuale Theologiæ Dogmaticæ, I, Theologia fundamentalis, Madri, Ed. Studium, 1959; Valentinus Zubizarreta, Theologia Dogmatico-Scholastica, I, Theologia fundamentalis, Bilbao, Ed. Eléxpuru Hnos., 1937; Yves de la Brière, Eglise (Question des Notes), in Dictionnaire Apologétique de la Foi Catholique, éd. A. D’Alès. Paris, Beauchesne, 1911; Card. Ludovicus Billot, S.J., De Ecclesia Christi, Roma, Università Pontificia Gregoriana, 1927; S. Roberto Bellarmino, S.J., De Romano Pontifice, I. 2, c. 17.
Pois bem, segundo todos esses autores, a sucessão apostólica deve ser contínua tanto materialiter quanto formaliter, de modo que a Igreja, por analogia com um corpo físico vivo, tenha legalmente um só corpo moral — ou seja, uma hierarquia legalmente constituída com seus membros conexos — e uma só alma moral — uma autoridade. E isso, naturalmente, ao longo do tempo até o fim dos tempos. Se esses dois princípios viessem a faltar, falharia a Igreja. Se a unicidade corporal faltasse, ou seja, se não se desse a legal sucessão apostólica, então a autoridade não poderia ser recebida na matéria e a missão da Igreja de Cristo teriam fim, sem possibilidade de restabelecimento, de modo que, se alguém a quisesse restabelecer após a solução de continuidade na sucessão apostólica, se trataria já não da mesma Igreja, mas de outra. Sim, porque neste caso faltaria o princípio de unidade material que dá unidade à Igreja. A interrupção da linha material é analógica à aniquilação do corpo num ente físico: perde-se com isso a matéria que possa receber a forma.
5) Por outro lado, a identidade da Igreja exige que ela tenha uma só forma como constitutivo de sua personalidade moral; e tal constitutivo é a própria autoridade de Cristo transmitida a todo e qualquer papa eleito válida e indubitavelmente e que não oponha nenhum óbice a receber a autoridade. Desse modo, a autoridade que governa a Igreja é a mesma autoridade de Cristo possuída vicariamente pelo Papa. Assim como não é possível haver vários corpos eclesiásticos, mas apenas um, por causa da continuidade legal da seqüência de pastores, assim também não é possível haver duas autoridades, mas apenas uma, a que constitui a Igreja como pessoa única e sobrenatural que perdura ao longo do tempo.
6) Insista-se: a autoridade apostólica não pode ser recebida senão por alguém que se tenha eleito legitimamente para a sede apostólica. Os intrusos, ou seja, os que não tenham sido eleitos legalmente, não são aptos a ser sucessores apostólicos. A sucessão material legal, todavia, não é suficiente para que haja sucessão apostólica legítima, precisamente porque a autoridade é a forma que constitui um verdadeiro sucessor. O que porém importa por ora é que, se há distinção real entre a mera ocupação material da sede e a posse formal da autoridade, é porque essas duas realidades podem efetivamente ser separadas — e tal é o fundamento mesmo da tese que aqui se expõe. Com efeito, justamente porque a designação para receber a autoridade não implica necessariamente a posse dessa mesma autoridade é que, se a pessoa designada possuísse algum óbice para receber a autoridade, permaneceria em estado puramente material com respeito à autoridade. Em tal caso, o sujeito da designação não perderia a mesma designação (a não ser que lhe fosse legalmente retirada), mas ao mesmo tempo não possuiria a autoridade, razão por que não seria papa ou bispo local simpliciter, mas tão-somente secundum quid, isto é, por disposição. Inversamente, a não-posse da autoridade ou sua perda não exclui a designação material-legal. Logo, essa designação material-legal, a única capaz de receber a autoridade, e a própria autoridade são coisas efetiva e realmente não só diversas, mas separáveis.
7) Aprofunde-se a questão. A Igreja é dirigida principalmente por Jesus Cristo, seu chefe, e a autoridade do Papa, como dito, é a mesma de Cristo, mas usufruída vicariamente. A autoridade ou jurisdição é una e única (é a de Cristo) e prossegue ao longo dos séculos pela sucessão apostólica; e, com efeito, quando morre uma papa, a sede fica vacante, mas a continuidade do papado não sofre solução, precisamente porque a Igreja tem a intenção de eleger um novo pontífice. A sucessão de um papa por outro é puramente moral enquanto prossegue a intenção de eleger um papa. Mas a sucessão material deve ser física de maneira precisa, a saber: deve haver sempre pessoas legalmente aptas para eleger o papa. Em outras palavras: a linha corporal da Igreja, sobretudo de sua hierarquia, não tolera interrupção física. Se, raciocinando ab absurdo, tal linha se interrompesse ainda que por um breve momento, a Igreja, como já dito, terminaria. Com efeito, se faltassem os sucessores materiais legítimos, já não haveria ninguém para receber a autoridade de Cristo e poder, assim, governar Sua Igreja como vigário. Desse modo, a parte formal da autoridade da Igreja permanece em Cristo enquanto a sede apostólica está vacante; mas a parte material — a pessoa legalmente designada para receber a autoridade — não pode existir se não há ninguém, precisamente, para designá-la. “Neste caso [traduzimos aqui, à letra, a frase do Padre Donald J. Sanborn] esta linha material ou puramente legal falharia e não poderia ser restabelecida senão por aquele que tem a autoridade, quer dizer, Cristo mesmo, que, considerando a divina constituição da Igreja, ‘deveria’ fazer uma nova convocação de Apóstolos e uma nova Igreja, diferente da fundada sobre São Pedro.”
8) Ainda que se considere a autoridade em geral, seja a de um papa, a de um rei ou a de qualquer outro governante civil, vê-se que igualmente consiste na união de duas partes, as quais também se podem considerar por analogia com o ente substancial. Com efeito, a matéria-prima é o primeiro sujeito e substrato de toda a realidade física. A forma substancial é o ato que constitui um unum per se ao unir-se à matéria-prima dando-lhe determinado modo de ser. A causa material é aquilo por que uma coisa é feita; a causa formal é o que dá à matéria determinada essência. Já a forma acidental, por um lado, é análoga à forma substancial, porque, com relação à forma acidental que a aperfeiçoa, a substância em que inere o acidente tem idêntico caráter material ou de sujeito. Mas, enquanto a forma substancial dá o ser simpliciter, a acidental não dá senão o ser isto ou aquilo. Ora, para que haja um composto ou sínolo — no caso que nos interessa, um papa, um rei ou qualquer outro governante civil —, é preciso que a forma seja recebida numa matéria apta para recebê-la, porque as partes não podem unir-se e formar um composto se não há proporção e disposição entre elas. Logo, qualquer autoridade, seja um papa, um rei ou qualquer outro governante civil, constitui-se de matéria — um homem — e forma — a faculdade de legislar e governar, que faz daquele homem alguém superior a seus súditos ou governados. Tal homem, entretanto, só pode receber esta faculdade formal se possuir todas as perfeições requeridas para isso: assim, um louco, embora seja homem e conseqüentemente tenha, enquanto homem, predisposição para exercer algum tipo de autoridade, não é apto, porém, para receber nenhuma autoridade, por defeito de disposição intelectual para promover o bem comum. Da mesma forma, quem não tiver cidadania de determinado país não pode tornar-se seu governante, porque quem não é membro de um corpo não pode ser sua cabeça. Similarmente, portanto, se um sacerdote ou um leigo eleito papa recusa a consagração episcopal, fica impossibilitado de receber a autoridade: porque não tem a perfeição acidental necessária para governar a Igreja e promover seu bem comum. Vê-se, assim, que são necessárias certas disposições para que um homem possa receber, enquanto matéria, a forma substancial da autoridade.
9) Geralmente, para definir formalmente a autoridade, os filósofos recorrem à noção de lei. Com efeito, correntemente se define a autoridade como faculdade de legislar, à qual corresponde o direito da autoridade de obrigar seus súditos ou subordinados a fazer ou não fazer determinadas coisas. De fato, a noção de autoridade se deve seguir da noção de lei porque a especificidade de toda e qualquer faculdade decorre de seu ato e de seu objeto. É o que diz Santo Tomás na Suma Teológica: a lei é “uma ordenação da razão ao bem comum, estabelecida e promulgada por quem tem sob sua responsabilidade a comunidade”. Por isso, por ordenar-se essencialmente ao bem comum, é que para o mesmo Santo Tomás, se faltar tal ordenação, perde a lei a força de obrigar e perde, pois, o próprio nome e o caráter de lei. Ora, a autoridade também se ordena essencialmente ao bem comum. Como diz Cathrein, autoridade é “o direito de obrigar os membros da sociedade a que com seus atos cooperem para o bem comum”. Ora, se desse modo se define a autoridade, deve-se incluí-la no gênero dos habitus ou disposições; e, enquanto é um habitus, recebe sua espécie e sua definição de seu objeto formal. Assim, o objeto formal e primário do habitus da autoridade é elaborar leis, promulgá-las e fazer com que sejam aplicadas; ora, o objeto formal da lei é promover o bem comum; logo, mediante a lei, também a autoridade se ordena necessária e essencialmente ao bem comum. Mas para que tal se dê é preciso que a autoridade tenha a intenção habitual de promover o bem comum, precisamente porque qualquer autoridade é um direito permanente e não transitório. Ademais, tal intenção habitual tem de ter caráter objetivo e não apenas subjetivo: não basta que o detentor da autoridade entenda a seu modo o bem comum da comunidade por que é responsável; é preciso, igualmente, que sua concepção desse bem comum se identifique efetivamente com o bem comum objetivo. Se assim não fosse, a definição de lei como “ordenação da razão ao bem comum” não se cumpriria, nem portanto a de autoridade, porque para definir a autoridade, como se viu, se deve precisamente recorrer à noção de lei.
10) Se porém se trata de saber o fundamento último de toda e qualquer autoridade, não a podemos encontrar senão em Deus e em sua Providência, mediante a qual, segundo Sua própria Lei eterna, Ele ordena tudo no universo a seu fim. Se assim é, a faculdade de legislar do rei ou de qualquer governante é participação na mesma Providência divina, recebendo a lei humana da Lei eterna sua própria capacidade de obrigar: obedecer à lei humana é indiretamente obedecer a Deus. Pela mesma razão, a relação rei-súdito provém de Deus e não da comunidade, ainda que se exija que a comunidade designe legalmente a pessoa que vai receber o poder real. Pois bem, reciprocamente ao poder de legislar, que é um poder ativo e a razão por que alguém é constituído rei ou governante, tem-se a obrigação de obedecer à lei, obrigação que é a razão por que alguém se constitui súdito. Por isso, o rei permanece unido à comunidade enquanto é promotor do bem comum; e a comunidade permanece unida ao rei enquanto é movida ao bem comum. O rei recebe o direito de legislar porque Deus lhe “infunde” o direito de mover a comunidade ao bem comum; enquanto os súditos recebem a capacidade de obedecer porque Deus lhes “infunde” o dever de obedecer ao legislador. Assim, a relação rei-súdito tem por fundamento, antes de tudo, a Deus mesmo e sua Providência; em seguida, o fato de Ele “infundir” no rei o poder de obrigar e nos súditos o correspondente dever de obedecer; dessa maneira, o rei recebe a autoridade de Deus, embora receba a designação da comunidade para promover o bem comum. Pois é precisamente do fato de a comunidade “gerar” o rei que se produzem duas relações mútuas, tal como acontece na geração natural: porque o rei é “gerado” apenas em ordem ao bem comum, por isso mesmo as relações de autoridade e sujeição não perduram senão enquanto perdure aquela ordem ao bem comum; se esta é suprimida, suprimem-se igualmente aquelas relações. Logo, aquele que promulga leis más não pode ser verdadeiro papa, porque o bem é essencial não só à fé, mas à missão confiada por Cristo à sua Igreja.
11) Se, pois, como diz Santo Tomás, é preciso haver proporção entre a matéria e a forma que entram na formação de um mesmo composto, sendo essa proporção dupla: por ordem natural entre matéria e forma, e por supressão de um impedimento, então não pode receber o poder real senão aquele que foi legalmente designado para tal — e se houver proporção ou ordem natural entre matéria e forma e se não existir nenhum impedimento. Assim, por uma permanente desproporção de ordem física um louco não pode receber o poder papal; mas, na ordem do moral, não pode receber o poder papal quem quer que interponha qualquer óbice voluntário e amovível, como, por exemplo, o recusar-se a se consagrar bispo — ou ainda o ter a intenção de ensinar erros ou promulgar leis más. Logo, pode alguém ser apto à designação válida para o papado e, no entanto, não ter a autoridade “infundida” por Deus em razão de um impedimento moral e voluntário não suprimido — no caso, a ausência de intenção de promover o bem comum.

(Continua.)
[1] Para a exposição da Tese de Cassiciacum, baseamo-nos, como já dito, particularmente na série “La Papauté matérielle”, do Padre Donald J. Sanborn, ed. francesa da revista Sodalitium, nos 46, 48 e 49, e numa “Entrevista a Monseñor Guérard des Lauriers”, cujo original se encontra no no 13 da mesma revista. Para a refutação da Tese, apoiamo-nos sobretudo em Padre Álvaro Calderón, A Candeia Debaixo do Alqueire, Artigo Primeiro, especialmente pp. 71-76; Arnaldo Xavier da Silveira, La nueva misa de Pablo VI, especialmente sua Segunda Parte: “La hipótesis teológica de un Papa hereje” (tradução datilografada); e Santo Tomás de Aquino, especialmente a Suma Teológica, Ia-IIae, Tratado da Lei, qq. 90-97.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

TV" Contra Impugnantes — Chesterton, criador de um grande personagem

Sidney Silveira
Em algum momento, pus aqui no blog esse vídeo do Carlos, em duas partes — e agora o disponibilizo no Youtube, pois em breve daremos prosseguimento a esta série de mini-resenhas virtuais.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Filósofo boca-suja?


Sidney Silveira
A pedido de amigos, compus hoje esta breve questão disputada sobre o uso de palavrões por parte do filósofo. Depois, certamente, se apresentará ocasião para comentarmos em detalhes o que segue abaixo.

QUESTÃO DISPUTADA SOBRE O USO DE PALAVRAS TORPES POR PARTE DO FILÓSOFO

(Em um artigo)

Sobre se é lícito ao filósofo, contra adversários maliciosos, argumentar com palavrões ou ditos insultuosos.

E PARECE QUE SIM.

Primeira objeção
Entre pessoas que buscam
a verdade, mas divergem com relação a determinado tópico (τόπος), a discussão dialética deve dar-se por meio de um tratamento respeitoso, sem palavras de calão, para que a luz da razão natural (lumen rationis naturalis) dos debatedores não se obscureça pelas paixões do apetite irascível e consiga, assim, levar ao ato uma potência que é conatural a todos os homens: chegar à verdade após um movimento que radica no chamado intelecto possível [1]. Ocorre que há maliciosos opositores, como os comunistas, por exemplo, entre os quais não há quem de fato busque a verdade, mas apenas defensores de uma ideologia criminosa — com maior ou menor grau de consciência das primícias de sua atuação e das conseqüências, diretas ou indiretas, que dela decorrem. Logo, parece lícito usar palavras desrespeitosas e de calão numa discussão dialética com comunistas ou com defensores de quaisquer outras ideologias nefastas.

Segunda objeção
Diz Aristóteles no Peri Hermeneias que a palavra escrita é símbolo da palavra falada, e a palavra falada é símbolo das afecções da alma, ou seja: das imagens da realidade que afetam a potência sensitiva interna da
imaginação, antes de ser conduzidas à vis cogitativa da alma e, desta, à razão superior que abstrai a verdade dos dados subministrados pelos sentidos. Mas as palavras (escritas ou faladas) usadas pelos comunistas na defesa de suas teses, assim como as dos defensores de quaisquer outras ideologias nefastas travestidas de filosofia, não simbolizam em nenhum grau a realidade, mas representam a negação desta por meio de sofismas ou slogans que visam a seduzir as pessoas e levá-las ao erro. Portanto, eles não podem, propriamente, ser considerados filósofos e, por esta razão, não merecem adentrar o terreno das discussões dialéticas que pressupõem o debate respeitoso aludido na primeira objeção. Logo, o filósofo não está obrigado a usar com eles das palavras vernáculas que expressam os elevados conceitos mentais pelos quais se chega filosoficamente à verdade, mas pode, se quiser, usar palavras de calão.

Terceira objeção
Os defensores do comunismo e de outras ideologias tão ou mais nefastas — como
o liberalismo, em seus mais variados matizes — muitas vezes mentem em sua argumentação, e a mentira em si é muitíssimo mais daninha do que o palavrão, já que este último não necessariamente expressa um engano, mas, em geral, apenas retrata um estado de espírito. Assim, por serem contumazes impugnadores da verdade conhecida, estão esses mendazes adversários excluídos da discussão filosófica, pois na melhor das hipóteses se pode conceder que defendem os seus erros com algum grau de ignorância culpável. Logo, por princípio, não é preciso usar de linguagem escorreita no trato com eles, pois, dada a sua leviandade, não são merecedores do respeito hipotecado aos verdadeiros adversários filosóficos, pois estes últimos buscam a verdade, enquanto os comunistas e os defensores de outras ideologias nefastas (como o liberalismo), não.

EM SENTIDO CONTRÁRIO, remetamo-nos ao que diz Aristóteles no Protreptico, por meio de um silogismo disjuntivo: “Ou devemos filosofar, ou não devemos. Se devemos, então devemos [sem problemas]. Mas se não devemos, também devemos para explicar por que não devemos. Logo, devemos filosofar sempre”. Desta conclusão do Filósofo deduz-se que o modo humano de conhecer pressupõe, necessariamente, o uso de argumentos para alcançar a verdade — e tão mais verazes serão esses argumentos quanto menos estiverem contaminados pela exacerbação das paixões do apetite irascível, que normalmente afloram numa discussão aos palavrões. Ademais, na língua insultuosa não se encontra a sabedoria, mas, ao contrário, ela apenas reflete a arrogância e leva a grandes quedas espirituais as pessoas que discutem aos palavrões. Daí dizer a Sagrada Escritura: O prepotente (...) usa de palavras perniciosas (Sl. 51). E ainda: Não terá duração na Terra a má língua (Sl. 139, 12). E mais: A boca do justo produz sabedoria, mas a língua perversa será arrancada (Prov., 10. 31). E por fim: Aquele que profere uma linguagem iníqua não pode fugir de Deus; a Sua justiça vingadora não o deixará escapar (Sab. I, 8); etc.

RESPOSTA. Duas coisas devem considerar-se, como preâmbulo à resposta a esta questão. A primeira é que o bem e a perfeição do intelecto humano consistem em conhecer a verdade, como afirma Santo Tomás na Suma Contra os Gentios (I, 1, 3). Portanto, sendo a verdade o bem (e o fim) do intelecto, a ela devem ordenar-se todos os raciocínios que compomos ou dividimos fazendo uso da potência intelectiva, assim como todas as discussões em que estejamos envolvidos. A segunda é que a esse bem do intelecto humano que é a verdade não se chega sem que haja uma causa instrumental extrínseca — no caso, o mestre. Pois, como diz Santo Tomás no livro Sobre a Verdade (q. 11, art. 2. resp.), embora possamos conhecer sozinhos muitas coisas graças à luz da razão natural dada por Deus a todos os homens, nem por isso podemos dizer que somos mestres de nós mesmos, pois quando alguém adquire a ciência por si mesmo, ainda assim a tem apenas em seus princípios comuns aplicados a algo específico e limitado — mas não em relação aos conhecimentos mais abstratos e superiores, para os quais é preciso haver uma causa instrumental exterior que incuta o hábito da ciência na alma daquele que busca a verdade.

Pressupostas estas duas coisas (ou seja: que todos tendemos à verdade; e que, para alcançá-la em sentido pleno, precisamos de um mestre), deve-se dizer que, numa discussão contra adversários maliciosos, é absolutamente ilícito e contraproducente para o filósofo fazer uso de palavrões ou de expressões insultuosas, e isto por algumas razões. Aduzamos somente duas, pois nos bastam. A primeira delas é que o ofício do sábio (officium sapientis) consiste em uma dupla função: ordenar as coisas aos fins que lhes são próprios e combater os erros, conforme acentua Santo Tomás no começo da Suma Contra os Gentios (I, 1). Ora, sendo o comunismo e quaisquer ideologias tão ou mais funestas (como o liberalismo) um erro tremendo, mais do que nunca cabe ao filósofo usar dos seus melhores instrumentos para refutá-las de forma apodíctica e, assim, tentar conduzir os seus adeptos à clara visão da verdade — o que não se faz por insultos nem com palavrões. Na prática, se o filósofo começa a xingar os seus adversários que estão em erro, com isto acaba por engolfá-los mais e mais no erro em que estão, pois os induz a responder iradamente na mesma medida, sem raciocinar, dado que uma das precondições para a razão alcançar a verdade reside no fato de que não esteja obliterada por vícios mentais [2] que, na prática, são grandemente estimulados pela linguagem torpe. Assim, ainda que o adversário seja um “demônio”, não se deve baixar o nível da linguagem na denúncia de suas argúcias sofísticas, pois para o filósofo basta refutá-las.

Deve-se também aduzir o seguinte fato, considerando a malícia dos adversários comunistas (e também liberais) e a natureza nefanda dos seus erros: é impossível, nesta vida, o homem estar definitivamente obstinado no mal. Bem o demonstra o Angélico no livro Sobre a Verdade (Q. 24, art. 11, resp.), onde diz: “A obstinação implica certa firmeza no pecado, em virtude da qual o pecador não consegue sair de sua situação. Pois bem, o fato de que um pecador não consiga abandonar o pecado pode entender-se num duplo sentido: em primeiro lugar, em razão de as suas forças não serem suficientes para que ele se liberte do pecado, e neste sentido se diz de todo aquele que cai em pecado mortal que não pode voltar [sozinho] à retidão. Mas esta firmeza no pecado não basta para dizer que alguém esteja propriamente obstinado. Noutro sentido, se diz que alguém está firme no pecado porque não consegue cooperar para sair dele”. A partir daí, Santo Tomás afirma que a obstinação perfeita existe apenas nos demônios, cuja inteligência está tão fixada no mal que quaisquer dos seus movimentos volitivos e intelectivos implicam em si o engano, a malícia, e, portanto, o pecado. No caso do homem, por pior que seja a situação moral e intelectual em que esteja, a sua obstinação é imperfeita, na medida em que sempre há débeis e episódicos movimentos em direção ao bem da inteligência, que é a verdade. Portanto, ainda que os adversários comunistas e liberais estejam em tal situação dramática (na qual, teologicamente, só se pode esperar por uma moção superabundante da graça divina), cabe ao filósofo, mais do que nunca, tentar fazê-los recuperar o senso comum, que é precondição para a verdade vir à luz. Se não conseguir, ele não deve insultá-los com xingamentos ou coisas assim, pois isto literalmente faria com que eles se obstinassem mais e mais em sua posição, como a experiência o demonstra de forma eloqüente.

EM RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO, deve-se dizer que, do fato de os comunistas (e também os liberais) não buscarem a verdade em sentido próprio — pois são meros ideólogos em busca de argumentos com aparência de verdade —, não se deduz, logicamente, que seja lícito usar para com eles palavrões ou insultos. Trata-se de um enorme salto lógico, típico do pensamento erístico, entre as premissas maior e menor e a conclusão do silogismo: aquelas definitivamente não conduzem a esta. Ademais, do fato de termos de usar de palavras respeitosas para com quem busca a verdade não se deduz que só devamos usá-las neste caso.

EM RESPOSTA À SEGUNDA OBJEÇÃO, deve-se dizer que ela comete o mesmo raciocínio vicioso, no seguinte ponto: do fato de tais contendores não serem propriamente filósofos não se deduz que não devamos usar para com eles da mesma linguagem respeitosa implicada na discussão verdadeiramente filosófica.

EM RESPOSTA À TERCEIRA OBJEÇÃO, façamos menção a Santo Agostinho, que nos lembra o seguinte: nem todos os que dizem uma coisa falsa mentem (Sobre a Mentira, I, cap. 3), mas apenas aqueles que, tendo uma determinada coisa na mente, expressam outra contrária com o intuito de não revelar a verdade. Sendo assim, pressupor que todos os comunistas e liberais mentem é cometer o grave pecado de julgamento de intenção. Além do mais, ainda nos casos em que a mentira se torne de tal forma patente (e que, portanto, não cometamos o julgamento de intenção ao atribuí-la a outrem), disto não se deduz (nem se justifica) que tenhamos de responder a ela com insultos e palavrões, entre outras coisas pelas razões apresentadas no corpus.

[1] Em linhas gerais, Aristóteles conceituara o “intelecto possível” (ou “passível”: o noûs pathetikós) como potência do intelecto para atualizar todos os inteligíveis. Trata-se da pura e simples capacidade que possui cada ser humano, individualmente, de atualizar toda a sorte de conhecimentos.
[2] Aduzamos, à guisa de exemplo, a ira e a contumélia.