sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Pensamento mágico e bom senso (X)

Carlos Nougué
Vimos, ao final do artigo anterior desta série, que uma cidade fundada na virtude enquanto objeto de troca é antípoda de uma sociedade fundada num contrato social, porque nesta a virtude já não pode ser objeto de troca. “Com efeito”, dizia-se ali, “se a única coisa reconhecida como virtude é a própria
liberdade da consciência individual ou o que dela decorre, ou seja, é algo subjetivo, como a virtude poderia permanecer como objeto de troca e como, portanto, a pólis ou cidade poderia seguir fundando-se na amizade perfeita e estável?” Evidentemente, estamos fazendo abstração, aqui, de algumas coisas:

1) A perfeição da virtude humana, ao contrário do que supunham os gregos, é impossível sem que ela se conforme às virtudes sobrenaturais e sem o concurso da graça.

2) A “amizade perfeita e estável” de que falava, por exemplo, Aristóteles pressupunha uma pólis muito pequena (com efeito, dizia o Estagirita que a partir de determinado limite populacional a pólis não podia ser governada senão por um Deus).

3) A Igreja e seus doutores, conhecedores que são do verdadeiro fim último do homem, evidentemente transpolítico, já não vêem a pólis pelo prisma da autarquia, mas pelo prisma daquele fim último, razão por que a perfectibilidade da pólis será a de um fim intermediário com óbvio caráter de meio (e será sempre assintótica, dada a natureza ferida do homem). O contrário seria crer numa espécie de milenarismo. Afirmá-lo, porém, não depõe contra a doutrina do Reinado Social de Cristo; ao invés, inscreve-se nela. Com efeito, estão implícitas nesta doutrina de fé duas coisas: a) o Reino de Cristo, o único perfeito, não é deste mundo; b) mas deve regê-lo e à pólis, aperfeiçoando-a em si mesma, é claro, mas aperfeiçoando-lhe sobretudo aquele mesmo caráter de meio, de fim intermediário.

Se todavia fazemos abstração de tudo isso, é pela finalidade desta série, que, relembremos, é combater algumas formas de pensamento mágico (o que toma o efeito pela causa, o quimérico e, como veremos ao estudar o sedevacantismo, o que reconstrói idealmente a história, concluindo primeiro para depois buscar as premissas...) com as armas do bom senso ou senso comum, com o mínimo de ajuda possível da filosofia realista.

Retomando pois o fio da argumentação, se já não é possível a comunicação ou troca dos bens da alma, da virtude, então só restará a amizade fundada exclusivamente na utilidade e no prazer. Veja-se, no entanto, que já não se tratará sequer de amizade fundada numa utilidade e num prazer diretos, ou seja, aqueles que pressupõem o contato ou o conhecimento entre os cidadãos: o tamanho mesmo das nossas cidades, dos nossos países, para não falar da globalização, permite apenas a amizade de utilidade indireta. “O camponês desconhecido que cultivou o trigo de meu pão”, escreve Hecquard (ibid., p. 251), “é útil para mim [por isso] e eu sou útil para ele porque inicio uma cadeia monetária que vai até ele.” O bem do outro já não pode ser buscado pelo outro, mas por si mesmo: nessa situação, como diria Aristóteles, os amigos só se relacionam por interesse, e, onde tal é assim, as imperiosas regras tendentes a evitar querelas se alçam ao primeiro plano, substituindo a própria amizade como laço principal da pólis.

É o contrato social, conforme ao qual a lei precede o poder. Mas especialmente neste quadro dizer lei é dizer coerção, ou seja, a lei implica um impedimento à liberdade individual absoluta. Como combinar, assim, tal coerção geral, a que a maioria dos indivíduos do mundo moderno dá seu assentimento, com aquela liberdade? “Pela promessa de felicidade”, dirá com perfeição Maxence Hecquard (idem): “A felicidade de cada um é obra de todos, porque o interesse de cada um é utilizar todos os outros para essa felicidade.” E, se tal felicidade e tal interesse já não são morais, já não se vinculam à virtude, e já não buscam o bem do outro pelo outro, é porque tal felicidade e tal interesse têm caráter exclusivamente material.

Não é difícil buscar as origens filosóficas de tudo isso, e, se Tocqueville dizia que “a doutrina do interesse bem entendido me parece, de todas as teorias filosóficas, a mais apropriada às necessidades dos homens do nosso tempo” (A Democracia na América, 2, 2, 8, p. 128, apud Maxence Hecquard, op. cit., p. 252), fazia-o pensando em toda uma seqüência de filósofos em que se encontra Hume. Dizia este: “Todo e qualquer membro da sociedade tem consciência deste interesse [...]: cada um exprime esta compreensão a seus semelhantes, com a resolução tomada por ele de regular essas ações por ela, contanto que os outros façam o mesmo”, donde ser o interesse próprio “o motivo original da instauração da justiça” (A Treatise of Human Nature, III, 2, 2, pp. 498 e 499, apud idem). O interesse próprio torna-se, assim, a fonte da moralidade e, como se verá, da própria sociedade.

Sim, porque, abaixo da coerção legal e da força pública, o que mantém a coesão social é justamente o interesse, donde poder-se dizer, com Hecquard, que por um lado o cidadão já não é cidadão por necessidade, mas por interesse, e por outro que, ante a fraqueza dos indivíduos (que os leva amiúde a preferir “o que está próximo ao que está distante” [Hume, ibid., p. 536, apud ibid., p. 253]), a lei tem sobretudo o papel de obrigar os cidadãos a agir em seu próprio interesse.

“O sistema de Hume”, como diz Hecquard (idem), “completa [...] admiravelmente o da tríade Hobbes/Kant/Rousseau ao enunciar a teoria de um motivo material da ‘insociável sociabilidade’. Sem dúvida, a compreensão humiana do interesse ultrapassa largamente o lucro. Mas [para do que aqui se trata basta saber] que o homem democrático a retém por esse único aspecto [...].”

Vê-se perfeitamente, assim, a necessidade ser substituída pelo interesse como laço universal (lembremo-nos que para Aristóteles a necessidade é que era “o laço da comunidade de interesses” [Ética a Nicômaco, 1133 b 7]). Mas, como por um lado a amizade de utilidade não pode ter um fim em si e deve servir à satisfação do desejo de prazer (em sentido geral), e como por outro é impossível nas condições atuais o contato direto que este, stricto sensu, requer, tal contato é então substituído “por uma cadeia que pode ser indiretamente discreta (no sentido matemático). Esta cadeia de utilidade, de interesse, tem um suporte real: o dinheiro” (Hecquard, idem.) E, como já havia dito Aristóteles (Ibid., 1133 a 28), “a moeda tornou-se uma espécie de substituto da necessidade”.
(Continua)